Por J.L. Ferrete
Seleção e transcrição:
Matheus Trunk
Ariovaldo Pires, o Capitão Furtado |
Ariovaldo Pires nasceu em Tietê, São Paulo, no dia 31 de agosto de 1907 – sábado. “Um começo de século ebuliente e já delirante”, como diria mais tarde Alain Tourraine. Pablo Picasso vai dando início ao Cubismo (Les demoiselles d`Avignon), ao mesmo tempo que está nascendo o pintor brasileiro Clóvis Graciano. Acaba-se de inventar a máquina elétrica de lavar roupa e nesse mesmo momento vem ao mundo o sociólogo e historiador Caio Prado Júnior. Não há nenhuma guerra no mundo (a Russo-Japonesa terminara em 1905), mas o biologista russo Elie Metchnikoff descobre que os glóbulos brancos do sangue destroem as bactérias. Georges Urbain revela na França um novo elemento químico, o lutécio, ao passo que, na Rússia, Igor Stravinsky ainda está tomando lições de música com Rimsky-Korsakow. Ernst Mach contesta os juízes sintéticos a priori de Kant, afirmando que tais juízos são a posteriori, no mesmo mês em que o papa São Pio X publica a encíclica Pascendi dominici gregis, condenando os modernistas.
Rudyard Kipling recebe
o Prêmio Nobel de Literatura quase na mesma ocasião em que Rui Barbosa vai a
Haia como nosso ministro plenipotenciário, onde se distingue pela defesa dos
pequenas Estados, argumentando pela “força do direito da força”. Gustav Mahler
compõe sua Oitava sinfonia (a Sinfonia dos mil, concebida para
mil executantes), enquanto, no Brasil, o presidente Afonso Pena põe em ordem as
escalavradas finanças do país. Nos Estados Unidos nasce o famoso cantor de
música rural Gene Austry, sete meses após 500 mil pessoas inaugurarem o
primeiro desfile carnavalesco na avenida Central, do Rio. Bud Fisher cria a
primeira história em quadrinhos diária (Mr. A Mutt, que no ano seguinte,
transforma-se em Mutt and Jeff) meses antes de David W. Griffith
introduzir na linguagem cinematográfica a luz artificial, o grande plano e os
truques de fotografia e laboratório.
Enquanto isso, nascia
em Tietê, SP, Ariovaldo Pires, filho dos primos João Baptista Pires e Anna
Joaquina Pires, e terceiro de uma série dos nove que o casal teve. Em
depoimento que nos prestou alguns meses antes de falecer, Ariovaldo elogiava
sua facilidade em guardar detalhes, afirmando haver nascido numa quarta-feira
exatamente ás 16h30 horas. Verificamos, porém, que ele estava enganado. Consultando
uma relação dos calendários passados e futuros, de 1800 a 1999, descobrimos que
o dia 31 de agosto de 1907 num sábado (The New York Times Encyclopedic
Almanac, edição 1971).
“Meu pai, um sitiante –
contou-nos Ariovaldo -, tinha uma olaria, nessa ocasião. As telhas que ele
produzia no sítio ficaram famosas por sua extraordinária resistência e formato
homogêneo. O tio Cornélio (Pires), que pesava nessa época mais de cem quilos,
pisava – e chegava a pular – em cima delas sem que se quebrassem!”
Ariovaldo Pires não
nasceu no sítio, porém. Nasceu no centro de Tietê, numa casa que ainda está lá,
à rua Porto Geral, número 25. “Era um lugar bonito – confessou-nos ele – com
uma vista que jamais esquecerei. Quando saímos todos de lá, e eu tinha apenas
seis anos, quase chorei de emoção só em pensar que jamais retornaria àquele
lugar. Íamos para bem longe, enfim...” O ‘bem longe’ não era tão longe assim –
Botucatu, que, entalada entre as regiões de depressão periférica e o planalto
ocidental do Estado, seguia o mesmo curso noroeste da riqueza do café, após a
derrocada do Vale do Paraíba -, mas, naquele tempo, as distâncias hoje vencidas
facilmente por automóveis eram medidas pela capacidade de deslocamento-tempo em
tipos mais rudimentares de transporte.
