A chanchada no cinema brasileiro: capítulo III: 100% Falado, 100% Cantado, 100% Brasileiro
Por Afrânio Mendes
Catani e José Inácio de Melo Souza
Seleção e transcrição: Matheus Trunk
E o cinema brasileiro quase saiu da raia depois do avento do cinema sonoro. Os movietones norte-americanos (isto é, o resultado do avanço técnico da impressão da banda sonora na fita) relegaram ao esquecimento as formas anteriores, mecânicas e não-mecânicas, de enriquecendo do filme mudo. O cataclismo do sonoro implicou diversas modificações nos ramos da incipiente indústria cinematográfica do país. Vejamos, por exemplo, o dano causado aos músicos de cinema após a exibição no Rio de Janeiro de Broadway Molody, o primeiro movietone trazido ao Brasil em 1929. A reportagem de O Globo (20-7-29) entrevistou o compositor e maestro Heitor Villa-Lobos, que esteve em visita ao Rio. E sem mais delongas ele afirmou ao jornalista que ficou triste com a noiva paisagem carioca:
“O Rio está gramofonizado, horrivelmente gramofonizado...Toca-se, aqui,
hoje em dia, tanta vitrola, tanta radiola...O mal, aliás, não estará no número
e na difusão dessa música mecanizada no século, mas na sua qualidade...Os
nossos gravadores de discos (...) os comerciantes da nossa música popular,
estão muito desorientados. Aceitam tudo, gravam tudo, o que é um erro (...)
Outra cousa que também me entristeceu desta vez no Rio: a precária situação em
que vão ficando os nossos músicos de orquestra, esses heroicos e tradicionais
lutadores pela vida, com a instituição do cinema falado. Eu, que passei por lá,
e que sei as dificuldades que tem o tocador de qualquer instrumento para viver
(...) bem percebo no negro quadro que se desenha em frente aos nossos músicos
de orquestra, que já estão ficando inteiramente abandonados por causa dos
filmes que cantam, dançam e tocam os sete instrumentos da civilização moderna.
O cinema falado é uma maravilha, está certo. Mas o artista é indispensável às
coletividades e eu penso que o que se devia fazer em toda parte do mundo era o
que determinou Mussolini, na Itália: aproveitar o músico de qualquer maneira.
Ora, por exemplo, nas salas de espera dos cinemas. Aqui mesmo, no Rio de
Janeiro, há tantos anos passados, a orquestra da sala de espera do Odeon chegou
a ser famosa”. (Brasil: Primeiro Tempo
Modernista: 1917-1929; Documentação).
Os exibidores, sem dar a mínima às palavras de Villa-Lobos, dispensaram
seus músicos, alguns da qualidade de um Pixinguinha, Ernesto Nazaré ou Ary
Barroso. A sugestão das orquestras de salas de espera também passou em branco,
logo substituídas por vulgares vitrolas. A revolta latente e impotente dos
músicos contra a situação imposta pelos “100% falados” ficou bem explicitada
pela paródia no samba de Sinhô cuja letra de Luís Silva dizia:
Eu ouço falar
E com muita razão
Que o cinema falado
É uma exploração
O povo gasta dinheiro
Para nada compreender etc.
Este cinema falado
É uma grande cavação
Tirando dos pobres músicos
O seu próprio ganha-pão etc.
O sonoro também atiçava os ódios de uma boa parte da intelligentsia
cinematográfica que endeusava Chaplin e o cinema mudo encontrava a essência da
arte do cinema. Em diversos números de O
Fã, órgão do Chaplin-Club do Rio, assistimos à inglória batalha contra os
falados. Alex Viany transcreveu no seu livro Introdução ao Cinema Brasileiro
algumas invectivas como a de Otávio de Faria: “Eu creio na imagem...Na imagem
toda-poderosa. Que autentifica o gesto. Que constrói movimento. Que não admite o som e não pode
conceber a palavra. Na imagem que é imagem e só pode ser imagem...”. Embora O Fã (30 de janeiro de 1930) considerasse
o filme sonoro “carta fora do baralho”, incorreu numa avaliação errada, pois o
cinema falado veio para ficar. Em poucos anos o cinema brasileiro viu findar-se
as tentativas regionais de produção –
encerravam-se os Ciclos – e restringia-se a produção dos filmes mudos; daí as
imprecações da revista acerca do que acontecia no Rio.
