Capítulo V: O povão nas telas
Por Afrânio M. Catani e José Inácio de Melo Souza
Seleção e transcrição: Matheus Trunk
Luís Severiano Ribeiro Júnior, tendo nas mãos a partir de 1947 – quando
se torna o acionista majoritário da Atlântida – a produção, a distribuição e a
exibição de filmes, resolveu incrementar a produção das chanchadas, ao perceber
que elas poderiam ser uma fonte quase inesgotável de polpudos lucros. Tiro e
queda: até 1962 a companhia colocou no mercado uma quantidade incerta de filmes
(40 segundo alguns, 60 de acordo com outros e perto de 80 para os mais
exagerados), nos quais Oscarito, Grande Otelo, Dercy Gonçalves, Anselmo Duarte,
Violeta Ferraz, José Lewgoy, Wilson Grey, Renato Restier, entre outros, fizeram
as delícias do grande público.
Antes de prosseguirmos, merecem ser destacadas duas fases distintas na
evolução dos filmes musicais ou de chanchadas, como bem lembra Miguel Chaia, um
dos estudiosos do gênero. A primeira vai aproximadamente até o início dos anos
40, caracterizando-se por motivos, argumentos e situações simples e com números
musicais homogêneos, carnavalescos ou juninos, sendo Alô, Alô, Brasil!, Alô, Alô,
Carnaval! e Banana da Terra
filmes típicos dessa fase.
A produção cinematográfica brasileira desenvolve-se, em boa parte,
criando laços de dependência com a indústria cinematográfica internacional –
principalmente norte-americana -, quer no nível técnico, quer no nível da
linguagem. No caso das chanchadas, estas acabam gravitando ao redor dos gêneros
norte-americanos de filmes, como os musicais, o policial, o western, a reconstrução de épocas, etc.,
destacando-se entre outros, Matar ou
Correr, O Barbeiro que se Vira, Nem Sansão Nem Dalila, muitos próximos
dos originais made in Hollywood.
Esses laços de dependência com a indústria cinematográfica
norte-americana (que é a dominante) refletem-se em termos de domínio econômico
e, também, na esfera propriamente cultural, gerando neste último caso atitudes
colonizadas por parte dos realizadores, do público e da crítica
cinematográfica. Nesse sentido, através da paródia é que se procura atrair o
grande público, tentando capitalizar o sucesso do filme estrangeiro. Apesar de
boa parte da cinematografia brasileira fundar-se na cópia ou na imitação, tenta-se
– por meio desses recursos – retomar parte dos espaços do ocupante, do produto
estrangeiro, devolvendo ao público o original adaptado às peculiaridades locais
e made in Jacarepaguá.
O crítico Paulo Emílio Salles Gomes, em seu clássico artigo “Cinema:
Trajetória no Subdesenvolvimento”, pondera que no Brasil o fenômeno
cinematográfico desenvolvido no Rio de Janeiro a partir dos anos 40 é um
verdadeiro marco. Isto porque durante cerca de vinte anos a produção
ininterrupta de filmes musicais e de chanchada (ou a combinação de ambos) “se
processou desvinculada do gosto do ocupante e contrária ao gosto do
estrangeiro”. O público jovem e das camadas mais modestas garantiu o sucesso
dessas fitas, pois nelas encontrava aquilo que não estava presente no modelo
estrangeiro: o seu cotidiano, através de anedotas tipicamente cariocas,
maneiras de falar e de se comportar. “A identificação provocada pelo cinema
americano modelava formas superficiais de comportamento em moças e rapazes
vinculados aos ocupantes; em contrapartida a adoção, pela plebe, do malandro,
do pilantra, do desocupado da chanchada sugeria uma polêmica de ocupado contra
ocupante”.