Ariovaldo nunca soube
exatamente por que o pai decidiu deixar Tietê e sua olaria e instalar-se em
Botucatu. Mas foi para lá que toda a família mudou, numa época em que o ‘tio
Cornélio’ já começava a fazer algum sucesso com dois livros de versos caipiras
e se transformava em pioneiro da divulgação do que o caboclo paulista criava
artisticamente. Foi em Botucatu, aliás, que nasceram os demais filhos de João
Baptista e Anna Joaquina, não recordando Ariovaldo as respectivas datas.
Conversando conosco, certa ocasião, ele só pôde garantir que Mauro
(posteriormente famoso radialista, falecido em outubro de 79) havia sido o
primeiro dos filhos, sendo Thyrso o oitavo. Das três irmãs, duas tinham
falecido por ocasião do surto de gripe espanhola, ou influenza, em 1918.
“Nesse ponto minha memória nunca foi boa” – admitiu ele.
Batizado como Ariowaldo
(com dáblio mesmo, embora estejamos aqui mantendo a grafia atualizada, como
vê), disse-nos vagamente que esse nome lhe foi destinado por sua mãe, pois, na
ocasião em que estava para nascer, ela lia um romance cuja personagem principal
assim se chamava. Fascinada pelo nome, Anna Joaquina não titubeou em atribuí-lo
a seu terceiro filho. “Nunca consegui descobrir que romance era esse”,
explicou-nos Ariovaldo. “mas, até que acabei gostando desse nome”.
Estamos em 1913.
Botucatu (para onde, como vimos, mudou-se toda a família de Ariovaldo pires) é
uma das mais prósperas cidades do interior de São Paulo. Sua riqueza repousa
quase integralmente na lavoura cafeeira que, até cerca de 1850, estava toda
concentrada no Vale do Paraíba. É o café, então, a grande riqueza do país,
transformando São Paulo no Estado mais próspero da União e, como se sabe,
ensejando-lhe financeiramente o rumo industrial que depois tomou em definitivo.
Pela Lei Eusébio de
Queirós, de 1850, contudo, a proibição do tráfico de escravos dificultava
sobremaneira a possibilidade de mão-de-obra necessária para plantio, colheita e
acondicionamento, tendo-se que recorrer não só à mão-de-obra imigratória que
para cá chegava, como também à circulante interna – em especial do próprio
Estado de São Paulo.
Estradas de ferro construídas para recolhe a riqueza onde estivesse e, via
capital, transportá-la para o porto de santos (de onde era levada ao exterior),
acabam, na verdade, por unir regiões geograficamente distantes e facilitar a
locomoção geral, seguindo antigos percursos de índios, tropeiros e
bandeirantes. O planalto ocidental do Estado começa a ligar-se mais
praticamente às outras regiões físicas de São Paulo, servindo de elo os trilhos
de estradas como a São Paulo Railway, a Paulista e a Sorocabana.
Botucatu, quando a
família de Ariovaldo Pires para lá se deslocou, representava nesse complexo
econômico uma das peças mais importantes, e não apenas pela riqueza do solo –
que superava a fluminense. As técnicas desenvolvidas in loco mostravam-se
especialmente eficientes. E havia ainda a vantagem de maior proximidade com o
planalto atlântico, facilitando a rede de transportes. É possível, pois, que a
razão de os Pires se deslocarem de Tietê para Botucatu tivesse a explicação
lógica de um ‘desvio na direção do dinheiro’ e de melhores condições de vida.
Olarias e telhas progrediriam muito mais num centro econômico-financeiro assim
desenvolvido.
“Em Botucatu, até os 12
anos de idade, fiz meus estudos”, revelou-nos Ariovaldo. “Até o chamado
complementar que antecedia o normal”. Depois, como era natural na época – pois
menos de 1% da população tinha acesso a universidades -, ele tece de aprender
um ofício. Escolheram-lhe o de tipógrafo, numa empresa pertencente a Manuel
Deodoro Pinheiro Machado (sobrinho do aguerrido líder do Partido Republicano),
sendo que ali, realmente, teve início sua carreira – como ele próprio afirmava
– “nas letras”.
