Capítulo II: Nhô Anastácio Chegou de Viagem
Por Afrânio Mendes
Catani e José Inácio de Melo Souza
Seleção e transcrição: Matheus
Trunk
O centro mais
importante do Brasil, o Rio de Janeiro, somente obteve um serviço razoável de
energia elétrica depois de 1905, quando da remodelação da cidade. Data desses
anos a oportunidade de os exibidores de novidades ultrapassarem a categoria dos
ambulantes para ascenderem à de exibidores fixos. Conseguindo apresentar
condignamente as suas “vistas”, sem tremores e interrupções, lançavam as bases
para o crescimento do mercado exibidor urbano – logo formando cadeias
encabeçadas por Pascoal Segreto e depois por Francisco Serrador.
A alforria do mercado
liberou todos os grilhões que tolhiam a invasão da produção internacional. A galope
entraram no País, pelo porto do Rio de Janeiro, as mais diversas marcas de
fábricas de filmes d`além-mar, numa enchente que hoje sabemos que é sazonal e
sempre repetida a cada novo produto da metrópole.
Entre meados da
primeira década do século até 1911-12, o cinema brasileiro sobreviveu e
cresceu, para espanto daqueles que estudaram os pioneiros. Realizamos
“naturais”, ou seja, documentários de curta e longa-metragem; “posados” –
filmes de ficção; experiências técnicas diversas como a de gravação do som na
fita (Paolo Benedetti); boa quantidade de fitas “cantantes”, com cantores que
se postavam atrás dela e acompanhavam com suas vozes a projeção da fita.
Os filmes brasileiros
ganhavam espaço devido ao perfeito entrosamento entre produtores e exibidores.
Vários filmes fizeram enorme sucesso no seio de seu público, enaltecendo-se
sempre o exemplo espetacular da revista musical Paz e Amor, que se aproveitava o momento político de 1910 no Rio de
Janeiro para perpetrar virulentas sátiras.
A partir de 1912-13 os
centros produtores metropolitanos consolidaram-se e, internamente, acuaram o
filme brasileiro. O resultado da rasteira internacional foi bem sublimado por
Pedro Nava no segundo volume de suas Memórias: “De noite era o Velo (...) Eu
tinha na mais recuada infância a fantasmagoria do Kinema, na Rua do Ouvidor; em
Juiz de Fora, filmes arfantes do gênero Honra e Amor, no Farol. Em Belo
Horizonte Filibus, um dos primeiros seriados, no Odeon. Mas o alumbramento veio
no Velo. Virgínia Pearson (...) Em Seguida aquele demônio da perversidade,
unhas e bocas cheias de sangue qual vampiro, que era a dinamarquesa Theodosia
Goodman – aliás Theda Bara (...) seus beijos eram mortais e deles decorriam
parricídios, incestos, adultérios, concussões, naufrágios, traições à pátria
porque todos que tinham provado daquela maconha queriam repetir. Mesmo à custa
da própria vida, da própria honra. Por falar em honra, essa é que não faltava
nos filmes fabulosos de William Farnum ou como dizia – Viliã Farnúm (...) Mas
acontecimento de importância (...) foi a chegada no Brasil, no Rio (...) das
latas contendo as bandas de Os Mistérios de Nova York (...) a estrela bem amada
das multidões eram Pearl White (...) Mas acima de William Farnum, da Virginia
Pearson, de Theda Bara e de Pearl White com os Mistérios de Nova York foi, na
ocasião, o advento de uma das coisas mais importantes de minha vida: o
conhecimento de Charles Spencer Chaplin...”.
Mesmo com o predomínio
estrangeiro alguns abnegados continuaram a realizar filmes nacionais construindo,
algumas vezes, movimentos locais que ficaram conhecidos na história do cinema
brasileiro pelo nome de Ciclos: Campinas, Recife, Pelotas, Guaranésia,
Cataguases.
A massa de envolvidos
em produções – aliás pouquíssimas de ficção – no Rio, em São Paulo e no resto
do Brasil ganhava seu pão no cinema por meio da “cavação”. Maria Rita Galvão,
em Crônica do Cinema Paulistano,
explica o verdadeiro sentido da palavra “cavação”: era a internação pelos pais
dos cinegrafistas com um equipamento mínimo, filmando lugarejos, potentados
locais, famílias ricas, as belezas exóticas da terra, - futuras composições de
cinejornais ou de curtas-metragens pagas pelo “homenageado”. Isto quando havia
filme na máquina...Outra variante da “cavação” era a promoção oficial, a
propaganda dos atos do governo, inaugurações mil, efígies laureadas em relevo,
homens probos, etc.
Tal tipo de cinema
tornou-se tão frequente, principalmente depois de 1934 quando institui-se a
obrigatoriedade do complemento nacional nas programações, que as cartas às
colunas de cinema dos jornais estamparam amiúde a insatisfação do público: “O
cinema nacional (...) não tem sido mais que uma incessante, banalíssima e
enjoativa demonstração de rios, florestas e cidadezinhas-de-interior. A nós nos
está parecendo que o público pagante já se aborreceu de ver igrejinhas pintadas
à cal e árvores do nosso hinterland, e já se está (...) afogando de tanto ver
‘rios correndo mansamente, por sob a ponte branquinha, bulindo na alma da
gente’...” (carta de Ubirajara Delácio e Julio dos Santos ao rodapé de
Guilherme de Almeida em O Estado de S.
Paulo de 22/9/37).
