A chanchada no cinema brasileiro, capítulo IV: A Atlântida sobe
Por Afrânio M. Catani e José Inácio de Melo Souza
Seleção e transcrição: Matheus Trunk
De 1941 a 1947 a Atlântida consolidou-se como a maior produtora carioca
e, consequentemente, do Brasil. Ao contrário da Cinédia e da Brasil Vita
Filmes, empresas mergulhadas em ciclotimias emperradoras, a Atlântida
desenvolvia seguidos empreendimentos derivados de linhas de produção
complementares, quais sejam, a chanchada e as fitas “socializantes”, forças
condutoras da perenidade da empresa. Em razão da estratégia adotada pela
companhia, permaneciam anunciadas em alguns cinemas dos grandes centros durante
todo o ano as suas fitas, possibilitando aos espectadores a escolha conveniente
a qualquer tempo. Três ou quatro filmes anuais forçavam a convivência benéfica
entre o cinema brasileiro e o público, fato inovador e formador das primeiras
plateias cativas da fita nacional.
Mal instalada, ela era também mal equipada. Pedro Lima criticava a sua
aparelhagem rudimentar e seu quadro técnico pouco numeroso e despreparado.
Descuidava-se da montagem dos estúdios, da compra de aparelhamentos, que não
conduziam nem a uma produção aprimorada nem à formação técnica de novos
quadros. Completando o panorama negativo da Atlântida infere-se, pelos poucos
dados, que ele era também péssima remuneradora do trabalho de seu pessoal.
Watson Macedo entrou para a empresa na função de montador e mesmo passando à
direção continuou a receber o seu salário anterior. Nos seus dois últimos
filmes “melhorou de vida”, subindo seus ganhos para Cr$ 10.000,00. A sua
sobrinha Eliana Macedo, futura integrante do sistema estelar da empresa, entrou
recebendo Cr$ 8.000,00 na chanchada E o
Mundo se Diverte (1949). Contratada para figurar em dois filmes anuais
passou para Cr$ 10.000,00. Para termos uma ideia do pouco que representava o
seu salário, Eliana, quando saiu da Atlântida acompanhando o seu tio em 1952,
pulou para 100 mil cruzeiros na Watson Macedo Produções Cinematográficas.
Adelaide Chiozzo depois de anos de contrato passou a receber Cr$ 25.000,00
quando só o vestido que usava num filme valia Cr$ 35.000,00.
O aspecto relativo ao guarda-roupa dos atores é interessante, lembrando
as produções entre amigos, onde o próprio artista confecciona sua vestimenta.
José Lewgoy no seu primeiro filme, Carnaval
no Fogo (1949), quase esteve impedido de contracenar com Oscarito e Grande
Otelo por não possuir um smoking exigido no roteiro. Foi salvo pelo de José
Sanz. A prática hollywoodiana da exclusividade contratual também foi empregada
pela Atlântida: Oscarito e Grande Otelo, para citarmos apenas dois exemplos,
eram atores exclusivos. A estratégia revelou-se perversa, pois restringia a
participação dos artistas em outros filmes de ganhos superiores ou então na
negociação, em melhores bases, pelo ator, conforme a sua ascensão popular.
Consequentemente, acontecia aquilo que Renato Murce, relatando a sua
experiência radiofônica, comentava sobre a vida profissional do artista: “O
rádio, como ninguém ignora, criou uma série interminável de mitos...Entre eles,
o de que quem atingisse aquele grau de prestígio junto ao público deveria ser,
forçosamente, um artista rico! Puro engano: os artistas, com muito raras
exceções, ganhavam ordenados ridículos. A única ou maior vantagem era a
divulgação dos seus nomes por esse Brasil afora. Tornava-os conhecidos.
Proporcionava-lhes também uma renda extra: atuavam em espetáculos ou faziam
pequenas excursões no interior do país durante as férias. Desse expediente tive
que me valer: equilibrava as finanças, sempre em caixa muito baixa”.
As palavras de Renato Murce são poderosamente amplificadas quando
sintonizamos na temporada paulistana de Grande Otelo em 1945. Por dez dias
corridíssimos o artista “em pessoa”, como anunciava o programa, apresentou-se
no Teatro Colombo e Circo Seyssel, passando depois aos cineteatros de Santo
André e São Caetano, voltando à capital para terminar o roteiro nos cines
Rialto e Fênix, além do Circo Piolin. No Rio de Janeiro, na temporada teatral
de 1947, Oscarito obtinha grande sucesso com a revista “Homem Não!”, que o
crítico Accioly Neto de O Cruzeiro
afirmava tratar-se de uma crítica à peça “Desejo”, de O´Neill. O teatro de
revista era uma fonte importante do trabalho para Oscarito. Quando a ditadura
estado-novista impedia a caricaturização política, ou quando cinema não era
capital na sua vida profissional, Oscarito passou grandes temporadas em São
Paulo encenando, juntamente com Beatriz Costa, espetáculos teatrais. Graças à
projeção nacional alcançada pelas suas participações nas chanchadas da
Atlântida (um exemplo vivo é Este Mundo é um Pandeiro, de 1947), Oscarito
viajava o Brasil com suas revistas satíricas.