O movietone, além de colocar
em farrapos as apostas estéticas do cinema que se fazia até então, destruiu em
poucos anos o grande centro produtor de filmes de ficção daqueles tempos que
era São Paulo. De Acabaram-se os Otários (1929)
em diante a produção paulista decaiu, permanecendo, após Fazendo Fitas (1935), numa hibernação de 14 anos. Do colapso
salvou-se o Rio, que aumenta sua produção a partir de 1933-35, puxada pelo
carro-chefe da chanchada.
O filme falado determinou uma imediata reciclagem técnica que tornava
coisa do passado o princípio de uma câmera na mão e uma ideia na cabeça,
norteamento impulsionador de mais de uma geração de cinegrafistas. Novos e
caros equipamentos de sonorização deveriam ser importados, assim como novas
câmeras e filmes apropriados. Isto obrigou ao remanejamento das empresas
cinematográficas existentes e a primeira a sair na corrida do reequipamento foi
a Cinédia. A empresa foi fundada em 16 de março de 1930 e logo começou a
construir seus estúdios. Paulatinamente, começou a aparelhar-se para fazer
frente ao sonoro, posto que os dois primeiros filmes mudos da firma tiveram um
péssimo desempenho no mercado já dominado pela agaravia dos filmes
estrangeiros.
Ao lado da construção de firmas produtoras a década de 30 presencia a
entrada do Estado na proteção ao filme brasileiro. Esse princípio de
protecionismo foi algo retórico, pois sempre se entendeu o mercado
cinematográfico como de domínio estrangeiro e a legislação caracterizou a sua
atuação como simples mantenedora do status quo. Isto se torna visível com
Francisco da Silva Nobre, que em sua Pequena
História do Cinema Brasileiro traz algumas das sugestões propostas pela
comissão nomeada por Getúlio Vargas em 1931. Tal comissão preconizava a
diminuição do ônus aduaneiro sobre o filme impresso estrangeiro, ideia
transformada em lei no ano seguinte quando promulgou-se o decreto 21.240. O
decreto era amplo, contendo ainda a nacionalização da censura cinematográfica e
a obrigatoriedade do uso de um certificado de exibição. Criou, também, uma taxa
cinematográfica que seria utilizada num futuro órgão de orientação do cinema e
obrigava a exibição de um filme nacional – conforme a capacidade de produção
brasileira – por ano pelos cinemas.
Em 1934, o decreto 24.651 amparava e estimulava, num dos seus
parágrafos, a produção e exibição de “filmes educativos”, documentários curtos
que mais tarde tiveram pouco a pouco de lutar por seu espaço, ocupado pela
continua produção de cinejornais. A importância da obrigatoriedade de exibição
dos “educativos” situava-se na garantia segura do escoamento de sua produção. O
resultado foi a proliferação de filmes curtos, fonte segura de trabalho e
prolongamento de muitas empresas (a Cinédia foi uma grande fábrica de curtas e
cine-jornais; a Atlântida, na sua primeira fase, orgulhava-se de nunca haver
necessitado de expediente dos curtas para sobreviver).
Explicadas rapidamente as formas de existência do cinema brasileiro,
debrucemo-nos sobre alguns filmes do período. Em 1929, Luís de Barros realizava
Acabaram-se os Otários, fita saudade
por quase todos os autores que estudaram a chanchada como um marco no modo de
confecção de filmes populares. A fita surgiu de uma inesperada e surpreendente
aposta entre o diretor e um exibidor paulista impressionado com os sonoros
norte-americanos. “Não é só americano que faz filme falado. Eu também vou fazer
um”, depunha o olímpico Lulu de Barros muitos anos depois. Assinado o contrato
de exibição Lulu saiu em campo, sendo sua primeira medida o pedido de auxílio à
Fábrica de Discos Parlophon para que gravasse todos os diálogos da fita,
proporcionando ao diretor a maneira exata de sincronizar som e imagem.
