Por J.L. Ferrete
Seleção e transcrição:
Matheus Trunk
Cheguei na cidade
grande;
Eu nem gosto de
lembrar!...
Apeei na rodoviária,
Quase precisei
brigar!...
Chegou uma molecada,
A fim de me debochar,
Mas bastou eu dar um
berro,
Pra turminha se mandar!
(trecho de Sina da
cigarra, de Ari Guardião, o Capitão Furtado e Zé Batista)
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Capa do LP "Crepúsculo" do Capitão Furtado lançado em 1961 |
“Comecei cantando com
meu próprio nome, aos 18 anos de idade”, contou-nos ele. “Mas, sempre que eu
tinha oportunidade de exibir-me naquilo que eu gostava, não conseguia evitar
cantar No rancho fundo (samba-canção de Ary Barroso e Lamartine Babo que
havia sido lançado em meados de 31 por Elisa Coelho, tendo Sílvio Caldas,
porém, seu mais expressivo intérprete) e o diretor do regional da Rádio Clube
de Santos, Pinheiro, achou de me anunciar – por causa dessa insistência – com
Rancho. Assim, por causa de minha paixão por No rancho fundo eu acabaria
virando Rancho. Mais tarde fiquei conhecendo Murilo Alvarenga (1912-1978) –
logo depois da Revolução de 32 – no Circo Pinheiro, que se instalara em terreno
existente na esquina da avenida Conselheiro Nébias com a rua João Guerra, e
resolvemos formar uma dupla. Por acordo mútuo e considerando minha baixa
estatura, ficou decidido que seria Alvarenga e Ranchinho”.
“Começamos em Santos
mesmo – prossegue Ranchinho -, em 1933. E no próprio Circo Pinheiro. Deve ter
sido no mês de maio, porque eu fazia aniversário por essa época, ou seja,
estava completando vinte anos. O Alvarenga, também de maio, completava 21.
Assim, decidimos que a data de início de nossa dupla seria a de meu aniversário
– 23 de maio de 1933 -, pois comemorávamos juntamente. O Alvarenga era de 22 de
maio”.
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Alvarenga e Ranchinho, a dupla "milionários do rio" |
Ambos começaram com valsas, canções, tangos e modinhas, “na tentativa de cantar sério, a duas vozes”. Mas, como esclarece Ranchinho, ás vezes o público ria do jeito dos dois se apresentarem em dueto e, notando que “fazer rir é mais interessante artisticamente que fazer chorar”, acertaram contar piadas em meio ás apresentações. “O público de Santos nos fez assim’, admite Ranchinho.
O Circo Pinheiro (cujo
dono era um tal de Capitão Pinheiro, domador de feras) deixou a cidade cerca de
quatro meses após a dupla Alvarenga e Ranchinho haver-se formado. Deslocou-se
para São Paulo e os dois novos companheiros seguiram com ele. Alguns meses após
– e 1934 já estava bem andado -, inaugurou-se a Rádio São Paulo na capital
paulista, e era seu diretor-artístico o pianista e maestro Brenno Rossi. Este,
desejando novos valores para sua emissora, havia instituído ‘experiências’
(testes, em outros termos) a fim de conquistar boas revelações para o novo
elenco. Alvarenga e Ranchinho passaram pela ‘experiência’ e foram contratados.
Segundo o depoimento de Ranchinho que temos em gravação, o sucesso que
conquistaram foi decisivo para a carreira de ambos, e sua ida para o Rio de
Janeiro teria se devido à interferência de Brenno Rossi, que, em São Paulo, era
pianista de uma companhia de teatro chamada Casa de Caboclo – a qual, aliás,
tinha como sede o Rio, mas estava excursionando pela capital paulista. Em texto
redigido para a contracapa de uma reedição da Odeon, com antigos êxitos de
Alvarenga e Ranchinho nessa marca, Ariovaldo Pires conta outra história. Muito
diferente, aliás.
“Eu estava ensaiando o
programa Cascatinha do Genaro na Rádio São Paulo, quando vi dois meninotes
passando com seus instrumentos. Interrompi o ensaio e abordei a dupla até meio
abruptamente: - Vocês são violeiros?