Botucatu anos 1920 |
Editavam-se muitos calendários nessa tipografia e, em regra, eles traziam no rodapé, além de efemérides, pensamentos e quadrinhas. Ariovaldo percebeu, de pronto, que as quadrinhas (singelas estrofes de quatro versos) eram muito repetidas e banais como, por exemplo, “você diz que sabe muito / borboleta sabe mais / voa de perna para cima / coisa que você não faz”, merecendo algo mais substancioso. Por conta própria (e com a autorização do patrão), ele começou a compor novas quadrinhas e imprimi-las nos calendários que iam saindo.
“Um dia, na Bahia – contou-nos
ele -, quando diretor-artístico da Rádio Excelsior de Salvador, certo amigo,
trouxe-nos um livro de Leonardo Mota com quadrinhas recolhidas do folclore
nordestino. Qual não foi surpresa, depois de tantos anos, vendo entre as tais
coisa do ‘folclore nordestino’ inúmeras daquelas quadrinhas que eu havia feito
em Botucatu por volta de 1920 ou 1921!”. A partir daí – conforme Ariovaldo nos
confidenciou – ele passou a olhar com desconfiança certas coisas do ‘folclore’
espalhadas por aí, pressentindo inúmeros lesados e muitos ‘aproveitamentos’
desse tipo.
Á pergunta sobre se
sabia tocar algum instrumento musical, Ariovaldo Pires sempre respondeu que não
– ao menos nas entrevistas que ouvimos dele com outros. Em meados de 1978,
porém, lanchando juntos num bar da avenida Ipiranga, em São Paulo, ele nos
contou que havia tentado o violão. Tinha sido nessa fase de Botucatu, onde
havia muitos seresteiros. Certa noite, entretanto, um soldado chamado Serafim
(esse nome nunca mais esqueceu) deu um ‘carreirão’ em grupo do qual ele fazia
parte, e que estava perturbando a vizinhança. Era noite. Ariovaldo saiu
correndo com seu violão e, ao dobrar afoitamente uma esquina, deu com o bojo
num ‘fradinho’ (nome dado a certo poste de metro e pouco de altura, próprio
para amarrar animais) só ficando com o braço do instrumento na mão. “Não sobrou
violão e nem vontade de continuar tocando violão”, desabafou ele. “Antes de
chegar em casa, joguei fora o que sobrara do instrumento”.
O fato de Botucatu
representar um dos mais importantes polos econômicos do Estado de São Paulo e
atrair para sua região imigrantes e gente de outros pontos do país fez também
com que sua criatividade artístico-regional alcançasse relativa importância em
termos de ‘interioranismo’. Foi lá, é importante saber, que surgiu o grande
clássico da música caipira do nosso século: Tristeza do Jeca.
Importante, ademais, é conhecer este depoimento que nos fez Ariovaldo Pires a
respeito de como nasceu essa composição.
“Eu estava em Botucatu
quando meu pai era zelador no Clube 24 de Maio. Todas as tardes reuniam-se os
amigos na calçada na frente do clube e o Angelino de Oliveira (que tocava
violão e guitarra portuguesa muito bem) compunha para aqueles saraus ali
realizados. Sua pretensão, porém, limitava-se aos saraus botucatuenses, ele nem
imaginava que seus trabalhos ultrapassassem as fronteiras do município. Um dia,
Angelino resolveu submeter aos amigos sua opinião sobre uma toada que havia
composto com o título de Tristeza do Jeca. Ele próprio interpretou-a. Os
amigos gostaram e intercederam junto aos irmãos Levy, que eram donos do Jornal de Botucatu, para que publicassem
letra e música numa das edições do periódico. O pedido foi atendido. Logo se
espalhou. Todos os artistas que passavam por lá aprendiam a toada e incluíam-na
em seu repertório – inclusive Batista Júnior, famoso intérprete da época e pai
das cantoras Dircinha e Linda Batista – mas, inexplicavelmente, só 12 anos
depois é que a música seria levada a discos por Paraguassu”.
O cantor Roque Ricciardi, o Paraguassu (1890-1976) |
Essa gravação de Paraguassu, esclareça-se, foi feita no selo Columbia (Continental, a partir de 1943) em 1937, tendo no acompanhamento o Grupo Verde e Amarelo. Retrocedendo-se 12 anos se nota que Tristeza do Jeca nasceu em 1925, sendo certo, outrossim, que o próprio Paraguassu (conforme entrevista que nos concedeu alguns meses antes de falecer) já interpretasse essa toada em suas apresentações públicas muito antes de registrá-la em discos. “A música já era muito conhecida – explicou-nos o cantor – e não entendo a razão de ter sido eu o primeiro a tomar a iniciativa de gravá-la”.