Descoberto o “jeitinho” próprio de vencer a aposta (Lulu distingue o seu
processo do similar americano da Vitaphone), ele caminhou seguro para o
sucesso.
O enredo de Acabaram-se os Otários, salientou Carlos Roberto de Souza, lembrava
a nossa comédia Nhô Anastácio Chegou de
Viagem (1908), tratando a história do matuto “Arrudinha” que “chega `cidade
e acaba comprando um bonde”. “Arrudinha” talvez não fosse o nome do personagem
encarnado pelo eterno caipira Genésio Arruda, já que o anúncio do filme
apresentado por Bernardet em sua Filmografia noticiava como artistas principais
Genésio Arruda e Tom Bill, vivendo uma “engraçada comédia falada e cantada em
português com as aventuras do Bentinho Samambaia e do Xixilo Spicafuoco”, o último
colono italiano que falava na língua ítalo-brasileira inventada por Juó
Bananere.
Reencontramos, explicitadíssimos, o anúncio luminoso e atrativo das
“canções, modinhas, piadas, trocadilhos”, abracadabrantes signos do sucesso
popular. E que sucesso! “Até 9-9-29, 35.000 pessoas já viram o filme no Santa
Helena” (anúncio da fita em O Estado de
S. Paulo), momento em que a película estava apenas na sua primeira semana
de exibição naquele cinema. A projeção do filme continuou por outros 17 cinemas
da cidade, alguns bisando apresentação, numa permanência que somou 76 dias.
No ano seguinte Luiz de Barros, empurrado pelo sucesso de sua fita
anterior, voltaria com O Babão.
Aprimorando o seu processo de sincronização de disco e imagem, Lulu abriu outra
senda à chanchada pela paródia do filme estrangeiro. O fato não era novo no
cinema brasileiro mas a chanchada permitia uma fonte inesgotável de assuntos. O
alvo escolhido foi Amor Pagão (The Pagan, no original), interpretado
por Ramon Novarro e que fazia grande sucesso na época. A transmigração de um
corpo a outro por certo criou situações díspares: o cartaz do filme apresentava
uma jovem de sarong, á moda das nativas das ilhas do Sul do Pacífico, fazendo
cafuné no caipira Genésio; as frases do mesmo anúncio historiavam o “romance de
um moço moreno, sentimental e bocó (o caboclo) com uma espanholita salerosa” –
invertendo e aproximando mais a moça de sarong.
A confusão de tipos culturais, motivadas por uma atração e um afastamento
simultâneo entre modelo e cópia, patenteava-se de forma funambulesca quando
“Genésio Arruda de cuecas, com sotaque de caipira paulista, oferecia ao público
sua versão da melodia que, na voz de Novarro, tantos suspiros provocara:
Neste bananar,
Terra tropicar...
Um amor babão
Vem ao coração...”
Luiz de Barros não nos contou nas suas Memórias em quanto tempo fez Acabaram-se
os Otários. Decerto rapidamente, pois este era o seu estilo de filmar. Um
exemplo visível do seu modo de trabalho foi O Babão, iniciado e terminado em 21
dias – fato que na sua carreira não representou nenhum recorde. A forma de
composição rápida da chanchada nos obriga a reflexões pauloemilianas. Quando um
produtor de Hollywood ou europeu demora um ano ou mais para terminar seu filme
isto não significa incompetência ou desleixo. Mas nas condições adversas do
produtor brasileiro o é, tanto que se criou um substrato psicológico contrário
à grande produção. A chanchada, nestes termos, sempre se pauta pela rapidez,
cujo padrão definitivo foi Luiz de Barros.