Examinando as chanchadas Miguel Chaia percebe que essas produções
precisam ser entendidas enquanto produtos da indústria cultural; tais filmes
devem ser vistos no interior de uma articulação entre vários ramos de
comunicação dessa indústria, pois na linguagem da chanchada acham-se presentes
elementos do circo, do carnaval, do rádio e do teatro. Os filmes de chanchada
representam, na verdade, a primeira experiência de longa duração na produção de
uma série de filmes para o mercado, sendo que suas condições de produção
caracterizam-se por um esquema industrial que se auto-sustenta, utilizando
técnicas pouco sofisticadas e com um custo bastante reduzido.
Na década de 50 – em que é realizada a maioria das chanchadas –
observa-se o incentivo à industrialização brasileira, com o Estado investindo
maciçamente em infraestrutura (principalmente em energia e transportes) e nas
indústrias de base sob sua responsabilidade. Tal ação estimulou o investimento
privado não só por lhe oferecer economias externas baratas mas também por lhe
gerar demanda. Coube-lhe, além disso, uma tarefa especial: estabelecer as bases
de associação com a grande empresa oligopólica estrangeira, definindo
claramente um esquema de acumulação e concedendo-lhe generosos favores.
Encontrando um esquema de acumulação bem definido em que se apoiar e gozando de
amplos incentivos, a grande empresa oligopólica estrangeira decidiu investir no
Brasil.
Dessa maneira, quando o setor industrial começa a se firmar como núcleo
dinâmico da economia, observa-se um crescimento mais que proporcional das
grandes cidades brasileiras, com um alto crescimento demográfico também decorrente
das levas migratórias. Grandes cidades, grandes populações, constituição de um
público disponível para o lazer: aí está o mercado potencial dos filmes da
chanchada.
O início da década de 50 marca a volta de Vargas ao poder, agora eleito
pelo voto direto e, logicamente, o prosseguimento de uma prática política que o
Octávio Ianni chamou de “democracia populista”. Isso engendra uma estrutura de
classes sociais tênues que, mesmo considerando-se a dominação do capital sobre
o trabalho, abre um relativo espaço cultural e político às classes subalternas.
Nota-se a presença das massas populares, dos operários e trabalhadores urbanos,
dos homens do campo, de intelectuais e estudantes – ou sendo manipulados de
cima para baixo ou pressionando em sentido contrário. Os anos 50 (e início dos
60) expressam, assim, a emergência de grupos urbano-industriais no cenário
cultural e político do país bem como a tentativa de grupos dominantes no
sentido de incorporar as massas populares ao jogo político.
A cinematografia brasileira representa pelas chanchadas, numa época de
“abertura política relativa” (ou “abertura rabo de cabra”, segundo o velho
Gregório Bezerra), não poderia deixar de – à sua maneira – constituir-se em
mais um espaço disponível para marcar a presença do homem simples brasileiro. A
chanchada consagrou o herói virador e desocupado, de bom coração e crítico do
mundo que o cerca e, se quase sempre a participação política das massas
significou concretamente manipulação, o populismo acabou por articular um modo
de expressão das insatisfações populares. Exatamente nessa fase a chanchada
consegue exprimir com fidelidade o clima da época. Jean-Claude Bernardet,
apesar de considerar um assunto muito complexo a ideologia veiculada pela
chanchada, não tem a menor dúvida em afirmar que eram filmes críticos, “filmes
que conservam um tipo de sátira muito ligado à vida cotidiana”, levantando
problemas do tipo “as cenouras aumentaram”, “o leite ficou mais caro”,
problemas políticos municipais, de trânsito. São esses problemas que alimentam
as piadas, alimentam as situações.
A partir de agora, utilizando-nos do trabalho de Miguel Chaia, de dois
ou três artigos de Jean-Claude Bernardet, de outros de João Luiz Vieira e de
Ney Santos Filho, pretendemos mostrar como os filmes de chanchada são ambíguos,
pois ao mesmo tempo que definem um horizonte cultural nacional-burguês,
veiculam claramente a concepção de mundo das classes subalternas.
