Por J.L. Ferrete
Seleção e transcrição:
Matheus Trunk
Levo comigo,
Como humilde sertanejo,
Muito mais do que um
desejo:
O amor dos bons irmãos
Assim unidos,
O sertão e a cidade
Numa prova de
igualdade,
Vamos dar as mãos.
Eu vou cantando,
Ao deixar meu rancho
fundo,
Porque vejo um novo
mundo
No país que Deus nos
deu!...
Sigo o exemplo
De outro jeca de alma
nobre
Que também foi muito
pobre;
Lutou muito...mas
venceu!!!
(trecho de Hei de
Vencer!, de Ariovaldo Pires e Juvenal Fernandes)
Capitão Furtado é o do meio com brilhantina e sem bigode |
A intermediação
linguística, vimos, foi um sucesso mostrando que em apenas três meses de curso
com Miss Ennis, Ariovaldo Pires já se mostrava apto a conversações em inglês.
Downey, por seu turno, parece ter-se entusiasmado coma aquele rapaz
desembaraçado e tranquilo pois, terminada a primeira série de gravações de
Cornélio Pires, convidou o sobrinho-intérprete deste parta ser “uma espécie de
secretário” (conforme depoimento de Ariovaldo). “Sem querer – confessa o futuro
Capitão Furtado – entrei no mundo do disco. Ainda não como compositor. Isso
viria logo depois”.
Mais ou menos nessa
época inaugurava-se outra empresa do grupo Byington: a Rádio Cruzeiro do Sul,
que, com sua homônima do Rio de Janeiro, formaria a primeira cadeia radiofônica
do Brasil – a Rede Verde-Amarela. Em São Paulo, conforme alguns acreditam, a
Cruzeiro do Sul já teria começado por volta de 1924 com o prefixo de SQ-B1 e
nos primórdios do cristal de galena. Mais adiante, após experiências
frustradas, essa emissora ressurgiria (talvez em maio de 1927) com o novo
prefixo: SQ-BA. Novo fracasso. Por depoimento que temos de Ariovaldo Pires, a
Cruzeiro do Sul definitiva só iria aparecer mesmo no primeiro semestre de 1929,
no sistema moderno de válvulas, após experiências sempre adiadas. Durante a
fase experimental, por sinal, afirma-se que Wallace Downey (também seu diretor
técnico) teria conseguido algo inusitado em nosso país: conseguir patrocínio
exclusivo (da Atlantic Oil) para as curtas demonstrações ‘no ar’.
Certo é que, segundo
Ariovaldo, o início oficial e já com programação organizada da Cruzeiro do Sul
dar-se-ia no primeiro semestre de 29, acordando-se seu prefixo como PR-AO e,
pouco depois, PR-B6. A sede era num edifício ainda existente em São Paulo, no
Largo do Misericórdia, e onde também ficava a gravadora Columbia. “Downey,
nessa época de experiência, usava-me como uma espécie de cobaia do microfone”,
explica Ariovaldo Pires. “Era para ver a qualidade de som das gravações. Ele
dizia que eu tinha uma voz bonita e absolutamente fiel. A sua voz – dizia o
americano -, falando cara a cara com a gente ou passando por um microfone, não
muda. Nem por telefone. Nos EUA você ganharia muito dinheiro fazendo testes em
microfone ou aparelhos de som”.
O fato é que, no dia da
inauguração, ia haver um quadro caipira com a participação do ator Sebastião
Arruda mas, horas antes do começo da irradiação, este não pôde aparecer.
