quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

A chanchada no cinema brasileiro, capítulo III de V: 100% Falado, 100% Cantado, 100% Brasileiro

A chanchada no cinema brasileiro: capítulo III: 100% Falado, 100% Cantado, 100% Brasileiro

 

Por Afrânio Mendes Catani e José Inácio de Melo Souza

Seleção e transcrição: Matheus Trunk


E o cinema brasileiro quase saiu da raia depois do avento do cinema sonoro. Os movietones norte-americanos (isto é, o resultado do avanço técnico da impressão da banda sonora na fita) relegaram ao esquecimento as formas anteriores, mecânicas e não-mecânicas, de enriquecendo do filme mudo. O cataclismo do sonoro implicou diversas modificações nos ramos da incipiente indústria cinematográfica do país. Vejamos, por exemplo, o dano causado aos músicos de cinema após a exibição no Rio de Janeiro de Broadway Molody, o primeiro movietone trazido ao Brasil em 1929. A reportagem de O Globo (20-7-29) entrevistou o compositor e maestro Heitor Villa-Lobos, que esteve em visita ao Rio. E sem mais delongas ele afirmou ao jornalista que ficou triste com a noiva paisagem carioca:

“O Rio está gramofonizado, horrivelmente gramofonizado...Toca-se, aqui, hoje em dia, tanta vitrola, tanta radiola...O mal, aliás, não estará no número e na difusão dessa música mecanizada no século, mas na sua qualidade...Os nossos gravadores de discos (...) os comerciantes da nossa música popular, estão muito desorientados. Aceitam tudo, gravam tudo, o que é um erro (...) Outra cousa que também me entristeceu desta vez no Rio: a precária situação em que vão ficando os nossos músicos de orquestra, esses heroicos e tradicionais lutadores pela vida, com a instituição do cinema falado. Eu, que passei por lá, e que sei as dificuldades que tem o tocador de qualquer instrumento para viver (...) bem percebo no negro quadro que se desenha em frente aos nossos músicos de orquestra, que já estão ficando inteiramente abandonados por causa dos filmes que cantam, dançam e tocam os sete instrumentos da civilização moderna. O cinema falado é uma maravilha, está certo. Mas o artista é indispensável às coletividades e eu penso que o que se devia fazer em toda parte do mundo era o que determinou Mussolini, na Itália: aproveitar o músico de qualquer maneira. Ora, por exemplo, nas salas de espera dos cinemas. Aqui mesmo, no Rio de Janeiro, há tantos anos passados, a orquestra da sala de espera do Odeon chegou a ser famosa”. (Brasil: Primeiro Tempo Modernista: 1917-1929; Documentação).

 

Os exibidores, sem dar a mínima às palavras de Villa-Lobos, dispensaram seus músicos, alguns da qualidade de um Pixinguinha, Ernesto Nazaré ou Ary Barroso. A sugestão das orquestras de salas de espera também passou em branco, logo substituídas por vulgares vitrolas. A revolta latente e impotente dos músicos contra a situação imposta pelos “100% falados” ficou bem explicitada pela paródia no samba de Sinhô cuja letra de Luís Silva dizia:

 

Eu ouço falar

E com muita razão

Que o cinema falado

É uma exploração

 

O povo gasta dinheiro

Para nada compreender etc.

 

Este cinema falado

É uma grande cavação

Tirando dos pobres músicos

O seu próprio ganha-pão etc.

 

O sonoro também atiçava os ódios de uma boa parte da intelligentsia cinematográfica que endeusava Chaplin e o cinema mudo encontrava a essência da arte do cinema. Em diversos números de O Fã, órgão do Chaplin-Club do Rio, assistimos à inglória batalha contra os falados. Alex Viany transcreveu no seu livro Introdução ao Cinema Brasileiro algumas invectivas como a de Otávio de Faria: “Eu creio na imagem...Na imagem toda-poderosa. Que autentifica o gesto. Que constrói  movimento. Que não admite o som e não pode conceber a palavra. Na imagem que é imagem e só pode ser imagem...”. Embora O Fã (30 de janeiro de 1930) considerasse o filme sonoro “carta fora do baralho”, incorreu numa avaliação errada, pois o cinema falado veio para ficar. Em poucos anos o cinema brasileiro viu findar-se as tentativas regionais  de produção – encerravam-se os Ciclos – e restringia-se a produção dos filmes mudos; daí as imprecações da revista acerca do que acontecia no Rio.