A chanchada geralmente possui um tema básico, qual seja, a realização de um
determinado objetivo em decorrência de um lance
de sorte qualquer (herança, prêmio, sorteio, etc). A narração é então
conduzida por um personagem que tem esse objetivo a ser concretizado por obra
do acaso, como num passe de mágica, e não devido a qualquer esforço pessoal ou
habilidade específica. A partir deste tema o filme se desenvolve através de uma
série de confusões e conflitos para, no final, tudo se resolver
harmoniosamente, com o herói saindo-se bem e os vilões sendo transportados num
camburão para a delegacia mais próxima. Paralelamente à ação básica,
desenvolve-se a ação do vilão, que procura apossar-se ou beneficiar-se do lance
de sorte, e a ação do personagem-amigo, que ajuda a realização do objetivo
colocado e também participa ativamente dos quiproquós.
Um rápido exame de algumas chanchadas permite confirmar o que foi dito
antes. Em A Baronesa Transviada, a
personagem principal (Gonçalina Piaçava, interpretada por Dercy Gonçalves) quer
se tornar atriz cinematográfica e o consegue ao receber uma herança inesperada;
O Camelô da Rua Larga é o caso de um
camelô que tem sua mala de quinquilharias trocadas por outra semelhante
contendo dinheiro. O Petróleo é Nosso
fala de uma fazendeira sem dinheiro que se torna milionária através do petróleo
encontrando em suas terras. Em Absolutamente
Certo um gráfico recebe um prêmio num programa de televisão de perdas e
ganhos e realiza seus desejos: comprar uma cadeira de rodas para o pai e
casar-se.
O desenvolvimento do tema básico se dá através de um componente
fundamental da chanchada: os incluídos e os excluídos da sorte que atingem os
personagens. Para Chaia, na chanchada “o dinheiro é colocado como artifício
que, quando ao alcance dos personagens, permitirá a realização do objeto ou
solução do conflito. Face a este artifício caracterizam-se os incluídos e os
excluídos na sorte”.
Os incluídos não se deixam
corromper pelo dinheiro, utilizando-o apenas como um meio. Em A Baronesa Transviada a baronesa, mesmo
herdeira, volta ao seu humilde trabalho de manicure; o camelô resiste a várias
tentações, mas usa só uma pequena parte do dinheiro encontrado, guardando o
restante. Os incluídos são, geralmente, os personagens principais e, devido a
laços de amizade, parentesco ou vizinhança, introduzem outros personagens nesta
categoria. Assim, um amigo ou o par romântico do filme também acabam por
compartilhar do lance de sorte, por tabela.
Já os excluídos são, na
maioria dos casos, os vilões ou bandidos que se colocam entre o personagem
principal e o seu objetivo, procurando se apoderar meio na marra do lance de
sorte. Nesse sentido a chanchada é maniqueísta, ficando claro desde logo os
bons e os maus, sendo estes últimos punidos no final do filme – a menos que se
regenerem e/ou se recomponham com os bons. Os excluídos de A Baronesa Transviada são os tios aristocráticos da herdeira que
estão ansiosos pela morte da baronesa-mãe para herdarem sua fortuna. Em O
Caçula do Barulho os excluídos são os componentes de uma quadrilha que faz
tráfico de brancas; já em O Camelô da Rua
Larga são os falsários e em Absolutamente
Certo são os membros de uma quadrilha de apostas.