Apanhados assim, de surpresa, os dois se entreolharam e fui direto ao caso: -
Se vocês cantam na viola, no estilo de Mariano e Caçula, posso encaixar vocês
num filme. – Fita de cinema? – perguntaram em dueto, num espanto. – Sim, em Fazendo
fita”.
Cabe aqui oportuna interrupção para explicar a razão de
Ariovaldo Pires interrogar dessa maneira os rapazes. Tendo já experiência em
produções cinematográficas, pois havia sido auxiliar bem-sucedido de Wallace
Downey na produção de Coisas nossas em 1931, Ariovaldo fora convidado
por Vitório Capellaro para auxiliá-lo na arregimentação de intérpretes de um
filme que iria rodar em 1935: Fazendo fita. O caso é que Capellaro
pretendia usar no filme a dupla Mariano e Caçula (com isso acrescentando u
quadro caipira na sequência) e sabia da amizade que Ariovaldo Pires tinha com
ambos.
A filmagem estava sendo adiada constantemente por causa do
mau tempo – era ao ar livre, no Jabaquara – e, não obstante a insistência e
‘panos quentes’ de Ariovaldo no sentido de manter a famosa dupla no filme,
Mariano começou a se irritar com a espera. Conforme depoimento de Ariovaldo
Pires que temos em gravação, chegou um dia em que Mariano estabeleceu seu
ultimato: “Qué sabe de uma coisa? Se amanhã não tiver sór, nóis não vamos
mais”. No dia seguinte, porém, continuou chovendo, o ‘sór’ não saiu. Só iria
sair dois dias depois, mas aí Mariano não quis mais saber de conversa: “Palavra
de caboclo é como palavra de rei. Nós num vai mais”. Estava encerrado o ajuste
e Ariovaldo Pires precisou sair atrás de outra dupla de violeiros pois, como
ele sempre dizia, “naquele tempo não tinha a inflação de duplas que há hoje”.
“Essa desistência de
Mariano – prossegue Ariovaldo na contracapa do já mencionado LP – foi a sorte
de Alvarenga e Ranchinho. Aqui cabe uma pergunta: Não é muita sorte uma dupla
que não tinha sequer um disco gravado virar artista de cinema? A boa estrela de Alvarenga e Ranchinho
estava brilhando com toda intensidade”.
Voltando ao depoimento gravado, Ariovaldo Pires ficou sabendo
que os dois, Alvarenga e Ranchinho, só cantavam tangos. Ranchinho, todavia,
executava muito bem a viola caipira, e achou que dava para substituir Mariano e
Caçula – ao menos numa simples ‘cana-verde’ na base do ‘uai, uai, acabêmo de
chegá...’ “Acabei transformando uma dupla que só cantavew43a paródias de tango
em cantadores de coisas da vida”, esclarece Ariovaldo. E Alvarenga e Ranchinho
entraram no filme, ganhando fama muito além daquela que desfrutavam em suas
esporádicas aparições na Rádio São Paulo.
“Nesse meio tempo – prossegue Ariovaldo Pires naquela
contracapa -, pela primeira e única vez, a companhia de teatro Casa de Caboclo
fazia uma temporada em São Paulo. Um de seus artistas me convidou para o seu
festival. Vi aí uma boa oportunidade para colocar em maior evidência aqueles
que eu já havia adotado como pupilos – Alvarenga e Ranchinho que, naquela
época, até pagariam para aparecer”.
“Vocês indo ao Rio me procurem”, foi a maneira do sr. Miranda
agradecer aos moços, que cantaram, dentre outras coisas, a moda de viola que
era a coqueluche do momento – Itália e Abissínia. “Essa moda de viola
havia sido gravada por Nhá Zefa, minha colega da Cascatinha do Genaro. Um amigo
do superintendente da gravadora advertiu-o: Eu acho que não fica bem você se
meter nessa guerra, ainda mais tendo em sua firma um nome inglês. Para azar de
Nhá Zefa e sorte de Alvarenga e Ranchinho essa gravação não foi lançada. Os
pedidos das casas de discos saíram de São Paulo alcançando a capital do país.