Ainda em 1931, embora com menos sucesso, São Paulo encerraria a sua
participação na aventura chanchadesca com Coisas
Nossas. O filme apresentava qualidades novas, todas devidamente ressaltadas
por Carlos Roberto de Souza, quais sejam, a produção a cargo de um novato,
Alberto Byington Jr., filho de uma família de empresários da indústria
fonográfica e que introduzia no cinema brasileiro um espírito empresarial
diverso do diletantismo esperado. A direção da fita coube ao americano Wallace
Downey, vindo da Fábrica de Discos Columbia. Finalmente, Coisas Nossas “foi a
primeira tentativa de fazer o cinema brasileiro enveredar na direção dos filmes
musicais americanos que estava fazendo furor”. Assim, o forte do filme eram as
músicas e cantores, principiando pela canção-título de Noel Rosa e passando por
Paraguassu, orquestras de Gaó e Napoleão Tavares, e Alzirinha Camargo, numa
sucessão de números musicais que quase impedia o desenvolvimento do enredo.
Transportada a chanchada para o Rio, ela voltaria com força total pela
produção de Wallace Downey, Alô, Alô,
Brasil (1935). O filme era uma continuação melhorada pelo movietone da fita anterior Coisas Nossas, ou seja, desfilava uma
série de músicas encadeadas por um enredo mínimo, temperadas por astros do
rádio – o veículo de comunicação que ascendia na vida cotidiana brasileira da
época. O tema do rádio e seus artistas foi explorado intensamente. Na exibição
paulistana da fita lemos frases elucidativas: “Vamos ouvir o maior repertório
de músicas carnavalescas, cantadas pelos ases do mesmo rádio – a avant première
do carnaval de 1935, pela primeira vez, os ases do nosso rádio”. A mistura de
astros do rádio (Carmen Miranda, Francisco “O Rei da Voz” Alves, Aurora
Miranda, Mário Reis, Jorge Murad, O Bando da Lua etc.), carnaval e piadas
(“gozadíssimas piadas por Mesquitinha e Barbosa Júnior”) encontraram em Alô, Alô, Brasil! a consagração
paulistana de 124 dias de exibições, que começaram nos dias de Momo e
terminaram no mês de agosto. O filme carnavalesco de ficção, como seu homônimo
documental, chegava, apresentava-se e vencia.
E disso se aproveitaram Wallace Downey e Adhemar Gonzaga. O ianque, no
mesmo ano de Alô, Alô, Brasil!,
exibiu Estudantes (86 dias exibição
em São Paulo). No ano seguinte Alô, Alô
Carnaval!, produção associada à Cinédia, filmusicarnavalesco que com seu
“enredo cômico, a música, as canções, tudo enfim”, constitui um filme
“maravilhoso” (O Estado de S. Paulo,
alcançando graças a Carmen Miranda, Francisco Alves, Mário Reis e “todos os
ases do nosso rádio” a permanência de 97 dias. Em 1937 nova investida com O
Bobo do Rei, que apresentava músicas de Ary Barroso e situações cômicas a cargo
de Mesquitinha; em 1939 foi a vez de Banana
da Terra e em 1940 de Laranja da
China. Gonzaga, por sua vez, empregou seguidamente Luiz de Barros em filmes
de menor sucesso que Downey: O Jovem
Tataravô, Samba da Vida e Tererê Não Resolve. O maior êxito de
Gonzaga no período deveu-se antes à comédia ligeira, Bonequinha de Seda, do que à chanchada.
Durante a Segunda Guerra, o Departamento de Imprensa e Propaganda – o
DIP, órgão repressor e censor do Estado Novo varguista – intensifica sua ação,
jogando seu peso, em primeiro lugar, contra a imprensa. Entretanto, o cinema
também foi alvo de atenções do Departamento, que lhe determinou linhas de
execução de medidas normativas e produtivas. No primeiro caso, o DIP
preocupou-se com o curta-metragem, o célebre “complemento nacional” obrigatório
do filme estrangeiro, notadamente quando investiu na produção do seu
cine-jornal, dando-lhe uma renda de 5 cadeiras por sessão, margem de 30 a 50%
ao produtor e fiscalização para observância da lei. Instituía também o Convênio
Cinematográfico Nacional, reunião de todos os produtores e distribuidores que,
sob a presidência do DIP, estabeleceria diretrizes de ação conjunta. Um outro
decreto criava o Conselho Nacional de Cinematografia que, ao contrário do
similar para a Imprensa, raramente funcionou. Como produtor o DIP realizou o
seu Cine Jornal Brasileiro,
timidamente criticado pela revista Scena
Muda que o encarava como invasor na seara dos “complementos”.