 

O movietone, além de colocar em farrapos as apostas estéticas do cinema que se fazia até então, destruiu em poucos anos o grande centro produtor de filmes de ficção daqueles tempos que era São Paulo. De Acabaram-se os Otários (1929) em diante a produção paulista decaiu, permanecendo, após Fazendo Fitas (1935), numa hibernação de 14 anos. Do colapso salvou-se o Rio, que aumenta sua produção a partir de 1933-35, puxada pelo carro-chefe da chanchada.

 

O filme falado determinou uma imediata reciclagem técnica que tornava coisa do passado o princípio de uma câmera na mão e uma ideia na cabeça, norteamento impulsionador de mais de uma geração de cinegrafistas. Novos e caros equipamentos de sonorização deveriam ser importados, assim como novas câmeras e filmes apropriados. Isto obrigou ao remanejamento das empresas cinematográficas existentes e a primeira a sair na corrida do reequipamento foi a Cinédia. A empresa foi fundada em 16 de março de 1930 e logo começou a construir seus estúdios. Paulatinamente, começou a aparelhar-se para fazer frente ao sonoro, posto que os dois primeiros filmes mudos da firma tiveram um péssimo desempenho no mercado já dominado pela agaravia dos filmes estrangeiros.

 


Outros investimentos seguiram-se ao de Adhemar Gonzaga. Em 1933 Carmen Santos, uma atriz que atuava no cinema brasileiro desde 1919, fundou a Brasil Vita Filmes com estúdios no bairro da Tijuca. Wallace Downey, ianque, emérito produtor de chanchadas, após algumas produções e direções para outras firmas resolveu montar o seu próprio empreendimento: primeiro, surgiu a Waldow Filmes S/A (1935) e em 1939 a Sonofilmes. Neste mesmo ano São Paulo assistia a um dos mais brilhantes fracassos na construção de grandes estúdios, com a Empresa Sul Americana de Filmes, que lutou muito para conseguir terminar um longa-metragem e dois ou três curtas. Logo depois, vem a Atlântida.

 

Ao lado da construção de firmas produtoras a década de 30 presencia a entrada do Estado na proteção ao filme brasileiro. Esse princípio de protecionismo foi algo retórico, pois sempre se entendeu o mercado cinematográfico como de domínio estrangeiro e a legislação caracterizou a sua atuação como simples mantenedora do status quo. Isto se torna visível com Francisco da Silva Nobre, que em sua Pequena História do Cinema Brasileiro traz algumas das sugestões propostas pela comissão nomeada por Getúlio Vargas em 1931. Tal comissão preconizava a diminuição do ônus aduaneiro sobre o filme impresso estrangeiro, ideia transformada em lei no ano seguinte quando promulgou-se o decreto 21.240. O decreto era amplo, contendo ainda a nacionalização da censura cinematográfica e a obrigatoriedade do uso de um certificado de exibição. Criou, também, uma taxa cinematográfica que seria utilizada num futuro órgão de orientação do cinema e obrigava a exibição de um filme nacional – conforme a capacidade de produção brasileira – por ano pelos cinemas.

 

Em 1934, o decreto 24.651 amparava e estimulava, num dos seus parágrafos, a produção e exibição de “filmes educativos”, documentários curtos que mais tarde tiveram pouco a pouco de lutar por seu espaço, ocupado pela continua produção de cinejornais. A importância da obrigatoriedade de exibição dos “educativos” situava-se na garantia segura do escoamento de sua produção. O resultado foi a proliferação de filmes curtos, fonte segura de trabalho e prolongamento de muitas empresas (a Cinédia foi uma grande fábrica de curtas e cine-jornais; a Atlântida, na sua primeira fase, orgulhava-se de nunca haver necessitado de expediente dos curtas para sobreviver).