O desentendimento de
Paraguassu, todavia, tinha uma explicação lógica: até então ainda havia certo
preconceito com relação à chamada música caipira nos centros mais evoluídos do
país, só se aceitando a sertaneja (do Nordeste) e mesmo assim em estilizações
que se aproximassem do culturalmente consagrado pelas elites consumidoras.
Caipira era um quase ‘transtorno cultural’ no Brasil, simbolizando pela
deprimente figura de Jeca Tatu e por seu modo repleto de rotacismos e lambacíssimos
no falar. Muitos poetas e músicos de cidade tentavam depurar-lhe a figura
ridicularizada através de enredos onde o pitoresco entrasse como atração mas,
na sua criatividade autêntica, inclusive com instrumental característico, só
caipira com caipira se entendiam.
Andrade Muricy interpretava com cru realismo a realidade de época. Atribuindo a
determinado tipo de música regional caráter folclórico, afirmava que ele seria
sempre, em face da arte, como as grandes belezas naturais, quer dizer: “matéria
para a arte e não arte”. O caipira, portanto, bem como o chamado sertanejo,
poderia servir de matéria-prima para obra de arte, mas assim não era
considerado em bruto, por inadequação a princípios básicos acadêmicos.
Esse preconceito já
estava sendo abolido em quase todos os países europeus, e nos Estados Unidos
havia até mesmo profundo interesse na divulgação desse ‘folclore’ formativo de
sua cultura urbana. Em alguns centros brasileiros (Rio e São Paulo, por
exemplo) a intolerância quanto ao regional só se atenuava com boas explicações
no prefácio da obra, quase sempre mencionando-se um músico respeitável como
‘estilizador’ ou ‘recolhedor’ e se destinando a uma voz ‘educada’ a
interpretação. Consulte-se velhos catálogos de discos mecânicos em nosso país e
se observará a ausência de praticamente total de música caipira nas gravações
feitas até 1928. O mesmo, porém, já não ocorria com relação ao afro-brasileiro,
de maior aceitação entre as classes dominantes por mera questão de convívio
cultural mais ‘próximo’.
Ariovaldo Pires
contou-nos que viveu em Botucatu até os 14 anos de idade. Depois teria se
deslocado para Lençóis (à época, Andradas), onde aprendeu a manobrar tratores
(novidade que surgia no campo) e teve por campanha cerca de vinte trabalhadores,
“todos eles bandidos escondidos da polícia” – segundo soube depois.
A julgar-se pela data
que atribuiu a Tristeza do Jeca (1925), todavia, deve ter retornado a
Botucatu logo em seguida, pois na época em que Angelino de Oliveira compôs essa
toada- “estando Ariovaldo presente como testemunha”, segundo ele próprio -,
nosso focalizado teria 18 anos de idade e quatro anos haveriam passado de sua
despedida da cidade. Existe um equívoco lacunoso no que ele nos esclareceu,
portanto, parecendo mais lógica a hipótese do retorno a Botucatu na sequência
cronológica de fatos biográficos.
Em 1926. Aos 19 anos de
idade, Ariovaldo Pires decidiu ir conhecer a capital do Estado – São Paulo. A
produção exagerada de café e a queda que essa riqueza estava encontrando em
termos de preço no mercado mundial já não ensejavam mais atrativos para os
jovens interioranos, provocando verdadeiro êxodo para a sede do Estado que,
então, oferecia inúmeros estímulos para moços ambiciosos. “Jamais pensei em ser
artista e, na verdade, nunca considerei como tal”, confidenciou-nos Ariovaldo
durante uma conversa de lance. “Jamais poderia desconfiar, porém, que minha
vida a São Paulo iria dar em coisas que nunca imaginei e aconteceriam mais
depressa do que eu tinha condições de supor”.
Houve vários empregos.