Se o DIP por todas estas medidas era um órgão impulsionador do cinema,
ele nunca tirava os pés da terra pela censura. Proibiu-se O Grande Ditador, de Chaplin, tanto de ser exibido quanto de ser
divulgado, pois negava-se espaço a notícias e comentários sobre o filme nos
jornais (os periódicos furavam a determinação do DIP). Além disso, o Clube de
Cinema de São Paulo, do qual participava a jovem intelectualidade paulistana,
foi proibido de funcionar por seu caráter “subversivo”.
A instabilidade do início da década de 40 favoreceu, porém, o
florescimento da Atlântida Empresa Cinematográfica do Brasil S/A. A pequena
bibliografia lança mais dúvidas que certezas e os poucos dados que aqui
alinharemos pretendem antes a discussão do que a exatidão. Alex Viany no seu
clássico livro assinalou que um “grupo de entusiastas” composto por Arnaldo de
Farias, Alionor Azevedo, os irmãos José Carlos e Paulo Burle e Moacir Fenelon,
que tinham um certo grau de consciência social do momento em que viviam, reuniram-se
para criar com a Atlântida um local permanente para a prática do grupo. Por
outro lado, José Sanz no artigo “Ritratto Sincero dell´Atlantida” para a
coletânea Il Cinema Brasiliano contrariava um pouco o texto de Viany, afirmando
que Introdução ao Cinema Brasileiro
levava o leitor à crença de que a Atlântida foi o resultado da revelação de uma
consciência coletiva em direção à realidade da indústria cinematográfica
quando, na verdade, se devia “exclusivamente” a Fenelon o nascimento da
empresa. Todavia, Sanz encampava a tese de que a “finalidade deste grupo não
era somente fazer filmes, mas ainda tentar a criação de uma experiência
cinematográfica brasileira ou pelo menos carioca, e ao mesmo tempo abordar
problemas sociais até então ausentes da cinematografia nacional”.
A base dos dois comentários sobre a fundação da Atlântida talvez se
localize em entrevista de Moacir Fenelon concedida à Scena Muda em dezembro de 1945. Declarava Fenelon que a data de
criação da empresa foi 16 de setembro de 1941 quando um “punhado de bravos”
empenhou-se em melhorar o cinema da terra. Fenelon participou do núcleo
original que, diante das condições do início da década, isto é, paralisação da
Cinédia, incêndio na Sonofilmes e investimento da Brasil Vita Filmes no
paquidérmico Inconfidência Mineira, resolveu organizar uma produtora por ações
populares. Para o empreendimento Fenelon conseguiu mobilizar os irmãos Burle e,
se muitos fundaram a empresa (centenas até, pela compra de ações), os dois
únicos incorporadores da Atlântida foram Moacir Fenelon e José Carlos Burle.
A impressão deixada por todas as considerações é que a Atlântida não
passava de outra pequena produtora do Rio, conduzida por homens altruístas e
politizados de esquerda. As dúvidas começam a aparecer quando lemos em O Estado de S. Paulo (1942) a notícia da
constituição da Atlântida no ano anterior com um capital de 1.000 contos de
réis, instalação de estúdios e sede no Edifício Jornal do Brasil, à Avenida Rio
Branco. Fenelon mencionara em sua entrevista o Conde Pereira Carneiro,
proprietário do Jornal do Brasil, sem
discriminar a qualidade da ajuda recebida. Sem dúvida o nome do Conde, a sede e
o membro suplente do Conselho Fiscal da Atlântida, Ernesto Pereira Carneiro
Sobrinho, sugerem uma participação empresarial que o Diário de Notícias de 1949 inscrevia no raio da posse total da
produtora carioca. Outra notícia de O
Estado referia-se à venda de cotas populares da Atlântida pelo preço
unitário de 100 mil réis, a cargo do agente autorizado em São Paulo, Galeão
Coutinho. Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Mato Grosso completavam a lista dos
estados onde se encontrariam os agentes da empresa. O objetivo de subscrição
popular era alcançar de 9.000 contos de réis. Francisco da Silva Nobre, em sua Pequena História do Cinema Brasileiro
(1955), transformando contos em cruzeiros – portanto, antes da implantação do
cruzeiro novo -, comenta que o capital inicial de Cr$ 1.000.000,00 foi
sucessivamente aumentado para 4 e 10 milhões de cruzeiros.