Um outro aspecto presente nas chanchadas também merece ser explorado,
qual seja, sua virtude cômico-caricatural, elaborada numa perspectiva toda
especial de recriação do real. Assim, situações e personagens são construídos
através da comédia, da deformação do real, transfigurando-se a realidade social
e aproximando o espectador do filme. É através do divertido e caricatural que a
chanchada rompe com as convenções sociais vigentes: são criados alguns
cenários, hábitos e comportamentos, além de serem feitas várias críticas. João
Luiz Vieira, em seu artigo “From High
Noon to Jaws: Carnival and Parody
in Brazilian Cinema”, utilizando-se de trabalhos do antropólogo Roberto Da
Matta, comenta que a linguagem do carnaval constitui o principal código
cultural que anima e dinamiza a sátira da chanchada. O sistema de inversões que
se opera durante o carnaval – por exemplo o fato de o negro morador de uma
favela vestir-se como um rei, nobre ou outro soberano durante os quatro dias de
carnaval, representando exatamente o oposto de sua vida ao longo do resto do
ano – cria uma série de situações em que certos aspectos da estrutura social
podem ser criticados e as diferenças existentes nesta estrutura podem ser
melhor percebidas. Mas contando ou não com números musicais, as chanchadas
acabam sendo associadas de imediato a um clima carnavalesco, em que aparecem
críticas e observações frequentes sobre a vida política e administrativa da
então Capital Federal, sobre a falta de eletricidade e de água, acerca do
aumento dos preços dos alimentos, etc. Não são poupados os políticos com sua
retórica populista, fazendo promessas mirabolantes, bem as diferenças de
classe, a burocracia e seus burocratas e a situação dos negros na sociedade
brasileira. O público acabava se identificando com esses temas, entendia a
linguagem das chanchadas e as prestigiava em peso.
A preocupação com a sobrevivência ou com o cotidiano; a recuperação e a ênfase dada
às origens rurais, à vizinhança e à amizade, bem como o contato com os valores
urbanos, são os principais assuntos encontrados no discurso fílmico da
chanchada. Conforme salientamos, a preocupação com o cotidiano faz-se sentir
através dos reclamos contra a carestia, a inflação (a baronesa-herdeira chama o
mordomo de “Dez Centavos”, porque ele é “redondo, chato e não vale nada”) e a
inexistência de infra-estrutura urbana. Quanto à preocupação com a
sobrevivência, o camelô de O Camelô da
Rua Larga não consegue trabalhar porque está sempre fugindo da polícia,
está na iminência de ser despejado da pensão porque o aluguel está atrasado e
ainda, por não ter dinheiro, ter de aguentar as pressões da noiva, que há mais
de dez anos espera pelo casamento. Em Absolutamente
Certo o mocinho (que é gráfico) quer resolver os problemas de sua casa
(evitar que o pai continue trabalhando demais e comprar-lhe uma cadeira de
rodas) e com sua noiva, pois chega a ser expulso de casa pela mão da noiva que
só irá permitir sua volta quando tiver dinheiro para se casar.
A recuperação das origens rurais e a ênfase dada aos valores ligados à
amizade e vizinhança também perpassam quase todos os filmes. Normalmente o
amigo é vizinho e vice-versa. No nível das unidades narrativas são mostrados,
igualmente, os assombros dos personagens face a certos costumes urbanos, como
por exemplo a recusa ou a não adaptação face à burocracia, posição contrária
frente à corrupção e a propensão para a assimilação de certos valores urbanos,
sendo o mais expressivo o contato com a televisão, implantada há poucos anos.
Nesse sentido é que se pode afirmar que em seus filmes a chanchada trata
da vivência do homem simples brasileiro pertencente à condição de classe
subalterna – e não como participante ativo de uma classe operária com projeto
político. Era essa, na verdade, a condição efetivamente experimentada pelas
massas populares brasileiras nos anos 40, 50 e parte dos 60, antes do fim da
era populista, em 1964. O homem simples da chanchada é o homem urbano ou então
o simplório de origem rural que se encontra frente a uma nova situação, qual
seja, a urbana.
Nos filmes de chanchada observa-se, então, um estilo de vida dos
personagens baseado na noção de honra
social, não importando se tais personagens são proprietários ou ricos, mas
sim que pautam suas ações em função de certas convenções e de comportamentos
calculados previamente. E é com base em certas características compartilhadas
que se qualifica ou se desqualifica o personagem, remetendo-o ao esquema de
inclusão-exclusão social, tendo como referência um determinado código de honra.
O personagem simples da chanchada tem sua existência mais próxima de uma ordem
social estamental do que uma estrutura de classes. Para Miguel Chaia, é um
universo estamental mesclando-se com fundamentos de classes que acaba
caracterizando personagens como a manicure, o camelô, a atriz, ricos sem posse,
desqualificados, pretendentes ao estrelato, etc. que são os elementos
disponíveis na sociedade e cujas condições de existência e objetivos colocam-se
diretamente no nível do estabelecimento de um círculo de relações sociais e não
no nível do processo produtivo ou do político.