O primeiro deles foi na empresa Fratelli Grisanti, como entregador de
encomendas. “Nesse trabalho – contou-nos Ariovaldo – aprendi rapidamente a
conhecer os vários pontos da cidade. Foi bom porque mais adiante esse
conhecimento me facilitaria sobremaneira em outras atividades”. De espírito
inquieto, todavia, ele resolveu ir para Santos e tentar a sorte na Marinha
Marcante. Fez exame, tirou carta de praticante de piloto, mas desistiu, nem
chegando a embarcar.
Foi mais ou menos por
essa época que Ariovaldo Pires praticou uma de suas façanhas memoráveis – a nós
narrada por sua mulher. Junto com mais cem rapazes, resolveu fazer a pé o
percurso entre São Paulo e Santos (cerca de cem quilômetros em roteiro
irregular), fazendo o uso da velha estrada Santos – São Paulo (a única
existente, aliás) e caminhando sem parar. De todos os participantes só ele
logrou chegar, indo até o município de São Vicente visitar uma tia.
Terminando 1927,
Ariovaldo resolveu ficar em definitivo na capital. Retornou a ela e conseguiu
emprego como auxiliar de escritório na empresa Henrique Metzger, que atuava no
ramo atacadista de várias coisas. Do escritório passou às vendas, mas foi a
partir daí que começaram a adverti-lo sobre a necessidade de aprender inglês:
“Sem isso – diziam-lhe – você jamais terá chance em qualquer atividade”.
O compositor, escritor, folcloarista e humorista Cornélio Pires (1884-1958), tio de Ariovaldo Pires
Seu tio Cornélio, na
época, ficava muito em São Paulo, e também aconselhou-o assim: “Olha, no Brasil
quem não falar inglês não tem futuro. Trate de aprender um bocadinho de
inglês...” Pressionado dessa maneira, Ariovaldo Pires (então com 21 anos de
idade) procurou uma professora particular chamada Miss Ennis, com a qual tratou
das aulas semanais. Voltamos, neste ponto, aquele momento em que interrompeu-se
a narrativa referente a Cornélio Pires.
A participação de Graça
Aranha na Semana de Arte Moderna teve caráter decisivo no estímulo a artistas
populares. Entre outras ideias, ele preconizou a necessidade de o Brasil
adquirir consciência de sua realidade, fugindo de três místicas negativas: o
ufanismo da grandeza e riqueza do solo sem o esforço humano; a imitação
estrangeira sem um sentido de adaptação às nossas necessidades culturais,
raciais e ambientais; uma religião mais sentimental que de convicção.
Num balanço geral,
aliás, do ciclo de conferências organizados por Ronald de Carvalho. Manoel
Bandeira, Guilherme de Almeida, Sérgio Milliet, Menotti del Picchia, ficou
claro que no Brasil se havia de estabelecer uma pesquisa estética permanente,
dever-se-ia atualizar a inteligência artística brasileira e, sobretudo tinha-se
de estabilizar uma consciência criadora nacional. Dessa semana de arte
surgiriam também duas tendências literárias básicas: o modernismo (a influência
europeia, preferido por uns) e o nacionalismo xenófobo, com a ideia de ‘marca
para o oeste’ (verde-amarelismo) ou da procura da ‘realidade brasileira’
(corrente Pau-Brasil) ou de pureza nativista combatendo as ‘influências
estrangeiras’ (antropofagismo).
A corrente
nacionalista, pela simples análise dos fatos históricos decorrentes da
controvertida Semana, haveria de tomar impulso a partir de então,
sensibilizando decisivamente a intelectualidade brasileira e incutindo na mesma
relativa curiosidade quanto a nossa realidade ainda ‘oculta’. Os poetas populares
ou autores de música tida como ‘regional’, por exemplo, simplesmente mascaravam
o real com o lirismo colorido do ideal ou, no intuito de ‘divertir’, levavam ao
grande público dos centros intelectualizados distorcida imagem de um
interiorano que pouca coisa tinha a ver com ‘purezas nativistas’. Em suma:
estava falando alguém – em São Paulo, a propósito – que desvendasse a realidade
intrínseca de um material a serviço da arte mas que, no dizer de Andrade
Muricy, não chegava a ser arte.