Wallace Downey não se perturbou, escalando imediatamente Ariovaldo Pires para o
papel. Afinal, ele era o autor do sketch – título que se dava no velho
rádio para encenações de curta duração e ninguém melhor que o idealizar dos
script (outro nome típico à época, para texto) á frente de um dos papéis. “Na
ocasião – disse- nos Ariovaldo, em 1979 -, eu era mais caipira que hoje. Fiquei
à vontade interpretando um fazendeiro. Mas, da tábua de salvação que eu
constituí naquele momento, nasceria uma situação definitiva. O patrocinador
(uma marca de máquina de escrever) achou que não era justo Sebastião Arruda
tomar meu lugar em seguida – embora ele fosse admirável nos papéis de caipira –
e impôs minha continuação, principalmente porque eu me havia saído muito bem. A
partir de então transformei-me em autor e intérprete dos quadros caipiras da
Cruzeiro do Sul”.
Nesse mesmo dia em que
se inaugurou com diversos espetáculos a Rádio Cruzeiro do Sul, Ariovaldo Pires
iria estrear na música. Junto com seu conterrâneo Marcelo Tupinambá, já
bastante conhecido em todo o país por peças como O cigano, Maricota
sai da chuva e Matuto, compôs a toada Coração, cuja letra era
sua.
Coração,
Não me faça assim
Eu não sei por que
razão
Você gosta de mim
E diz que não.
Eu passo a vida a
cismar
Só pensando em você
Há dentro do seu olhar
Meu amor, um não sei
quê.
Coração,
Não me engane assim
A sua boca diz que não
Mas o seu coração
Me diz que sim
A toada foi dedicada a
Décio Pacheco Silveira pelos autores e teve interpretação nesse dia de
inauguração da rádio por Januário de Oliveira, que, na oportunidade, foi
acompanhado ao piano por Marcelo Tupinambá. Estranhamente, de qualquer modo,
Januário de Oliveira jamais chegou a registrar em discos essa composição por
ele próprio revelada, embora fosse dos cantores paulistas que mais gravações
fizesse na época.
Em 1935, no chamado
‘disparate cinematográfico’ produzido em São Paulo pela S.OS. Filmes e dirigido
por Vitório Capellaro, Fazendo fita, Januário seria escalado para
interpretar uma música e escolheria Coração. A toada, contudo, ficaria
perdida no meio de tantos números musicais com gente célebre e, a bem da
verdade, passou praticamente despercebida no filme. Só na primeira metade da
década de 50 é que Coração aparecia num 78 rpm feito por Francisco Magno
no selo Copacabana (disco número 5.623) mas, então, sem qualquer repercussão
perante público e crítica, talvez mesmo por absoluta falta de promoção.
Coração, de 1929, marca de qualquer maneira a estreia de Ariovaldo Pires
como letrista musical e, conforme ele nos costumava confessar, tinha um sentido
profundamente sentimental em sua vida. “As coisas nos vão levando na direção de
caminhos ás vezes não imaginados”, dizia Ariovaldo. “Jamais podia pensar que um
dia ingressaria no mundo artístico mas, como você vê, não foi possível evitar”.
O marinheiro que jamais
chegara à primeira viagem, o tipógrafo que compunha quadrinhas para rodapés de
calendários e o vendedor de rua que não dera certo “porque precisava aprender
inglês” e fora um dos primeiros tratoristas deste país encontrava afinal – e
por incrível acaso – um rumo que custara a definir-se: a vida artística.
A vida artística, por
sinal, já se mostrava bruburinhante na capital paulista nessa passagem dos anos
20 para 30. Paraguassu dominava o cenário, evidentemente, e gêneros como o
tango (paulistano, porque no Rio era pouco cultivado), a modinha (“novela em
miniatura com enredo, à base da dor-de-cotovelo”, como definia ironicamente
Ariovaldo Pires), a canção de serenata, a toada (indefinição entre canção e a
modinha) e o recém-revelado samba-rural faziam o gosto da maioria dos paulistanos.
Havia, demais, inúmeros grupos de chorões atuando num tipo de criação
melodicamente mais próximo das cançonetas italianas ou das cantigas
portuguesas, diferençando-se, assim, do choro de raízes negras cariocas. Era a
música cantada, porém, que predominava, reservando-se para os bons
instrumentistas a secundária função de acompanhamento.