Da gravadora Odeon recebi a incumbência de mandar alguém, à minha escolha, para
gravar esse sucesso que estava no repertório de artistas de teatro, circo,
rádio, etc. Dei a Alvarenga e Ranchinho o direito de eles colocarem uma
melodia, assim se tornando meus parceiros na gravação de estreia, em 1936, lado
A do disco número 11.342”.
Voltemos um pouco atrás, porém. A emissora onde Ariovaldo
Pires havia iniciado sua carreira não se conformava com o fato de Cascatinha do
Genaro estar fazendo tanto sucesso na Rádio São Paulo. Ariovaldo Pires foi
procurado para que deixasse com todo o elenco do Cascatinha esta última estação
e se transferisse para aquela. Feito verbalmente o negócio, parecia estar tudo
certo e o programa foi encerrado e substituído por outro (Hora Alegre) na São
Paulo. Inesperadamente, contudo, a direção da rádio que havia de certa forma
recontratado Ariovaldo voltou atrás. Não queria mais o programa.
Aturdido, sentindo-se ‘furtado’ no sentido pleno da palavra,
Ariovaldo Pires deixou seu nome de batismo de lado e resolveu que, na vida
artística, passaria a ser Capitão Furtado. “Capitão – explica Ariovaldo –
porque embora eu fizesse no rádio papel de ‘coronel’, não queria ser qualquer
‘coronelão’. Preferi um posto intermediário. Lembrei-me de que em Botucatu
tinha uma família de caipiras muito engraçada, chamada por todos de ‘os
capitãozinho’, por serem tidos como da Guarda Nacional – ou ‘guarda dos não sou
nada’, no trocadilho feito na região. Pensando naqueles tipos um tanto
caricatos e juntando-os ao furto de que eu tinha sido vítima, resolvi chamar-me
artisticamente de Capitão Furtado”.
Logo adiante, comecinho de 1936, instituiu-se em São Paulo o
Primeiro Concurso de Músicas Carnavalescas, organizado pela Comissão de
Divertimentos Públicos da Prefeitura. Segundo Ariovaldo, esse concurso não
tinha outra finalidade senão homenagear o compositor Ary Barroso (já bem famoso
em todo o país, então), correndo no meio artístico a notícia de que o primeiro
prêmio caberia necessariamente a ele, restando aos outros concorrentes as
demais colocações.
Não obstante a certeza de que Ary seria imbatível, como concorrente que era,
muitos compositores se atreveram a inscrever músicas no concurso, cujos prêmios
– para sambas ou marchas – eram atraentes. Um deles foi o maestro Martinez
Grau, que, à última hora, havia sido deixado de lado por Ary Barroso na
promessa de fazer letra para uma música sua. Aliando-se a Ary, Grau tinha
certeza de vitória. Sem ele, as esperanças ficavam remotas.
Martinez Grau era só músico, não tinha desembaraço para
letras. As inscrições já estavam terminando e ele ainda não conseguira ninguém
para colocar letra em sua música. Foi quando, nas imediações do Cine República
(onde se realizaria o torneio e estavam sendo inscritas as concorrentes),
Paraguassu encontrou-se com Martinez e lembrou-o de que havia alguém capaz de,
rapidamente e com perfeição, ‘letrar’ a composição do maestro: Ariovaldo Pires.
Este, por seu turno, estava ali perto. Foi feita a reapresentação (pois ambos,
Martinez e Ariovaldo, haviam lutado no mesmo batalhão na Revolução de 32) e o
músico cantarolou a música que fizera. “Isto é um toque de corneta!”, exclamou
o assombrado Ariovaldo Pires. “Lembra a revolução de que participamos!”.
Na mesma hora saiu a letra:
Alerta!
Alerta!
Vamos fazer a revolução!
Nossa trincheira vamos ter
Mulata!
Na avenida São João
Antigamente
A mulatinha fazia corso
Lá no quintal
Mas com o tempo
Ficou por cima
Foi promovida
A general
A Benedita
Já fez progresso
Tirou o corpo
Lá do fogão
Vive na seda
Tem um V-8
E sai de braço
Com o capitão
Deram
o título de Mulatinha da caserna à marcha (marcha aux flambeaux,
como está na partitura original) e a mesma foi dedicada pelos autores ao Nosso
Clube, “a sociedade da elegância paulista”.