Com todas as informações vemos que a Atlântida desconhecia a vocação de
pequena produtora, prenunciando com seu estilo empresarial a grande companhia
da década seguinte, a Vera Cruz. Lendo O
Estado percebemos que Fenelon não participava da primeira direção da firma,
integrando-se somente em abril de 1942. Nesse ano a Diretoria da Atlântida
ficou constituída da seguinte maneira: Diretor-Presidente: Paulo Burle;
Diretor-Secretário: José Carlos Burle; Diretor-Superintendente: Moacir Fenelon;
Diretor-Tesoureiro: Charles M. Browne.
A estratégia inicial da Atlântida, negada por Fenelon, foi fazer o que
todos faziam: cine-jornal. Mas Atualidades
Atlântida destinavam-se a um interlúdio até a chegada do longa-metragem. O
primeiro longa exibido, como já vimos foi IV Congresso Eucarístico Nacional de
São Paulo. Todas as paróquias paulistanas foram intimadas a assistir ao filme,
o que foi bom, pois muitas beatas e muitos carolas puderam deliciar-se às
escondidas com a média-metragem do programa Astros
em Revista, cujo destaque era dado por Emilinha, Luiz Gonzaga e seu
arcodeom, Quatro Ases e Um Coringa e Grande Otelo – chamarizes que desenhavam o
futuro da empresa.
Em maio de 1943, começavam a filmagem de Moleque Tião, o primeiro grande sucesso ficcional da Atlântida. O
filme resultava de um pool de
produtores e distribuidores como a Companhia Cinematográfica Brasileira,
Filmoteca Cultural, Filmes Artísticos Nacionais, Souza Ramos e Atlântida Ltda.,
união bem ao gosto do espírito cinematográfico estado-novista. O primeiro take reuniu a fina flor do DIP, o Presidente
da Confederação Nacional das Indústrias, membros do Gabinete da Presidência e
os surpresos Comandante John Ford e Tenentes Toland e Engel.
Quatro meses preencheram as necessidades de preparo e lançamento de
Moleque Tião (roteiro de Alinor Azevedo e direção de José Carlos Burle). A
película romanceava a vida de Grande Otelo (Sebastião Prata na vida real) e ele
não perdeu a oportunidade de brilhar. José Sanz afirmou em seu artigo que a
fita era uma novitá no panorama
cinematográfico brasileiro, introduzindo, pela primeira vez, preceitos da
escola italiana do neo-realismo que acabara de ser inaugurada naquele ano por Obsessione de Luchino Visconti.
Cotejando alguns dados da época verificamos a novidade enunciada por
Sanz. Os elementos do roteiro e o brilhante trabalho do ator Grande Otelo,
elogiado por toda a crítica, levaram o articulista de O Estado de S. Paulo à confissão de que apesar do “rótulo nacional”
saíra do cinema crente na possibilidade da feitura de filmes “de verdade” no
Brasil. Quanto ao neorrealismo, isto é, o trabalho cênico fora dos estúdios e
de sua parafernália ou a inovação do filme dentro do filme (que era o caso),
não houve impressão notável no crítico do Estadão, que destacava como presentes
nas produções estrangeiras as filmagens in loco. Outro dado novo da fita foi o
seu retumbante sucesso, conhecido desde o primeiro dia de lançamento no Rio. O
exibidor paulista precaveu-se para o fato e lançou Moleque Tião em dois cinemas. O total da permanência da fita em São
Paulo foi de 132 dias.