 

Explicadas rapidamente as formas de existência do cinema brasileiro, debrucemo-nos sobre alguns filmes do período. Em 1929, Luís de Barros realizava Acabaram-se os Otários, fita saudade por quase todos os autores que estudaram a chanchada como um marco no modo de confecção de filmes populares. A fita surgiu de uma inesperada e surpreendente aposta entre o diretor e um exibidor paulista impressionado com os sonoros norte-americanos. “Não é só americano que faz filme falado. Eu também vou fazer um”, depunha o olímpico Lulu de Barros muitos anos depois. Assinado o contrato de exibição Lulu saiu em campo, sendo sua primeira medida o pedido de auxílio à Fábrica de Discos Parlophon para que gravasse todos os diálogos da fita, proporcionando ao diretor a maneira exata de sincronizar som e imagem. Descoberto o “jeitinho” próprio de vencer a aposta (Lulu distingue o seu processo do similar americano da Vitaphone), ele caminhou seguro para o sucesso.


O enredo de Acabaram-se os Otários, salientou Carlos Roberto de Souza, lembrava a nossa comédia Nhô Anastácio Chegou de Viagem (1908), tratando a história do matuto “Arrudinha” que “chega `cidade e acaba comprando um bonde”. “Arrudinha” talvez não fosse o nome do personagem encarnado pelo eterno caipira Genésio Arruda, já que o anúncio do filme apresentado por Bernardet em sua Filmografia noticiava como artistas principais Genésio Arruda e Tom Bill, vivendo uma “engraçada comédia falada e cantada em português com as aventuras do Bentinho Samambaia e do Xixilo Spicafuoco”, o último colono italiano que falava na língua ítalo-brasileira inventada por Juó Bananere.

 

Reencontramos, explicitadíssimos, o anúncio luminoso e atrativo das “canções, modinhas, piadas, trocadilhos”, abracadabrantes signos do sucesso popular. E que sucesso! “Até 9-9-29, 35.000 pessoas já viram o filme no Santa Helena” (anúncio da fita em O Estado de S. Paulo), momento em que a película estava apenas na sua primeira semana de exibição naquele cinema. A projeção do filme continuou por outros 17 cinemas da cidade, alguns bisando apresentação, numa permanência que somou 76 dias.

 

No ano seguinte Luiz de Barros, empurrado pelo sucesso de sua fita anterior, voltaria com O Babão. Aprimorando o seu processo de sincronização de disco e imagem, Lulu abriu outra senda à chanchada pela paródia do filme estrangeiro. O fato não era novo no cinema brasileiro mas a chanchada permitia uma fonte inesgotável de assuntos. O alvo escolhido foi Amor Pagão (The Pagan, no original), interpretado por Ramon Novarro e que fazia grande sucesso na época. A transmigração de um corpo a outro por certo criou situações díspares: o cartaz do filme apresentava uma jovem de sarong, á moda das nativas das ilhas do Sul do Pacífico, fazendo cafuné no caipira Genésio; as frases do mesmo anúncio historiavam o “romance de um moço moreno, sentimental e bocó (o caboclo) com uma espanholita salerosa” – invertendo e aproximando mais a moça de sarong. A confusão de tipos culturais, motivadas por uma atração e um afastamento simultâneo entre modelo e cópia, patenteava-se de forma funambulesca quando “Genésio Arruda de cuecas, com sotaque de caipira paulista, oferecia ao público sua versão da melodia que, na voz de Novarro, tantos suspiros provocara:

Neste bananar,

Terra tropicar...

Um amor babão

Vem ao coração...”

 

Luiz de Barros não nos contou nas suas Memórias em quanto tempo fez Acabaram-se os Otários. Decerto rapidamente, pois este era o seu estilo de filmar. Um exemplo visível do seu modo de trabalho foi O Babão, iniciado e terminado em 21 dias – fato que na sua carreira não representou nenhum recorde. A forma de composição rápida da chanchada nos obriga a reflexões pauloemilianas. Quando um produtor de Hollywood ou europeu demora um ano ou mais para terminar seu filme isto não significa incompetência ou desleixo. Mas nas condições adversas do produtor brasileiro o é, tanto que se criou um substrato psicológico contrário à grande produção. A chanchada, nestes termos, sempre se pauta pela rapidez, cujo padrão definitivo foi Luiz de Barros.


