A estreia de Rogério
Sganzerla na direção de um longa numa crítica escrita há 28 anos
A primeira cópia de O Bandido da Luz Vermelha, recém-saída
do laboratório, foi projetada numa sessão privada na cabine da empresa Sul
Paulista. Estavam presentes, além do diretor e do produtor, a atriz Julie
Dassin (filha do diretor Jules Dassin), o crítico e cineasta Maurício Rittner,
e o trio da extinta Xanadú Produções Cinematográficas: Antônio Lima, João
Callegaro e este aqui que escreve. Lembro que o impacto do filme foi tão grande
que saímos da projeção completamente atordoados.
Rogério Sganzerla já
havia realizado um curta-metragem em 16 milímetros, Documentário, onde dois caras perambulam pelo centro de São Paulo
em busca de um bom filme para assistir. Um devaneio gordardiano que prenunciava
um talento fulminante.
Passei o domingo
escrevendo um longo texto sobre o Bandido, que n~]ao foi publicado no “Suplemento
Literário” de O Estado de São Paulo
na semana seguinte por problemas com o editor. Teria sido a primeira análise mais profunda sobre o filme. Jairo Ferreira
chegou a publicar parte do texto em Cinema de Invenção, anos depois. Revisei
alguns trechos para reproduzi-los abaixo sem tentar minimizar o impacto que o
originou.
“O Luz faz com que Rogério se aproxime de Glauber como nenhum outro
cineasta ousou antes (um Glauber do asfalto?). Barroco, excessivo, delirante, o
Luiz é um filme tão deflagrador quanto Deus e o Diabo na Terra do Sol. Há uma
multiplicidade tão grande de elementos a ser decodificados em cada plano que
nos obriga a assistir o filme várias vezes. Cada fotograma é tão rico quanto o
próximo. O Luiz é um filme que deveria ser visto na íntegra de sua realização,
com starts, claquetes, pontas brancas e pretas, mesmo que atingisse muitas
horas de projeção. Sei de muita coisa quer ficou na sala de montagem e que
seria precioso recuperar. Um plano-sequencia tomado ao acaso, por exemplo: o
Luz assistindo Marrakesh, uma produção B vagabunda. Travelling sobre a plateia:
um casal se beija de língua indiferentes ao filme; um mulato limpa o nariz; um
rapaz paquera Paula Ramos (a estrela de Mojica Marins), ela se muda de lugar
incomodada; o próprio diretor assiste ao filme, olhos presos ao écran, enquanto
Reichenbach ronca ao seu lado; atrás, Antônio Lima leva uma cantada de Júlio
Calasso Júnior.; á frente dos dois, Paulo Villaça, o Luz mastiga uma indigesta
espiga de milho, cujas sobras cospe no banco da frente, enquanto assiste ao
péssimo filme colonialista de binóculos. O cinema surge na trama como
esconderijo ideal do perigoso bandido. Há uma estranha confraternização no
reduto do sonho, onde cada ser solitário e desesperado tem coisas a esconder, e
se escondem no espaço livre da sala escura e mágica. O cinema em O Bandido é o
porto livre dos desajustados sociais. É na porta de um cinema que se inicia a
derrocada do Luz. Como o galã do faroeste que está anunciando na frente do “poeira”
cine Oásis, o Luz se descobre na foto de primeira página de um jornal
sensacionalista exposta na banca de jornais da praça Júlio Mesquita. O Luz é um
personagem trágico, assim como a Boca do Lixo e a organização criminosa Mão
Negra. Eles se confundem e se alimentam uns dos outros. O Luz é introduzido na
trama como num faroeste. Filho da favela, sobre o aprendizado imposto pelo meio
social de berço. É a lei do cão, nascendo das páginas do Arqueiro Verde e das
balas de uma 38 cano longo. O Luz jamais será um tímido Robin Hood dos pobres.
Sua sina está prenunciada pela fumaça do disparo de uma arma nos quadrinhos de
um exemplar do Cavaleiro Negro. Num dos mais belos planos, meninas de rua empunham
armas de brinquedo e de verdade em meio ao Lixão da Vila Maria, enquanto
devoram gibis violentos e um velho número do Eu Sei Tudo.
Luiz Linhares (o melhor
ator do Brasil) é o delegado Cabeção, ocupado com a morte e sobrevivendo dela.
Luz e Cabeção acabam morrendo juintos, um sobre outro, faces distintas da mesma
moeda, figuras do baralho. Rogério não deixa por menos: presta-lhes uma
homenagem à altura. Um coro fúnebre: samba e o sangue.
Pagano Sobrinho
(soberbo) é J.B. da Silva, o político salafrário, corrupto e demagógico, imenso
e magistral em sua opulenta carreira de representante popular. Considerado
oficialmente o cabeça da organização Mão Negra, tudo faz para atender tão algo encargo.
Roberto Luna é um Lucho Gatica, afilhado artístico de J.B., um misto de rufião
elegante e puxa-saco descarado. No meio do filme é inserido um número musical,
à moda das melhores chanchadas, com Lucho interpretando “Saber a Mi”, enquanto
J.B. distribui “santinhos” e “cabrais” para a plateia ensandecida. Outra sequencia
primorosa entre tantas de O Bandido. Há ainda a presença insinuante de Martin
Bormann, o carrasco nazista refugiado na América Latina, evidenciando os
verdadeiros anseios da Mão Negra. Finalmente, no universo masculino e sórdido
do poder e do crime surge Helena Ignez, a Janet Jane, a amante e algoz do luz,
que irá deixar o marginal a zero e denuncia-lo à polícia. Como nos filmes de
Hawks, a mulheres surge no universo masculino para desestruturar o equilíbrio
aparente da convivência social. Não é por menos que Documentário termina indicando
Hatari! como um óasis do cinema.
O Luz é também um musical
espetacularmente enrustido. Uma seleção bem ao gosto do Telefone Pedindo Bis
(memorável programa de Moraes Sarmento na rádio Bandeirantes).
Toda a nossa tradição
contida em uma mal comportada colagem de boleros, guarânias, xotes e sambas
suburbanos. O tema central é o clássico “Vereda Tropical”, ornamentando a
epopeia marginal narrada em galopante ritmo de seriado na voz rascante e
populista de Hélio de Aguiar.
O
Bandido da Luz Vermelha deveria ser exibido em sessões
contínuas e ininterruptas no cine Arizona em São Paulo e do Cineac Trianon no
Riuo de Janeiro. Num mesmo filme: um documentário, vários trailers, um seriado
empolgante, um short institucional e dois filmes de ficção. Um sobre o
nascimento, vida, paixão e morte de um bandido pé-de-chinelo (tem momentos do Bandido que lembra e muito o “clássico”
Mártir do Calvário), e outro sobre a misteriosa organização Mão Negra às voltas
com a marginalia e o poder mambembe de uma metrópole do terceiro mundo. Um
filme extraordinário e à parte no cinema brasileiro e uma obra única na seara
cinematográfica mundial. O cinema entendido não como literatura ou teatro
filmados, mas como uma linguagem própria, nascida da paixão, compreensão e
prospecção do meio de expressão em questão: o cinema.”
Publicado originalmente
na revista “Cinema”, número zero, março/abril de 1996.
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