O primeiro filme da Atlântida apresentava músicas cantadas por Grande
Otelo, Lurdinha Bittencourt e Custódio Mesquita. Entretanto o crítico de O
Estado destacou que os números musicais foram “escritos e cantados com
discrição, de modo a não transformar a história em pretexto para uma revista
teatral”. Moleque Tião livrava-se,
assim, do viés chanchadesco e caminhava em direção ao filme social. Era uma
situação contrastante com relação às outras películas exibidas em São Paulo
naquele ano: Samba em Berlim (de Luiz
de Barros) anunciava-se como uma “super-comédia musical carnavalesca”; Entra na Ferra, senão bastasse o título,
trazia a chapa “Comédia! Graça! Alegria! Música!”. Por última, estava em tela
Caminho do Céu, considerada pela Scena
Muda melhor que a fita da Atlântida, mas que foi na verdade um grandioso
fracasso de público no Cine Metro paulistano. A linha dos filmes “sérios”,
sociais, continuou a ser trilhada pela Atlântida: É Proibido Sonhar, aprontada para um lançamento no mesmo ano de 43,
e Romance de Um Mordedor e Gente Honesta, que se seguiram à segunda
fita.
O filme social granjeava projeção e elogios à Atlântida, tanto que a Scena Muda estampava em artigo de 1944 o
aplauso de Jairo Faria Rocha. Mas em 1946, mesmo elogiando alguns ângulos de Sob a Luz de Meus Olhos (dir. de
Fenelon), B.J. Duarte, crítico de O
Estado, sentia-se à vontade para fazer algumas ressalvas à linha social da
empresa: “Não negamos, nem discutimos as excelentes intenções, com a vontade de
acertar com que se acha pejada a película da Atlântida: isto ela os tem de
sobejo. É preciso, porém, muito mais, principalmente em se tratando de cinema
socializante, gênero que, segundo parece, se propõe a Atlântida a explorar –
com o nosso aplauso e apoio integrais, aliás”. Os percalços do “cinema
socializante”, continuava B.J., situavam—se na confecção delicada que demandava
firmeza na direção e competência nas diversas fases de elaboração do filme,
ambos os aspectos falhos em Sob a Luz.
O filme social em termos de público equilibrava-se entre receitas boas e
ruins. Junto à crítica alcançava-se uma flutuação tendendo para o negativo.
Avaliando os filmes sociais da Atlântida realizados até 1947 pelas críticas da Scena Muda, verificamos a seguinte
tendência: Moleque Tião, recebido
negativamente; É Proibido Sonhar,
aceito com razoável entusiasmo; Romance
de Um Mordedor, negativa; Vidas
Solidárias, idem, “celuloide de tese”, escrevia o crítico; Sob a Luz do Meu Bairro obteve boa
receptividade por parte da revista; O Gol
da Vitória, negativa; Sob a Luz dos
Meus Olhos, crítica não muito favorável.
Para obter maior fôlego a Atlântida foi obrigada a recorrer à chanchada.
O terceiro filme da empresa carioca, Tristezas
Não Pagam Dívidas (dir. de Rui Sá e J.C. Burle), e o carnavalesco de 45, Não Adianta Chorar, de Watson Macedo,
introduziram a chanchada no bastião dos “filmes sérios”.
Tristezas Não Pagam Dívidas foi lançado no Rio ao fim do ano de 43,
fazendo carreira como o carnavalesco de 1944. A fita reunia pela segunda vez, e
a primeira na Atlântida, a dupla Oscarito e Grande Otelo, que divertia os
espectadores entre balés, batuques, números de cassino e canções de Ataulfo
Alves, Sílvio Caldas e Joel e Gaúcho. “O grito de carnaval de 1944” era a frase
publicitária no jornal, reforçada pela crítica do Estadão: “a preocupação única
dos produtores de Tristezas...foi
divulgar músicas carnavalescas por meio de uma história divertida”. Os
espectadores acorreram em massa ao divertissement
carioca, mantendo-o 139 dias em cartaz.