Cornélio Pires foi
extraordinário pioneiro nesse aspecto. Após uma série de publicações nas quais,
sem rebuços, mostrava um tipo de caipira astuto, criativo e de mais
personalidade que se imaginava, não obstante alguma ingenuidade só para fins
comparativos, ele decidiu que estava na hora de levar esse typus brasiliensis, na sua autenticidade, a um meio já desenvolvido
de comunicação de massa existente desde o começo do século no país: o disco.
Esse espécie de “som em
conserva” (como dizia Menotti del Picchia) estava atingindo regiões de consumo
insuspeitadas pelos próprios diretores das gravadoras existentes no Brasil à
época – Odeon, Victor e Columbia -, não se admitindo, do ponto de vista
mercadológico, que o interior prestigiasse seu próprio produto cultural, pois a
ideia geral de absoluto colonialismo artístico dos grandes centros. Estando em
São Paulo, onde também se encontrava instalada a sede de uma das três
gravadoras – a Columbia, representação local da Byngton & Company -,
Cornélio Pires não teve escolha de não optar pela que lhe propiciava maior
proximidade.
Por incrível que
pareça, no entanto, ninguém falava português inteligível na Columbia da
Byington & Company. O diretor era americano – Wallace Downey – e só com ele
se tratava negócios em fase preliminar. Cornélio soube que seu sobrinho
Ariovaldo já estava no terceiro mês de aulas de inglês e decidiu valer-se dele
como possível intérprete. “Dá pra você descalçar as botas”, perguntou-lhe,
nesse sentido atual da “dá pra você quebrar o galho”. Ariovaldo respondeu-lhe:
“Olha, quem não arrisca não petisca, eu vou até lá. Se der pra me entender com
o homem, muito bem! Se não der, a vergonha maior é dele, que está aqui em nossa
terra e não entende o que a gente quer com muito esforço chegar a expressar!”.
Chegava ao fim o ano de
1928 quando isto ocorreu. E a conversa entre Ariovaldo e Wallace Downey deu
certo. Iria, aliás, resultar em algo mais importante no destino do futuro
Capitão Furtado, mas este já é assunto para as próximas linhas.
Downey encaminhou
Cornélio Pires ao proprietário da empresa, Byington Jr. Este, para não fugir à
regra geral do preconceito quanto ao ‘não-artístico’, rejeitou a proposta de
Cornélio Pires para que as gravassem discos com material caipira autêntico em
seu selo. “Não há mercado para isso, não interessa”. Cornélio insistiu: “E se
eu gravar por conta própria”. Aí Byington Jr. Tentou opor dificuldades: “Bem,
nesse caso você teria que comprar mil discos. Quero dinheiro à vista, nada de
cheque, e se o pagamento não for feito hoje mesmo, nada feito”. Era uma forma,
nota-se, de descarte peremptório ou, em outras palavras, propostas de quem não
quer mesmo fazer negócio.
Ariovaldo Pires jamais
pressentiu nessa atitude de Byington Jr. qualquer intenção malevolente. Ao
contrário: “Byington gostava muito de meu tio – esclarecia ele – e só queria
evitar-lhe prejuízos na certeza de um empreendimento (ou investimento)
malsucedido. Essa foi, na verdade, a intenção”.
Cornélio Pires fez com
Byington Jr. o cálculo de quanto custariam os mil discos e saiu. Foi à procura
de um amigo na rua Quinze de Novembro (centro de São Paulo), um tal de Castro,
e pediu-lhe dinheiro emprestado. Retornou logo em seguida à sede da empresa e,
entrando na sala de Byington Jr., jogou sobre a mesa deste um grande pacote
emaçado em jornal. “O que é isso?”,
perguntou-lhe Byington espantado. “Uai, dinheiro! Você não queria dinheiro?”,
respondeu Cornélio. Byington abriu o pacote e não disfarçou seu assombro: “Mas
aqui tem muito dinheiro!”. “É que, ao invés de mil discos, eu quero cinco mil”,
explicou Cornélio Pires.
Meio aturdido, Byington Jr. tentou convencê-lo de que cinco mil discos
era muita coisa, era “uma loucura”. Naquele tempo não se faziam prensagens
iniciais em tais quantidades nem para artistas famosos! Cornélio, porém, foi
mais além no espanto em que deixou o dono da gravadora: “Cinco mil de cada,
porque já no primeiro suplemente vou querer cinco discos diferentes. Então, são
25 mil discos”.