Ainda em 1931, embora com menos sucesso, São Paulo encerraria a sua participação na aventura chanchadesca com Coisas Nossas. O filme apresentava qualidades novas, todas devidamente ressaltadas por Carlos Roberto de Souza, quais sejam, a produção a cargo de um novato, Alberto Byington Jr., filho de uma família de empresários da indústria fonográfica e que introduzia no cinema brasileiro um espírito empresarial diverso do diletantismo esperado. A direção da fita coube ao americano Wallace Downey, vindo da Fábrica de Discos Columbia. Finalmente, Coisas Nossas “foi a primeira tentativa de fazer o cinema brasileiro enveredar na direção dos filmes musicais americanos que estava fazendo furor”. Assim, o forte do filme eram as músicas e cantores, principiando pela canção-título de Noel Rosa e passando por Paraguassu, orquestras de Gaó e Napoleão Tavares, e Alzirinha Camargo, numa sucessão de números musicais que quase impedia o desenvolvimento do enredo.

 

Transportada a chanchada para o Rio, ela voltaria com força total pela produção de Wallace Downey, Alô, Alô, Brasil (1935). O filme era uma continuação melhorada pelo movietone da fita anterior Coisas Nossas, ou seja, desfilava uma série de músicas encadeadas por um enredo mínimo, temperadas por astros do rádio – o veículo de comunicação que ascendia na vida cotidiana brasileira da época. O tema do rádio e seus artistas foi explorado intensamente. Na exibição paulistana da fita lemos frases elucidativas: “Vamos ouvir o maior repertório de músicas carnavalescas, cantadas pelos ases do mesmo rádio – a avant première do carnaval de 1935, pela primeira vez, os ases do nosso rádio”. A mistura de astros do rádio (Carmen Miranda, Francisco “O Rei da Voz” Alves, Aurora Miranda, Mário Reis, Jorge Murad, O Bando da Lua etc.), carnaval e piadas (“gozadíssimas piadas por Mesquitinha e Barbosa Júnior”) encontraram em Alô, Alô, Brasil! a consagração paulistana de 124 dias de exibições, que começaram nos dias de Momo e terminaram no mês de agosto. O filme carnavalesco de ficção, como seu homônimo documental, chegava, apresentava-se e vencia.

 

E disso se aproveitaram Wallace Downey e Adhemar Gonzaga. O ianque, no mesmo ano de Alô, Alô, Brasil!, exibiu Estudantes (86 dias exibição em São Paulo). No ano seguinte Alô, Alô Carnaval!, produção associada à Cinédia, filmusicarnavalesco que com seu “enredo cômico, a música, as canções, tudo enfim”, constitui um filme “maravilhoso” (O Estado de S. Paulo, alcançando graças a Carmen Miranda, Francisco Alves, Mário Reis e “todos os ases do nosso rádio” a permanência de 97 dias. Em 1937 nova investida com O Bobo do Rei, que apresentava músicas de Ary Barroso e situações cômicas a cargo de Mesquitinha; em 1939 foi a vez de Banana da Terra e em 1940 de Laranja da China. Gonzaga, por sua vez, empregou seguidamente Luiz de Barros em filmes de menor sucesso que Downey: O Jovem Tataravô, Samba da Vida e Tererê Não Resolve. O maior êxito de Gonzaga no período deveu-se antes à comédia ligeira, Bonequinha de Seda, do que à chanchada.