As situações criadas nos filmes, de modo geral, não se situam no
interior de um processo de produção (e portanto de existência) capitalista. Os
personagens movimentam seus valores tradicionais e até rurais, carregando os
valores coletivos de família, vizinhança, parentesco e trabalho. São, em suma,
agentes que não assimilaram a individualização da sociedade urbano-industrial,
mas nem por isso são esmagados ou achatados pelas relações que se estabelecem
no interior dessa sociedade. Quando os personagens trabalham (sim, porque não
são todos que partem para o sacrifício), não são operários do sistema,
configurando-se assim muitas vezes o trabalho marginal. Não se observa,
igualmente a valorização do trabalho como fator de produção capitalista e
tampouco a postura puritana de valorização do trabalho, sendo que o sentimento
da ação dos personagens principais e alguns secundários da chanchada está
defasado no sentido imprimindo à sociedade “através do processo ideológico
dominante expresso pelo desenvolvimentismo. São seres cujas existências não se
enquadram no padrão burguês estabelecido para o desenvolvimento
urbano-industrial vigente na sociedade brasileira mesmo nas décadas de 50 e 60.
São seres que não participam do pacto social estabelecido entre grupos sociais
naqueles anos: não são protegidos por legislações sociais ou trabalhistas, não
mercantilizam sua força do trabalho”. Em
suma, a chanchada trata dos simplórios que não entram no jogo
desenvolvimentista; de pessoas que não têm um projeto de vida (e/ou
político) que vá além de viver o dia-a-dia, de ir se arrastando e sobrevivendo.
De fato, não há lugar dentro do jogo desenvolvimentista para camelôs,
empregadas domésticas, mulherengos, preguiçosos, malandros, donas de pensão,
manicures, barbeiros, etc.
O sucesso popular e o direcionamento da chanchada devem-se em boa parte ao desempenho de vários dos atores e atrizes principais, capazes de dar sua parcela de contribuição efetiva na recuperação para as telas dos valores do homem simples brasileiro. Oscarito, Grande Otelo, Dercy Gonçalves, Zé Trindade, Violeta Ferraz, entre outros, eram atores que guardam grandes heranças populares, acrescentando muitas vezes passagens de suas vidas modestas e cheias de dificuldades aos papéis que interpretavam. A origem artística da maioria deles remonta ao circo, ao teatro de revista, ao rádio, tendo percorrido árduos caminhos até se tornarem famosos (mas sem muito ou com pouco dinheiro) com as chanchadas. Talvez algumas breves considerações sobre a trajetória artística de Oscarito – sem dúvida alguma o astro mais popular das chanchadas – ilustrem melhor o que acabamos de afirmar.
Oscar Lorenzo Jacinto de la Imaculada Concepción Tereza Dias, o
Oscarito, nasceu em Málaga, Espanha, em 16 de agosto de 1906 em um circo em
trânsito. Seus pais eram trapezistas nesse mesmo circo, onde Oscarito estreou
aos 5 anos no papel de um índio, em O
Guarani, de Carlos Gomes. No circo foi violonista da bandinha, acrobata e
palhaço. Anos depois, já no Brasil, fez teatro de revista e comédias de
costumes, tendo atuando nessa área durante muito tempo, antes de dedicar-se ao
cinema. Oscarito foi lutando pela vida nos circos e teatros mambembes
ambulantes no interior do país; essa foi a base de seu estilo como comediante,
o domínio do corpo, a sátira, a paródia, a avacalhação de tudo que fosse sério
e comportado. Ney Santos Filho transcreve um trecho do depoimento que Oscarito
concede para o Museu da Imagem e do Som (1968), onde conta um pouco de sua
história, sendo suas palavras semelhantes às de muitos personagens que
interpretou ao longo de dezenas de chanchadas: “Vim para cá pequenino e sofri
mais que sovaco de aleijado. Mas também fui aplaudido como jogador de futebol e
mais criticado que Presidente da República. E ainda tive que me virar na vida
como malandro. Logo, o que eu sempre fui mesmo é brasileiro”.