O “grito do carnaval” de 45, Não
Adianta Chorar, deveu-se a Watson Macedo. A biografia de Watson é curiosa:
logo que terminou o ginásio em Nova Friburgo, Estado do Rio, em 1937, o futuro
diretor abalou-se para o Distrito Federal em busca da realização de seu sonho,
qual seja, ser diretor de cinema. E foi com este qualitativo que se apresentou
perante Carmen Santos na Brasil Vita Filmes. Pasma e incrédula, imaginamos a
atriz portuguesa ofereceu-lhe um cargo de técnico de som prontamente recusado
pelo “diretor”. Todavia- Watson ficou pelos estúdios dando seus palpites até
que Carmen Santos ofereceu-lhe a chance de dirigir uma comédia de média-metragem,
Barulho na Universidade (1943). No ano seguinte incendiavam-se os estúdios da Brasil
Vita Filmes e, em consequência da paralisação da produtora, a câmera Edgard
Brasil levou-o para a Atlântida como montador de filmes. Deste cargo Watson
passou a assistente de direção de Moacir Fenelon, esperando a sua oportunidade
de ouro – ele veio pela substituição na direção do carnavalesco de Rui Costa. O
resultado foi que o filme dirigido por Watson Macedo realizou uma bela carreira
assemelhando-se à fita anterior da empresa, atingindo 137 dias em cartaz. A
crítica da revista carioca comentava que Não Adianta Chorar era uma fita
dirigida a seis mãos, pois Watson Macedo foi auxiliado por Burle e Fenelon. E
mais: “foge um pouco ao ritmo técnico imprimido nos outros (filmes) devido a
causas várias como a rapidez com que foi feito, a preocupação de lançamento
imediato em sacrifício do trabalho de laboratório, pois o Carnaval está às
portas e o filme é carnavalesco”. A fita marcava o retorno da dupla Oscarito e
Grande Otel, desfiando as suas gags ao som dos Anjos do Inferno, Ciro Monteiro,
Namorados da Lua, Alvarenga e Ranchinho, Joel e Gaúcho e Sílvio Caldas.
Em 1946, Macedo voltaria com Segura
Esta Mulher, ultrapassando todas as marcas de êxito antes alcançadas pela
Atlântida; a aceitação popular da fita passava por cima de todas as reflexões
da imprensa. Os espectadores não davam a mínima para o crítico da Scena Muda, que declarava inexistir
argumento no filme – “não tem pé nem cabeça”, afirmava -, nem para o “plebismo”
do título, segundo o crítico do Estadão. O sucesso media-se pela segunda semana
no Ipiranga de São Paulo e pelo alargamento da exibição de 2ª linha, atingindo
por duas vezes, três cinemas de bairro simultaneamente.
Como chanchada trazia todos os predicados: Grande Otelo sem Oscarito,
depunha que o filme havia sido rodado às pressas: a revista carioca criticava o
excesso de músicas cantadas por Orlando Silva, Joel e Gaúcho e muitos outros. Scena Muda reconhecia porém que Watson
Macedo possuía “qualidades de um verdadeiro diretor”, enquanto que denunciava
que as piadas encenadas por Grande Otelo, Mesquitinha e Catalano eram adaptadas
com propriedade de filmes americanos. O primeiro fato reconhecia o status justo
que Macedo, dois anos depois elevado ao pedestal da glória eterna por Carnaval
do Fogo. O acerto da direção de Watson atraiu as atenções do virulento crítico
B. J. Duarte, que se assustou com a ausência na fita de trejeitos, saracoteios,
de letras grosseiras e maliciosas em sambas carnavalescas e da fotografia
maltrapilha – marcas registradas dos “aventureiros” realizadores de Caídos do Céu e Cem Garotas e Um Capote. Já
o segundo ponto denotava o carinho que a fita norte-americana recebia do
diretor, primeiros sinais do decalque que evoluira das gags às sequencias
inteiras copiadas – grilhões carregados com alegria.
1946 foi o ano de Segura Esta
Mulher, enquanto 1947 seria marcado por um fato que consolidaria a
Atlântida como produtora nacional de filmes.
Publicado originalmente
em CATANI, Afrânio Mendes; SOUZA, José Inácio Melo. A chanchada no cinema brasileiro. São Paulo: Brasiliense, 1983.
(Col. Tudo é História, número 76).
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