 

Durante a Segunda Guerra, o Departamento de Imprensa e Propaganda – o DIP, órgão repressor e censor do Estado Novo varguista – intensifica sua ação, jogando seu peso, em primeiro lugar, contra a imprensa. Entretanto, o cinema também foi alvo de atenções do Departamento, que lhe determinou linhas de execução de medidas normativas e produtivas. No primeiro caso, o DIP preocupou-se com o curta-metragem, o célebre “complemento nacional” obrigatório do filme estrangeiro, notadamente quando investiu na produção do seu cine-jornal, dando-lhe uma renda de 5 cadeiras por sessão, margem de 30 a 50% ao produtor e fiscalização para observância da lei. Instituía também o Convênio Cinematográfico Nacional, reunião de todos os produtores e distribuidores que, sob a presidência do DIP, estabeleceria diretrizes de ação conjunta. Um outro decreto criava o Conselho Nacional de Cinematografia que, ao contrário do similar para a Imprensa, raramente funcionou. Como produtor o DIP realizou o seu Cine Jornal Brasileiro, timidamente criticado pela revista Scena Muda que o encarava como invasor na seara dos “complementos”.

 

Se o DIP por todas estas medidas era um órgão impulsionador do cinema, ele nunca tirava os pés da terra pela censura. Proibiu-se O Grande Ditador, de Chaplin, tanto de ser exibido quanto de ser divulgado, pois negava-se espaço a notícias e comentários sobre o filme nos jornais (os periódicos furavam a determinação do DIP). Além disso, o Clube de Cinema de São Paulo, do qual participava a jovem intelectualidade paulistana, foi proibido de funcionar por seu caráter “subversivo”.

 

A instabilidade do início da década de 40 favoreceu, porém, o florescimento da Atlântida Empresa Cinematográfica do Brasil S/A. A pequena bibliografia lança mais dúvidas que certezas e os poucos dados que aqui alinharemos pretendem antes a discussão do que a exatidão. Alex Viany no seu clássico livro assinalou que um “grupo de entusiastas” composto por Arnaldo de Farias, Alionor Azevedo, os irmãos José Carlos e Paulo Burle e Moacir Fenelon, que tinham um certo grau de consciência social do momento em que viviam, reuniram-se para criar com a Atlântida um local permanente para a prática do grupo. Por outro lado, José Sanz no artigo “Ritratto Sincero dell´Atlantida” para a coletânea Il Cinema Brasiliano contrariava um pouco o texto de Viany, afirmando que Introdução ao Cinema Brasileiro levava o leitor à crença de que a Atlântida foi o resultado da revelação de uma consciência coletiva em direção à realidade da indústria cinematográfica quando, na verdade, se devia “exclusivamente” a Fenelon o nascimento da empresa. Todavia, Sanz encampava a tese de que a “finalidade deste grupo não era somente fazer filmes, mas ainda tentar a criação de uma experiência cinematográfica brasileira ou pelo menos carioca, e ao mesmo tempo abordar problemas sociais até então ausentes da cinematografia nacional”.

 

A base dos dois comentários sobre a fundação da Atlântida talvez se localize em entrevista de Moacir Fenelon concedida à Scena Muda em dezembro de 1945. Declarava Fenelon que a data de criação da empresa foi 16 de setembro de 1941 quando um “punhado de bravos” empenhou-se em melhorar o cinema da terra. Fenelon participou do núcleo original que, diante das condições do início da década, isto é, paralisação da Cinédia, incêndio na Sonofilmes e investimento da Brasil Vita Filmes no paquidérmico Inconfidência Mineira, resolveu organizar uma produtora por ações populares. Para o empreendimento Fenelon conseguiu mobilizar os irmãos Burle e, se muitos fundaram a empresa (centenas até, pela compra de ações), os dois únicos incorporadores da Atlântida foram Moacir Fenelon e José Carlos Burle.

 