Em termos de
radiofonia, além da já mencionada Cruzeiro do Sul (definitivamente inaugurada,
como vimos, em 1929), São Paulo contava com outras duas estações: a Record
(assim chamada por seu fundador, Álvaro Liberato de Macedo, porque esse possuía
uma loja de discos – record, em inglês – assim intitulada e pretendia
identifica-la com o estabelecimento comercial) e a Educadora (atualmente Rádio
Gazeta). Cafés-chantants (como eram chamados à época os hoje denominados bares
ou ‘barzinhos’) havia inúmeros: o Girondino (esquina da rua Quinze de Novembro
com o Largo da Sé), o Guarani (rua Quinze de Novembro, ao lado d Casa Levy), a
Gruta do Tesouro (no Largo do Tesouro, esquina com rua Quinze de Novembro) e o
Cascata (equina da Senador Feijó com a Quintino Bocaiúva).
Muitos
circos e teatros, e três emissoras de rádio, imporia a transformação em
profissionais daqueles “músicos e cantores vadios” (como definiu-nos Paraguassu
tais personagens) que, antes, perambulavam pelas ruas do Brás ou circulavam em
noites garoentas por locais como a rua do Palha (hoje rua Sete de Abril) ou rua
Alegre (rua Brigadeiro Tobias). No fim dos anos 1920, e já em plena fase da
produção de discos gravados eletricamente (através de marcas emergentes como a
Columbia e Victor, ou preexistentes como a Odeon, de Figner), inúmeros
cantores, instrumentistas e outros de grande talento começam a salientar-se por
ampla popularidade.
Não
se via na crescente metrópole paulistana, contudo, qualquer sinal dessa arte
popular mais adiante consagrada como caipira. Ao estilizado, calcado no rural,
dava-se o nome de sertanejo ou regional, e quando a obra (musical ou semente
literária) vinha em sua forma autêntica, atribuíam-lhe o rótulo de folclórica e
alguém (o ‘recolhedor’) tomava lugar do verdadeiro autor. Cornélio Pires, como
foi dito anteriormente, seria o primeiro a sacudir essa rotina deslumbrante,
com os autênticos não-profissionais que revelou em discos e ao vivo. Mas
caipira ainda constituía na mente do citadino aquela imagem e pateta indolente
e ignorante, servindo somente para fazer rir em cena à mercê de seu grotesco no
mais das vezes imaginária.
Ariovaldo
Pires tinha consciência disso e passou a assumir em suas funções artísticas na
Cruzeiro da Sul o papel do caipira. Todavia, como ele nos esclarecia, seu
caipira era um cômico espirituoso e vivo, que sabia analisar os assuntos mais
sérios através de conclusões bem objetivas e simples. Seu estilo de ridendo
castigat mores não poupava ninguém que se julgasse intelectualmente mais
evoluído que o matuto. Os trocadilhos, além de tudo, eram extraordinários para
a época. Em seu Lá vem mentira (livro editado em 1938), por exemplo, há
uma passagem em que ele afirma ser o chapeleiro o homem mais leal do comércio.
Por quê? “Pruquê, quâno ele vende o chapéu, já
ele pergunta: qué que lê imbruie, u mercê perfére levá na cabeça?”.
Perguntamos-lhe certo dia se seu tio Cornélio tinha exercido
alguma influência sobre ele. “Ninguém influenciou minha carreira artística”,
respondeu prontamente. “Escrevendo, sou fiel a mim mesmo. Jamais procurei
estilo ou forma, e sempre levo pro papel o mais possível que imagino. Insisto
em dizer que não sou propriamente um artista, mas reconheço-me como intérprete
fiel do que represento”. Em suma: Ariovaldo Pires buscava jamais afastar-se da
autenticidade, cônscio da importância cultural de suas raízes. Seu caipira não
era nenhum néscio, porque ele próprio era um caipira e de forma alguma considerava
néscio.