Por falar em Este Mundo é um
Pandeiro, subia o cartaz de Watson Macedo na Atlântida, embalado perlo
êxito crescente de suas fitas. A película no Rio permaneceu em cartaz duas
semanas além dos sete dias obrigatórios nos cinemas presos à rede exibidora de
Severiano Ribeiro. A ultrapassagem da semana obrigatória estava se tornando um
atestado de qualidade para os filmes – assim entendia Raimundo de Magalhães Jr.
pela Scena Muda. Pedro Lima citava
Recife, território de exibição de Severiano, onde o mesmo fato ocorrera,
suspendendo-se as projeções somente na entrada da Semana Santa. Quanto à
crítica, a coluna de Scena Muda
achava a nova fita de Watson Macedo inferior a Segura Esta Mulher, que estava em reprise. De Este Mundo é um Pandeiro salvavam-se um espanhol de Málaga chamado
Oscar Lorenzo Jacinto de la Imaculada Concepción Tereza Dias, apelido de Rei
Oscarito, mais Marion e os quadros de bailados de revista conduzidos pelo
bailarino Yuco Lindenburgh e seu corpo de baile.
O ótimo sucesso das chanchadas da Atlântida encontraram em 1947 o ano da
saturação transformadora. Impelidos pela sequencia de boas performances da
firma, novos investidores entraram no mercado produtor, aumentando
consideravelmente o volume de produtores e produções. A Cinegráfica São Luiz, a
Cinelândia Filmes, Tapuia, a Atlântida e a tradicional Brasil Vita Filmes
preparavam nove filmes para o ano, dado que levou Pedro Lima à eufórica e
angustiosa conclusão que após os êxitos das chanchadas da Atlântida e de O Ébrio, da Cinédia, “todo mundo passou
a ser cineasta”.
Mas não foi só de cineastas e produtores que se encheu o cinema brasileiro.
1947 presenciou a entrada do truste exibidor der Luís Severiano Ribeiro Jr.
como produtor de filmes, integrando-se ao mercado já dominado por ele nos
setores de exibição e distribuição. A estratégia da participação do exibidor na
produção tinha a sua lógica. A seção “Cinegráfica” de O Cruzeiro acusava, atrás
da anônima assinatura de “Operador”, que Severiano durante a guerra havia
comprado cotas da Distribuidora de Filmes Brasileiros (DFB) e da Distribuidora
Nacional (DN), que eram duas ou três firmas especializadas na distribuição de
filmes brasileiros no eixo Rio-São Paulo. Severiano trazia o cabedal dos
territórios de exibição do Rio-Leste-Nordeste-Norte do país, agora acrescido de
um laboratório cinematográfico que pretendia ser o melhor do Brasil. O passo
seguinte da estratégia do exibidor foi aproveitar-se da exibição corrente no
meio cinematográfico, propondo co-produções a quantos projetos houvesse. “Operador”
fazia as contas dos lucros do magnata da exibição: entrava com 50% do capital
na produção que em parte seria coberto por trabalho de laboratório; terminada,
a fita entrava em exibição nos seus cinemas, de onde retirava uma participação
de 50% da renda bruta que lhe cabia na qualidade de exibidor. Abocanhava de 20
a 30% da renda do filme como redistribuidor para outros territórios através de
sua coligada União Cinematográfica Brasileira (UCE), por último, retirava 50%
dos lucros do filme como co-produtor. Conclusão de “Operador”: “É por isso que
além do seu laboratório, vem pensando também na criação de um pequeno e moderno
estúdio, onde não só poderia realizar os seus filmes, como o alugará aos
produtores independentes, que por sua vez lhe entregarão as distribuições,
continuando o complicado círculo vicioso do qual saíra sempre o mais
beneficiado”.
“Operador” destacava as intenções do truste em setembro. No número 9 da
seção, datada de 18-10-47, ele nos informou que Severiano Ribeiro invertera a
sua rota de construção de estúdios próprios pela compra de cotas da Atlântida,
tornando-se seu acionista majoritário. A agitação foi imediata, revelando-se
grandes expectativas pela entrada de Severiano, uma vez que ele daria novo
dinamismo ao tripé da produção-distribuição-exibição organizados
harmonicamente, e que fora o sustentáculo da produção fílmica dos primeiros
anos do cinema brasileiro. O fato instigava no Rio especulações sobre o aumento
da produção em bases sólidas. “Operador” salientou o desejo de boas intenções
por parte de Severiano, pois assim seriam introduzidas “possibilidades de serem
criados novos diretores, novos operadores, gente nova para a técnica e para
novas equipes, a fim de que o número de produções aumente...”. Para o articulista,
se fazia necessário o abandono pela Atlântida da característica de “diversão de
família” para se orientar na direção de uma indústria. Era o fim da “burladas”
(referência aos irmãos Burle).