A impressão deixada por todas as considerações é que a Atlântida não passava de outra pequena produtora do Rio, conduzida por homens altruístas e politizados de esquerda. As dúvidas começam a aparecer quando lemos em O Estado de S. Paulo (1942) a notícia da constituição da Atlântida no ano anterior com um capital de 1.000 contos de réis, instalação de estúdios e sede no Edifício Jornal do Brasil, à Avenida Rio Branco. Fenelon mencionara em sua entrevista o Conde Pereira Carneiro, proprietário do Jornal do Brasil, sem discriminar a qualidade da ajuda recebida. Sem dúvida o nome do Conde, a sede e o membro suplente do Conselho Fiscal da Atlântida, Ernesto Pereira Carneiro Sobrinho, sugerem uma participação empresarial que o Diário de Notícias de 1949 inscrevia no raio da posse total da produtora carioca. Outra notícia de O Estado referia-se à venda de cotas populares da Atlântida pelo preço unitário de 100 mil réis, a cargo do agente autorizado em São Paulo, Galeão Coutinho. Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Mato Grosso completavam a lista dos estados onde se encontrariam os agentes da empresa. O objetivo de subscrição popular era alcançar de 9.000 contos de réis. Francisco da Silva Nobre, em sua Pequena História do Cinema Brasileiro (1955), transformando contos em cruzeiros – portanto, antes da implantação do cruzeiro novo -, comenta que o capital inicial de Cr$ 1.000.000,00 foi sucessivamente aumentado para 4 e 10 milhões de cruzeiros.

 

Com todas as informações vemos que a Atlântida desconhecia a vocação de pequena produtora, prenunciando com seu estilo empresarial a grande companhia da década seguinte, a Vera Cruz. Lendo O Estado percebemos que Fenelon não participava da primeira direção da firma, integrando-se somente em abril de 1942. Nesse ano a Diretoria da Atlântida ficou constituída da seguinte maneira: Diretor-Presidente: Paulo Burle; Diretor-Secretário: José Carlos Burle; Diretor-Superintendente: Moacir Fenelon; Diretor-Tesoureiro: Charles M. Browne.

 

A estratégia inicial da Atlântida, negada por Fenelon, foi fazer o que todos faziam: cine-jornal. Mas Atualidades Atlântida destinavam-se a um interlúdio até a chegada do longa-metragem. O primeiro longa exibido, como já vimos foi IV Congresso Eucarístico Nacional de São Paulo. Todas as paróquias paulistanas foram intimadas a assistir ao filme, o que foi bom, pois muitas beatas e muitos carolas puderam deliciar-se às escondidas com a média-metragem do programa Astros em Revista, cujo destaque era dado por Emilinha, Luiz Gonzaga e seu arcodeom, Quatro Ases e Um Coringa e Grande Otelo – chamarizes que desenhavam o futuro da empresa.

 

Em maio de 1943, começavam a filmagem de Moleque Tião, o primeiro grande sucesso ficcional da Atlântida. O filme resultava de um pool de produtores e distribuidores como a Companhia Cinematográfica Brasileira, Filmoteca Cultural, Filmes Artísticos Nacionais, Souza Ramos e Atlântida Ltda., união bem ao gosto do espírito cinematográfico estado-novista. O primeiro take reuniu a fina flor do DIP, o Presidente da Confederação Nacional das Indústrias, membros do Gabinete da Presidência e os surpresos Comandante John Ford e Tenentes Toland e Engel.

 

Quatro meses preencheram as necessidades de preparo e lançamento de Moleque Tião (roteiro de Alinor Azevedo e direção de José Carlos Burle). A película romanceava a vida de Grande Otelo (Sebastião Prata na vida real) e ele não perdeu a oportunidade de brilhar. José Sanz afirmou em seu artigo que a fita era uma novitá no panorama cinematográfico brasileiro, introduzindo, pela primeira vez, preceitos da escola italiana do neo-realismo que acabara de ser inaugurada naquele ano por Obsessione de Luchino Visconti.

 

Cotejando alguns dados da época verificamos a novidade enunciada por Sanz. Os elementos do roteiro e o brilhante trabalho do ator Grande Otelo, elogiado por toda a crítica, levaram o articulista de O Estado de S. Paulo à confissão de que apesar do “rótulo nacional” saíra do cinema crente na possibilidade da feitura de filmes “de verdade” no Brasil. Quanto ao neorrealismo, isto é, o trabalho cênico fora dos estúdios e de sua parafernália ou a inovação do filme dentro do filme (que era o caso), não houve impressão notável no crítico do Estadão, que destacava como presentes nas produções estrangeiras as filmagens in loco. Outro dado novo da fita foi o seu retumbante sucesso, conhecido desde o primeiro dia de lançamento no Rio. O exibidor paulista precaveu-se para o fato e lançou Moleque Tião em dois cinemas. O total da permanência da fita em São Paulo foi de 132 dias.