Entrementes, a iniciativa de Cornélio Pires estava em fase de
frutescência. O inacreditável sucesso de seus discos pela Columbia levou não
esta gravadora a organizar suplementos caipiras com artistas como Genésio
Arruda e os pertencentes à série de Cornélio Pires (em acoplagens) como também
introduziu os selos concorrentes – Victor e Odeon – a formarem seus próprios
elencos no gênero, dando oportunidade a que emergissem Lourenço e Olegário,
Zico Dias e Ferrinho, Lázaro e Machado, Plínio Ferraz e João Michalany, Arlindo
Santana e Joaquim, além, naturalmente, dos indefectíveis imitadores urbanos do
regionalismo.
Ariovaldo Pires não é músico, é escritor e intérprete. Não
lhe ocorre, por enquanto, fazer uso de seu talento como letrista para aliar-se
a um autor musical e formar repertório rural. Junto com outros elementos da
Cruzeiro do Sul, porém, criou um programa que ganharia o título de Cascatinha
do Genaro (generalidade à maneira do mais recente Balança Mas Não Cai), no
qual, junto com outras personagens, destacavam-se caipiras – inclusive ele,
como um matuto típico.
Vale a pena abrir um parêntese neste ponto, contido, para
lembrar que, nessa fase de Cruzeiro do Sul, Ariovaldo Pires auxiliou Celso
Guimarães na criação de um programa de novatos pretendentes ao estrelato, ao
qual, em pioneirismo mais adiante contestado, deu o primeiro título de Programa
de Calouros. Pouco depois Ary Barroso lançava programa idêntico no Rio de
Janeiro, atribuindo-se a ideia do nome calouros e causando com essa declaração
inflamada polêmica que, ao fim e ao cabo, culminou com o esclarecimento total
de que Celso e Ariovaldo é que tinham a primazia. A verve de Ariovaldo Pires,
portanto, deu oportunidade a que surgisse um dos títulos mais populares de
programa que se conhecem até hoje em rádio e TV, tendo partido essa ideia, de
acordo com o que ele contou-nos, do apelido que se dava a quem ingressava numa
faculdade. “E não era a mesma coisa?”, perguntava
ele sorrindo. Naquele tempo, todavia, ninguém pensava em direitos sobre títulos
de programa e também ninguém os registrava como seus. Com isso, Ariovaldo Pires
deixou a ser detentor de uma das mais ricas marcas do país.
Em 1934, Ariovaldo Pires e o Cascatinha do
Genaro se transferiram para a recém-inaugurada Rádio São Paulo, PRA-5, cujos
estúdios ficavam na rua Sete de Abril ao lado do prédio da antiga Biblioteca
Municipal de São Paulo. Prosseguiu-se praticamente no mesmo esquema, embora
novos artistas tenham entrado no autêntico pastiche que constituía o
Cascatinha. João Batista de Andrade era diretor e fazia o papel de um vêneto
chamado Genaro. Itagiba Santiago interpretava outro italiano, o Beppo, enquanto
Nhá Zefa e Ariovaldo Pires se incumbiam da caracterização dos caipiras. Havia,
ainda, o turco Elias (protagonizado por Bruno di Lucca) e o cantor humorístico
Abdula, que só fazia paródia de tangos – mania de época, aliás.
O programa transformou-se em sucesso absoluto.
Enquanto na Cruzeiro do Sul não havia logrado tanta audiência (uma das razões
de sua transferência), através das ondas da São Paulo conquistou inteiramente o
público paulista. É neste ponto, todavia, que entra a ligação de Ariovaldo
Pires com a dupla Alvarenga e Ranchinho, e que, bem assim, vai surgir seu
auto-apelido de Capitão Furtado.
Ariovaldo Pires, o Capitão Furtado |
Publicado originalmente em FERRETE, JL. Capitão Furtado: viola
caipira ou sertaneja?. Rio de Janeiro: Funarte, Instituto Nacional de
Música, Divisão de Música Popular, 1985.
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