Deixando de lado a perplexidade e encolhendo os ombros, Byington Jr.
mandou chamar alguns funcionários e pôs-se com estes a contar o dinheiro.
Passado o recibo, Cornélio pires entrou sem rodeios no assunto: “Bem, agora eu
é que vou fazer minhas imposições. Quero uma série só minha. Vou querer uma cor
diferente: o selo vai ser vermelho. E cada disco vai custar dois mil-réis mais
que seus sucessos. Mais ainda: você não vai vender meus discos, só eu poderei
fazê-lo”. Byington Jr. deu uma ligeira risada, como que querendo dizer: “Mas,
também, quem é que vai querer comprar seus discos?!”. E partiu-se para a produção
e a prensagem. Os discos ficariam prontos mais ou menos por volta de maio de
1929 – no cálculo de Ariovaldo Pires. Como ele passou a ser empregado da
Byington & Company (conforme veremos a seguir) nessa época, “mas só foi
registrado alguns meses mais tarde, em 7 de agosto de 1929”, acredito que o mês
de lançamento tenha sido maio.
A série particular de Cornélio Pires (pioneira, ademais, no campo do
hoje chamado disco independente ou alternativo) iria sair do jeito que tinha
sido combinado: numeração identificável diferente (começando de 20.000,
enquanto a Columbia propriamente dita seguia a série 5.000) e selo vermelho (ou
“cor de vinho”, como prefere José Ramos Tinhorão). O selo, não obstante,
conservava a marca Columbia com todas as características particulares dessa
etiqueta, fazendo presumir que Byington Jr. não tenha aberto mão da
prerrogativa de evidenciar o fabricante. Os cinco discos iniciais da série,
além disso, estavam divididos entre o humorístico e o “folk-lórico” (sic),
tendo apenas Cornélio na interpretação.
O desastre comercial que Byington Jr. esperava não ocorreu. Ao
contrário: Cornélio Pires saiu em dois carros na direção de Bauru, fazendo do
automóvel de trás uma verdadeira discoteca, tendo por intenção, antes, parar em
Jaú. Ao chegar a esta cidade, todavia, já tinha vendido os 25 mil discos que
transportava consigo! Teve de telegrafar para Byington e pedir-lhe uma nova
prensagem a ser distribuída em Bauru.
A notícia da existência dos discos de Cornélio Pires no interior do
Estado alvoroçou o interior paulista, de Jundiaí a Assis, de Sorocaba a São
José do Rio Preto. Todos queriam essas gravações, mesmo com preço dois mil-réis
mais alto. O próprio Byington Jr. reconheceu que havia errado em seus
prognósticos e, desenxabido, propôs ao patrocinador da série que sua empresa
distribuísse os discos. Muitas lojas da capital os estavam reclamando
insistentemente e havia gente que tentava compra-los na fábrica. “Tio Cornélio
era mais idealista que comerciante”, contou-nos Ariovaldo. “Após a primeira
coleção de cinco discos, autorizou a distribuição destes e dos demais por
Byington”.
Mais adiante, Cornélio Pires produziria outros 43 discos para sua série (que
terminaria em meados de 1930 no número 20.047), não só fazendo uso de artistas
amadores ou já profissionais do interior – por exemplo: Sebastião Arruda,
Mariano e Caçula, Arlindo Santana, Paraguassu (escondido por trás do pseudônimo
de Maracajá), Raul Torres (disfarçado como Bico Doce), Zé Messias e Luizinho -,
como também revelando, entre outros, um gênero tipicamente caipira só conhecido
em seu hábitat: a moda de viola.
Instaurava-se no Brasil, deste modo, a era do disco caipira. Velhos
tabus caíam por terra e antigas barreiras preconceituosas vinham abaixo, ao
menos por enquanto. Mas, 1929 foi apenas o começo de alguma coisa que se
plantava artisticamente, em especial a partir do interior das regiões
Centro-Oeste, Sudeste e Sul do país. Havia muito a ser feito e o caminho a
percorrer iria se mostrar longo.
Publicado originalmente em FERRETE, JL. Capitão Furtado: viola caipira ou sertaneja?. Rio de Janeiro: Funarte, Instituto Nacional de Música, Divisão de Música Popular, 1985.
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