 

O primeiro filme da Atlântida apresentava músicas cantadas por Grande Otelo, Lurdinha Bittencourt e Custódio Mesquita. Entretanto o crítico de O Estado destacou que os números musicais foram “escritos e cantados com discrição, de modo a não transformar a história em pretexto para uma revista teatral”. Moleque Tião livrava-se, assim, do viés chanchadesco e caminhava em direção ao filme social. Era uma situação contrastante com relação às outras películas exibidas em São Paulo naquele ano: Samba em Berlim (de Luiz de Barros) anunciava-se como uma “super-comédia musical carnavalesca”; Entra na Ferra, senão bastasse o título, trazia a chapa “Comédia! Graça! Alegria! Música!”. Por última, estava em tela Caminho do Céu, considerada pela Scena Muda melhor que a fita da Atlântida, mas que foi na verdade um grandioso fracasso de público no Cine Metro paulistano. A linha dos filmes “sérios”, sociais, continuou a ser trilhada pela Atlântida: É Proibido Sonhar, aprontada para um lançamento no mesmo ano de 43, e Romance de Um Mordedor e Gente Honesta, que se seguiram à segunda fita.

 

O filme social granjeava projeção e elogios à Atlântida, tanto que a Scena Muda estampava em artigo de 1944 o aplauso de Jairo Faria Rocha. Mas em 1946, mesmo elogiando alguns ângulos de Sob a Luz de Meus Olhos (dir. de Fenelon), B.J. Duarte, crítico de O Estado, sentia-se à vontade para fazer algumas ressalvas à linha social da empresa: “Não negamos, nem discutimos as excelentes intenções, com a vontade de acertar com que se acha pejada a película da Atlântida: isto ela os tem de sobejo. É preciso, porém, muito mais, principalmente em se tratando de cinema socializante, gênero que, segundo parece, se propõe a Atlântida a explorar – com o nosso aplauso e apoio integrais, aliás”. Os percalços do “cinema socializante”, continuava B.J., situavam—se na confecção delicada que demandava firmeza na direção e competência nas diversas fases de elaboração do filme, ambos os aspectos falhos em Sob a Luz.

 

O filme social em termos de público equilibrava-se entre receitas boas e ruins. Junto à crítica alcançava-se uma flutuação tendendo para o negativo. Avaliando os filmes sociais da Atlântida realizados até 1947 pelas críticas da Scena Muda, verificamos a seguinte tendência: Moleque Tião, recebido negativamente; É Proibido Sonhar, aceito com razoável entusiasmo; Romance de Um Mordedor, negativa; Vidas Solidárias, idem, “celuloide de tese”, escrevia o crítico; Sob a Luz do Meu Bairro obteve boa receptividade por parte da revista; O Gol da Vitória, negativa; Sob a Luz dos Meus Olhos, crítica não muito favorável.

 

Para obter maior fôlego a Atlântida foi obrigada a recorrer à chanchada. O terceiro filme da empresa carioca, Tristezas Não Pagam Dívidas (dir. de Rui Sá e J.C. Burle), e o carnavalesco de 45, Não Adianta Chorar, de Watson Macedo, introduziram a chanchada no bastião dos “filmes sérios”.

 

Tristezas Não Pagam Dívidas foi lançado no Rio ao fim do ano de 43, fazendo carreira como o carnavalesco de 1944. A fita reunia pela segunda vez, e a primeira na Atlântida, a dupla Oscarito e Grande Otelo, que divertia os espectadores entre balés, batuques, números de cassino e canções de Ataulfo Alves, Sílvio Caldas e Joel e Gaúcho. “O grito de carnaval de 1944” era a frase publicitária no jornal, reforçada pela crítica do Estadão: “a preocupação única dos produtores de Tristezas...foi divulgar músicas carnavalescas por meio de uma história divertida”. Os espectadores acorreram em massa ao divertissement carioca, mantendo-o 139 dias em cartaz.