A maioria dos papéis interpretados por Oscarito foi a do herói malandro
e virador. Oscarito, quando trabalhava, o fazia nas mais modestas profissões:
varredor ou faxineiro das boates ou teatros onde aconteciam as ações dos
filmes. Ele correu de bandidos e da polícia, engoliu lista de jogo do bicho, se
vestiu de mulher e de bebê. Satirizou muitas pessoas famosas na época, tais
como Getúlio Vargas, Rita Hayworth, Gary Cooper: caricaturou Hamlet e Romeu e
Julieta, chegando inclusive a imitar o miudinho Harpo Marx na sequência do
espelho do Hotel da Fuzarca, fazendo com Eva Todor a sua própria imitação, bem
como a de Elvis Presley, de guitarra, topete e calça Lee, dançando rock. Oscarito tinha aquilo que sempre
foi raro na cultura brasileira, tendo sido mencionado várias vezes por Paulo
Emílio Salles Gomes, qual seja, a capacidade criativa em copiar – e Oscarito
era o elemento desestruturador na ordem interna das chanchadas, principalmente
as da Atlântida. Oscarito e alguns diretores mais criativos como Watson Macedo,
Carlos Manga e José Carlos Burle faziam uma espécie de apropriação do modelo
estrangeiro – ou, nas palavras de Bernardet, operavam uma antropofagia -,
devolvendo-o ao público brasileiro na forma de uma paródia bem-humorada,
satirizando aspectos do cotidiano do homem simples brasileiro e da vida
política nacional.
Um dos melhores exemplos do que se afirmou acima pode ser encontrado em Nem Sansão Nem Dalila, já comentado nas
páginas finais do capítulo anterior. Nesse mesmo 1954 (uma vez que Nem
Sansão...é desse ano) Carlos Manga também dirigiu Matar ou Correr, paródia do
clássico High Noon, de Fred Zinnermann. Na “versão brasileira” os papéis
principais estão a cargo de Oscarito e Grande Otelo, sendo que José Lewgoy
interpreta o bandidão. A cópia dos modelos de Hollywood, neste caso, é quase
perfeita: montagens, cortes, enquadramentos, diligências e faroeste – tudo isso
feito em Jacarepaguá! A versão de Manga mostra dois vendedores ambulantes
(Oscarito e Grande Otelo) que chegam à cidade vendendo uma bebida vagabunda
qualquer, pura trambicagem: por acaso,
Oscarito prende o bandido, inimigo público número 1 do local, e é logo nomeado
xerife. Mas um xerife medroso, sem a coragem e a firmeza de Gary Cooper. Mas
tarde o bandido foge e promete voltar para vingar-se de Oscarito. O filme
prossegue, com as gags e gozações
habituais, e chegada a hora do duelo final, Oscarito chora, reza, pede ajuda à
mamãe e num lance de sorte (mero acaso...) o bandido acaba sendo derrotado por
ele.
O acaso e a exploração da política internacional – a guerra fria entre russos e
americanos – estão em O Homem do Sputnik
(Carlos Manga, 1959): um sputnik cai
no galinheiro de Oscarito, tornando-o rico da noite para o dia, e ele passa a
ser avidamente disputado pelas grandes potências mundiais. Já o cotidiano do
homem simples brasileiro, de fácil identificação com o público, foi várias
vezes explorado em filmes de Zé Trindade, outro grande herói das chanchadas.
Ele geralmente interpreta a figura do virador, do funcionário público vadio,
que não gosta de trabalhar e pouco aparece na repartição. Acaba surgindo então
uma situação-chave: Zé Trindade, por causa de uma mulher opressora (que pode
ser a esposa ou sogra), foge do esquema familiar, indo à procura de outras
mulheres. Assim, vai a boates, a bailes, abre um salão de beleza ou de
massagens, estando sempre cercado de mulheres. Durante todo o filme ele circula
entre a esposa (ou a sogra) e as tais mulheres, sendo que no final volta para a
mulher originária, que desencadeou todas essas ações. Volta, reconhece que a
mulher não é tão ruim assim e adia para outra ocasião, sempre de bom humor e
dando tchau para a plateia , seus planos de emancipação dessa esfera familiar
que o oprime.