Mulatinha
da Caserna foi a última concorrente a ser entregue no balcão
que recebia as inscrições. E acabou sendo a primeira premiada. O concurso –
conforme lembrava Ariovaldo – havia sido instituída para dar um prêmio a Ary
Barroso, que, merecidamente, já era considerado o maior compositor brasileiro. Aquarela
do Brasil chegaria três anos mais tarde, mas, à época ele já havia feito
autênticas obras-primas como No rancho fundo (com Lamartine Babo), Cabocla
(com José Carlos Burle), Caco velho, Faceira, Inquietação,
Maria (com Luís Peixoto), Na batucada da vida (com Luís Peixoto)
e Na virada da montanha (com Lamartine Babo) entre muitas outras
composições, ganhando o respeito do país inteiro. Era, sem constatação, músico
de altíssimo talento.
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São Paulo em 1936 |
O
espetáculo no Cine República começou ás 21 horas do dia 15 de janeiro de 1936 e
foi terminar quase á meia-noite. No fim foram anunciados os vencedores, sob
enorme expectativa: na categoria de samba, prêmio para Vá carregar piano,
de Nabor Pires de Camargo; na categoria de marcha: Mulatinha da caserna.
O cineteatro quase vem abaixo. Ary Barroso havia sido derrotado! Ganhara o
segundo lugar!
A
imprensa paulistana foi além da realidade, sublimando a extremos a vitória de
Martinez Grau e Ariovaldo Pires. Alguns articulistas chegaram a inventar que
Ary Barroso havia comprado uma claque especial só para ‘forçar’ sua vitória.
Mais ainda: que menosprezara a vitória dos dois paulistas, dirigindo-se a ambos
com indisfarçada ironia após ser anunciada a vitoriosa. Nada disso ocorreu,
contudo, pois Ary teria usado de extrema cortesia para com seus vencedores e
até mesmo cumprimentando calorosamente a ambos. Tinha fama suficiente para ser
invejado e não para invejar.
Mulatinha
da caserna foi gravada na RCA Victor (disco número 34.035,
feito no dia 24 de janeiro de 1936) pelos quais que a interpretaram no
concurso, Januário de Oliveira e Arnaldo Pescuma, tendo no acompanhamento os
notáveis Diabos do Céu de Pixinguinha. Seu sucesso, todavia, restringiu-se à
cidade de São Paulo. Como sempre, o Carnaval carioca dominou tudo em todo o
país.
Dois
fatos importantes iriam ocorrer com essa composição, porém: trinta anos mais
tarde o prefeito paulistano José Vicente de Faria Lima oficializaria Mulatinha
da caserna como Hino do Carnaval da Cidade de São Paulo e, em setembro de 1942,
o editor Mangione editaria a mesma música de Martinez Grau com outra letra de
Ariovaldo Pires, mudando-se o título para América (marcha patriótica) e
o canto sendo assim: “América! América! És valorosa e feliz, porque tu és de
norte a sul unida, qual um único país! Os estrangeiros que aqui chegaram logo
encontraram felicidade! Pois nossa terra vive altaneira, sob a bandeira da
liberdade! O americano valente e forte prefere a morte à vida inglória! A nossa
causa defenderemos e lutaremos até a vitória!”.
Martinez
Grau não gostou, houve calorosa polêmica pela imprensa mas, ao fim e ao cabo,
América sequer chegou ao conhecimento do grande público. A nova versão, de mero
oportunismo devido à II Grande Guerra, não vingou.
O
fato é que, havendo recebido o dinheiro do prêmio, Ariovaldo Pires (ou Capitão
Furtado) decidiu mudar-se para o Rio de Janeiro. São Paulo acabava de dar-lhe
uma grande alegria, mas certo empresário ficara “atravessado em sua garganta”,
não lhe convindo por enquanto conviver com ele na mesma cidade. Furtado que
havia sido, tentaria no Rio ser um Furtado menos espezinhado.
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Cornélio Pires mais idoso quando comandava o "Roda de Violeiros" da Rádio Bandeirantes |
Publicado originalmente em FERRETE, JL. Capitão Furtado: viola caipira ou sertaneja?. Rio de Janeiro: Funarte, Instituto Nacional de Música, Divisão de Música Popular, 1985.
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