 

O “grito do carnaval” de 45, Não Adianta Chorar, deveu-se a Watson Macedo. A biografia de Watson é curiosa: logo que terminou o ginásio em Nova Friburgo, Estado do Rio, em 1937, o futuro diretor abalou-se para o Distrito Federal em busca da realização de seu sonho, qual seja, ser diretor de cinema. E foi com este qualitativo que se apresentou perante Carmen Santos na Brasil Vita Filmes. Pasma e incrédula, imaginamos a atriz portuguesa ofereceu-lhe um cargo de técnico de som prontamente recusado pelo “diretor”. Todavia- Watson ficou pelos estúdios dando seus palpites até que Carmen Santos ofereceu-lhe a chance de dirigir uma comédia de média-metragem, Barulho na Universidade (1943). No ano seguinte incendiavam-se os estúdios da Brasil Vita Filmes e, em consequência da paralisação da produtora, a câmera Edgard Brasil levou-o para a Atlântida como montador de filmes. Deste cargo Watson passou a assistente de direção de Moacir Fenelon, esperando a sua oportunidade de ouro – ele veio pela substituição na direção do carnavalesco de Rui Costa. O resultado foi que o filme dirigido por Watson Macedo realizou uma bela carreira assemelhando-se à fita anterior da empresa, atingindo 137 dias em cartaz. A crítica da revista carioca comentava que Não Adianta Chorar era uma fita dirigida a seis mãos, pois Watson Macedo foi auxiliado por Burle e Fenelon. E mais: “foge um pouco ao ritmo técnico imprimido nos outros (filmes) devido a causas várias como a rapidez com que foi feito, a preocupação de lançamento imediato em sacrifício do trabalho de laboratório, pois o Carnaval está às portas e o filme é carnavalesco”. A fita marcava o retorno da dupla Oscarito e Grande Otel, desfiando as suas gags ao som dos Anjos do Inferno, Ciro Monteiro, Namorados da Lua, Alvarenga e Ranchinho, Joel e Gaúcho e Sílvio Caldas.

 

Em 1946, Macedo voltaria com Segura Esta Mulher, ultrapassando todas as marcas de êxito antes alcançadas pela Atlântida; a aceitação popular da fita passava por cima de todas as reflexões da imprensa. Os espectadores não davam a mínima para o crítico da Scena Muda, que declarava inexistir argumento no filme – “não tem pé nem cabeça”, afirmava -, nem para o “plebismo” do título, segundo o crítico do Estadão. O sucesso media-se pela segunda semana no Ipiranga de São Paulo e pelo alargamento da exibição de 2ª linha, atingindo por duas vezes, três cinemas de bairro simultaneamente.

 

Como chanchada trazia todos os predicados: Grande Otelo sem Oscarito, depunha que o filme havia sido rodado às pressas: a revista carioca criticava o excesso de músicas cantadas por Orlando Silva, Joel e Gaúcho e muitos outros. Scena Muda reconhecia porém que Watson Macedo possuía “qualidades de um verdadeiro diretor”, enquanto que denunciava que as piadas encenadas por Grande Otelo, Mesquitinha e Catalano eram adaptadas com propriedade de filmes americanos. O primeiro fato reconhecia o status justo que Macedo, dois anos depois elevado ao pedestal da glória eterna por Carnaval do Fogo. O acerto da direção de Watson atraiu as atenções do virulento crítico B. J. Duarte, que se assustou com a ausência na fita de trejeitos, saracoteios, de letras grosseiras e maliciosas em sambas carnavalescas e da fotografia maltrapilha – marcas registradas dos “aventureiros” realizadores de Caídos do Céu e Cem Garotas e Um Capote.  Já o segundo ponto denotava o carinho que a fita norte-americana recebia do diretor, primeiros sinais do decalque que evoluira das gags às sequencias inteiras copiadas – grilhões carregados com alegria.

 

1946 foi o ano de Segura Esta Mulher, enquanto 1947 seria marcado por um fato que consolidaria a Atlântida como produtora nacional de filmes.

 

Publicado originalmente em CATANI, Afrânio Mendes; SOUZA, José Inácio Melo. A chanchada no cinema brasileiro. São Paulo: Brasiliense, 1983. (Col. Tudo é História, número 76).

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