Watson Macedo foi também responsável por significativos exemplares do
gênero, tais como Não Adianta Chorar, Este Mundo é Pandeiro, Carnaval no Fogo,
Aviso aos Navegantes, O Petróleo é Nosso, A Baronesa Transviada, etc. Vários de
seus trabalhos têm uma estrutura de filme policial clássico, com perseguições,
lutas, intrigas. Revela Jean-Claude Bernardet que Macedo via muitas fitas
estrangeiras e fixa-se em algumas, acompanhando suas exibições pelo vários
cinemas da cidade – isso quando não podia vê-las na moviola. Uma das chanchadas
que mais marcou Bernardet foi Carnaval no
Fogo (1949), com Oscarito, Grande Otelo, Anselmo Duarte, Lewgoy, Eliana.
Neste filme está presente o seguinte esquema, comumente utilizado por Watson
Macedo: a comédia é criada a partir do fato de que um objeto pertencente a
alguém será perdido e posteriormente encontrado por outra pessoa. Como o
proprietário é caracterizado pelo objeto, as características do primeiro passam
para o segundo. Carnaval no Fogo é
assim: uma quadrilha aguarda seu chefe, que ela ainda não conhece. Ele deverá
ser identificado pelo porte de um determinado objeto que define o personagem
para os outros. “Perdendo o objeto, o personagem perde os seus atributos.
Atribuindo-se o objeto, qualquer outro personagem adquire também os atributos
do primeiro portador (...) Estes personagens qualificados por objetos, pura
exterioridade, vivem num mundo reificado ao extremo”. Após ser criada toda a
confusão, a comédia prossegue normalmente, limitando-se a verificar o que
acontece em função dessa distorção.
Carnaval Atlântida (1952), de José Carlos Burle é um dos
melhores filmes onde se pode perceber a relação entre a paródia, chanchada e
carnaval. A paródia surge então como uma resposta do cinema colonizado,
subdesenvolvido, através do gênero chanchada – que por sua vez se insere no
universo carnavalesco. Em Carnaval
Atlântida, há o filme dentro do filme: o diretor Cecílio B. de Milho
(lembram-se de Cecil B. de Mille?) tem a intenção de filmar o épico Helena de
Troia no Brasil, projeto esse logo abandonado com o implícito reconhecimento de
que o cinema nacional não comporta temas sérios (entendendo-se por “sérias” as
superproduções norte-americanas, com muitos extras e cenários grandiosos).
Assim, a história de Helena de Troia é substituída por um filme de carnaval e o
ambicioso projeto original fica para ser feito mais tarde. Regina (Eliana), a
filha de De Milho, convence-o de que o povo não quer temas históricos (coisa
séria, algo a ser entendido apenas por uma elite, domínio da cultura erudita);
o povo quer é saber do presente, que é o carnaval (domínio da cultura popular).
Não é por acaso que o Professor Xenofontes (Oscarito), um erudito, autor de
muitos livros de História e consultor de costumes do filme original, abandona
seus livros, parece que se despoja de sua refinada formação cultural e cai nos
braços de uma rumbeira cubana (Maria Antonieta Pons), o estereótipo da mulher
sensual e bonita, que leva os homens à perdição. Dito e feito: minutos depois
vemos Oscarito dançando rumba e transformado num debochado carnavalesco.
Carnaval, paródia, homem urbano brasileiro, política e realidade sócio
econômioca: esses os temas favoritas das chanchadas, principalmente as da
Atlântida. Tudo, é lógico, com muita malandragem e com o inigualável humor
carioca.