Conhecidos alguns
cortes do cinema na República Velha resta saber como se comportavam os
exemplares primitivos da chanchada no período. No espaço de tempo que vai do
começo do século até 1929 alcançaremos algumas respostas para a questão, pois
os trabalhos a respeito são poucos. Nos limites impostos por Jean-Claude
Bernardet em sua Filmografia do Cinema
Brasileiro, ou na já citada pesquisa de Vicente de Paula Araújo, acrescida
do livro de José Ramos Tinhorão (Música
Popular: Teatro e Cinema), poderemos obter dados mais significativos.
Seguindo as pistas
oferecidas por Bernardet no que diz respeito às áreas de significação de
chanchada, veremos que os primeiros filmes nacionais de características
marcantes vêm do Rio de Janeiro, o que não é de estranhar, já que a produção
carioca, em relação aos outros estados, sempre foi mais volumosa.
Estes filmes
aproveitavam figuras populares do início do século que eram, segundo Tinhorão,
os “cantores de circo, dos espetáculos ao ar livre do Passeio Público, das
casas de chope da Rua do Lavradio e os atores do teatro de revista da Praça
Tiradentes”. Alguns dos astros destes espetáculos formavam a galeria de
artistas da primitiva comédia musical, como era o caso de Nhô Anastácio Chegou de Viagem (1908). Vicente de Paula Araújo
contou brevemente o enredo do filme: Nhô Anastácio narrava “as peripécias de um
roceiro que veio passear no Rio de Janeiro, desembarcou na estação da Central,
andou pelas ruas, viu a Caixa de Conversão, entrou no Palácio Monroe, visitou o
Passeio Público, enamorou-se de uma cantora e tudo se completou com a chegada
súbita da esposa. Por fim, a série de quiproquós, a perseguição cômica, a
reconciliação geral, o happy end...”.
Tudo isso em 15 minutos.
Nhô Anastácio pertencia
à linha dos filmes “cantantes” e contava no seu elenco com o ator-cantor José
Gonçalves Leonardo no papel-título. Oriundo do circo, Leonardo era figura
popularíssima. Vê-se, por outro lado, que o enredo discorria sobre um matuto
que sai da roça e chega à cidade, elementos antecipadores dos personagens
depois desenvolvidos por Genésio Arruda e Mazzaropi e, enquanto tema, cerne da
eterna tensão entre a cidade e o campo – assunto permanente no cinema
brasileiro e várias vezes presente na chanchada. Por último, insere a música
cuja canção-título foi, segundo Tinhorão, gravada em disco da Casa Edison.
A somatória de
atores-cantores populares, muitos deles de circo como Leonardo, quiproquós e
personagens populares, encontrou seguidores em outros filmes como Os Capadócios da Cidade Nova, O Comprador de Ratos e Sô Lotero e Siá Ofrásia com seus Produtos
na Exposição, todos de 1908.
A outra face das
primeiras comédias musicais foram os carnavalescos. Como filmes estivais eram
de rápido consumo e, logicamente, enroscados no processo “cavação”. Neles nada
distingue A Fita do Carnaval (1909)
de Os Três Dias do Carnaval Paulista (1915).
Os anúncios do primeiro esclarecem que “como fita nacional é uma perfeição.
Nela se veem inúmeras pessoas conhecidas do nosso mundo social”, enquanto que o
anúncio do filme de 1915 afirmava que está presente “todo São Paulo elegante em
cinematografia (...) vários automóveis elegantes (...) Conde de Prates, M. e
Mme. José Paulino Nogueira, Washington Luiz, Rodrigues Alves...”. É,
igualmente, difícil distringuir um trecho de cinejornal de 1928, onde o Dr.
Rudge Ramos pessoalmente dirige o corso na Avenida” (Cine-Jornal Santa Terezinha número 4), de uma fita carioca como o Corso de 19 de Fevereiro (1908), cujo
dístico era “fita de nosso atelier onde se veem nitidamente as principais
famílias da elite carioca”.
As inovações nos
carnavais de todos os anos e nos corsos da Avenida viriam do Rio para São Paulo
em 1918, através da fita O Carnaval
Cantado. A apresentação na capital paulista ocorreu fora da quadra momesca
mas, mesmo assim, alcançou um sucesso absoluta. A fita era um “cantante” que
misturava as tradicionais cenas de corso, bailes e grupos carnavalescos
(Tenentes do Diabo, Democráticos e Fenianos) com músicas cantadas por “grande
orquestra e massas corais”, embalando o público com “vários tangos e canções
mais populares”. Em bom estilo de revista teatral havia, no final, uma apoteose
a Venceslau Brás, então Presidente da República. O espetáculo carioca era
coordenado pelo grupo do Cinema Odeon e repetiria o feito por outros anos
seguidos, mas com menos impacto. O sucesso de O Carnaval Cantado foi realizado por 500 exibições no Rio e 37 dias
de exibição nos cinemas de São Paulo (êxito salientado por Bernardet em sua
Filmografia, ímpar em relação aos outros filmes do gênero).
Embora a fita
brasileira de 1927, convidasse o público a participar das “loucuras” do
carnaval, quem realmente fazia “loucuras” cinematográficas no mesmo ano era a
Warner Brothers com seu The Jazz Singer. E se Al Jonson tivesse a chance poderia
endereçar, em algum all talkie, aos
seus Brazilian friends do cinema
brasileiro a seguinte canção de amor:
Meu bem
Não chora,
Arrume a trouxa
Diga adeus e vá-se embora.
(Estribilho de Sai da Raia, de Caninha- citado por
Tinhorão)
Publicado originalmente
em CATANI, Afrânio Mendes; SOUZA, José Inácio Melo. A chanchada no cinema brasileiro. São Paulo: Brasiliense, 1983.
(Col. Tudo é História, número 76).
Nenhum comentário:
Postar um comentário