A partir da chanchada é que a realidade nacional começou a aparecer nas telas,
embora de maneira tímida, e o homem simples brasileiro passou a se comunicar
com as grandes multidões que com ele se identificavam, através de atores e
atrizes que já tinham alcançado certa popularidade no rádio e no teatro de
revista.
Os críticos uivavam a cada novo lançamento carioca, e frases do tipo
“mais um abacaxi nacional!” ou “descemos a nível de cloaca!” eram corriqueiras.
Carlos Manga conta ao jornalista Carlos Heitor Cony que o crítico Antônio Moniz
Vianna resumiu sua opinião sobre seus filmes numa única frase: “Caiu mais uma
manga”. Quando Manga lançou Carnaval de Brotos (1956) pela Atlântida, a crítica
não perdoou, meteu a ronca. Moniz Vianna achou o filme muito ruim, chegando a
insinuar que o dono da Atlântida ou Manga, um dos dois era homossexual: “O que
é que está havendo entre esses dois?”, perguntava atônito.
Mas a ira dos críticos não influenciava o grande público, que
praticamente não lia jornais – e quando lia, estava mais interessado nas
páginas policiais ou nas manchetes políticas. Além disso, em filme nacional não
se precisava ler letreiro, bastava ser todo ouvidos.
Atrações não faltavam: Ângela Maria, Nélson Gonçalves, Jorge Veiga, Cauby
Peixoto, Carlos Galhardo, Dircinha Batista, Trio Irakitan, Quatro Ases e Um
Coringa, Francisco Alves, Marlene, Emilinha Borba, Francisco Carlos, Ciro
Monteiro, Blackout, Elizete Cardoso, Orlando Silva cantavam seus sucessos mais
recentes. John Herbert, Anselmo Duarte e Cyll Farney derretiam os corações das
moçoilas casaidoras. Eliana Macedo, a “nossa querida Eliana”, liderou o elenco
em 23 produções, quase sempre interpretando a mocinha ingênua, bonitinha e
carinhosa, que os machões adorariam ter em casa.
Mas o filé-mignon, sem dúvida, ficava com os grandes apresentadores, os
mestres da confusão: Oscarito, Grande Otelo, depois Ankito, Costinha, Zé
Trindade ou Dercy Gonçalves. Eles desencadeavam todas as confusões, eram amigos
do mocinho e da mocinha, ajudando-os a combater os terríveis bad men,
encarnados por José Lewgoy, Wilson Grey e Renato Restier (depois Jece Valadão
entrou para reforçar o time). Quando as duplas Oscarito-Grande Otelo e
Lewgoy-Wilson Grey se enfrentavam, o cinema quase vinha abaixo, e a criançada
berrava. Mas, no fundo será que alguém acreditava que Lewgoy era vilão?
Boa parte dos homens, durante certo tempo, dava o dinheiro e despachava
a patroa com as crianças para as matinês nos fins de semana – dias
importantíssimos, consumidos entre intermináveis goles de Brahma e lances de
Vasco, Flamengo, Fluminense, Corinthians, Palmeiras e outros menos cotados.
Entretanto, depois de algumas constatações elementares, os produtores de
chanchadas descobriram a fórmula infalível de trazer a família inteira para as
salas escuras: era necessário deixar à mostra as bem torneadas coxas de Cuquita
Carballo e Maria Antonieta Pons, importadas diretamente da Pelmex. E assim tudo
entrava nos eixos: família unida, receita garantida.
Foi graças às chanchadas e à receptividade alcançada junto ao grande
público que a indústria brasileira de filmes conseguiu sobreviver, apesar da
enorme concorrência estrangeira. Mas apenas sobreviver, conforme lembra o
crítico Sérgio Augusto, porque mesmo no auge das chanchadas – na primeira metade
dos anos 50 -, o cinema brasileiro ocupava somente 6% do mercado exibidor.
Publicado originalmente em CATANI, Afrânio Mendes; SOUZA, José Inácio Melo. A chanchada no cinema brasileiro. São Paulo: Brasiliense, 1983. (Col. Tudo é História, número 76).
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