Mas isso não ocorreu. Os estúdios não continuaram precaríssimos e a
divisão de trabalho interna aos filmes seguiu reduzida a um fio de elementos
imprescindíveis à continuidade e finalização das películas. Trocando em miúdos,
isto significava que Waldemar Noya continuou na função de eterno montador;
Amleto Dassé e Edgard Brasil fotografaram uma boa parte dos filmes produzidos e
os mesmos diretores revezam-se na direção das fitas. As mudanças na Atlântida
aconteceram ou por morte (Edgard Brasil), ou por incompatibilidade com o truste
(Fenelon), ou quando Severiano ineptamente não segurou a cornucópia de dinheiro
representada por Watson Macedo, que preferiu ganhar pouco mas na sua própria
firma. Outro fato negativo foi a queda na produção, instante em que se esperava
o inverso, decrescendo o nível de dois filmes por ano – geralmente duas
chanchadas.
O pós-guerra anunciara um movimento ascendente do cinema brasileiro. O nosso
crescimento não era isolado, refletindo, entre outras razões, um recuo do
cinema norte-americano e avanço dos cinemas de outros países, como o mexicano e
o argentino. Incendiava-se o meio cinematográfico: “1948 será o ano do cinema
brasileiro”, previa Luiz Alípio de Barros pela Scena Muda. Em outro número da revista, Rubem Braga, comentando o
balanço de uma produtora publicado no Jornal
do Commercio, dizia que, com apenas dois filmes produzidos em 1947, a firma
apurara 835 mil cruzeiros de lucro, deduzidos despesas gerais e imposto de
renda. Com otimismo, Rubem Braga assinalava que de posse daqueles números não
se podia negar que tínhamos uma indústria cinematográfica ao invés de
aventuras, de sucessões de golpes. Dentro da efervescência do meio
cinematográfico carioca e sentindo no ar os sintomas de uma virada, a crítica
pedia a cabeça de muitos diretores, eternos cultores da chanchada. Fred Lee, na
mesmíssima Scena Muda, gritava pelo
término da aventura (palavra que obteria muito sucesso dali para frente), da
improvisação e da cavação. O público deveria vigiar as películas, advertia,
abandonando-se o patriotismo do aplauso sem reservas. Ele chegava a sugerir a
aplicação no cinema do “Clube da Vaia”, à moda de similar comportamento criado
para o teatro por Pascoal Carlos Magno. O que era antes corriqueiro, cotidiano,
merecia agora crítica corrosiva. J. Arnaldo soltava os cachorros pela revista
carioca: “Filmes são feitos às pressas, pobres de técnica e arte, com o único
fim de, sob qualquer rótulo carnavalesco, atrair o público amigo de Momo, que é
o único que não pode ser acusado de inimigo do cinema nacional”. Infelizmente,
terminava o articulista, jamais o cinema brasileiro melhorou seus celuloides,
embora o público correspondesse com boas rendas.
Até São Paulo, saindo da longa ausência, engrossava o cordão de crítica à
conjuntura cinematográfica nacional. São Paulo renascia para o cinema pela sua
crítica, pelos cineclubes emergentes, onde radicais e elitistas dedicavam-se ao
culto do cinema estrangeiro, local em que o belo fremia epidermes ansiosas. O
produzido no País era visto de viés ou então, mais frequentemente, negado. Em
1949 os cineclubes desconheciam o cinema brasileiro e B. J. Duarte, em O Estado de S. Paulo, sintetizava o
não-reconhecimento à cidadania pela famosa frase “cinema nacional é coisa que
não existe”. O alvo principal era a chanchada e seu sistema de produção. Na
visão do crítico paulista fazer cinema compreendia outras coisas além de atores
à frente de uma câmara. O bom cinema exigia de seus realizadores alfabetização
na gramática cinematográfica, no conhecimento dos grandes nomes e peças do
cinema mundial, bebendo-se este saber nas filmotecas e nos livros. Faltava
cultura para termos um grande cinema, antes do aparelhamento e do capital, e
isto estava ao alcance daqueles que passassem pelos Clubes de Cinema e Grupos
de Estudos Cinematográficos – escolas de cinema possíveis na época. Dentro
destas premissas B. J. Duarte considerava ridícula a nossa cinematografia,
indigna de cotejo com a mexicana que em Enamorada
e Flor Silvestre tinha dois filmes
contemporâneos de classe internacional. As exceções no Brasil foram Limite, Uma Aventura Aos Quarenta
e Estrela da Manhã, este último ainda
em filmagens mas que, no seu entender, prometia muito.
A ácida investida da crítica paulista contra a produção de chanchadas
mostrava mais desejos ocultos do que uma compreensão exata do fenômeno carioca.
São Paulo crescia avassaladoramente desde a Segunda Guerra Mundial, dando
margem à invenção do slogan “a cidade que mais cresce no mundo”. A sua
burguesia estava ávida de compensações culturais que a salvassem da aridez
provinciana. Escola de Arte e Museus de Arte Moderna, o Teatro Brasileiro de
Comédia etc. proviam Fifi, Olívia e Mimi – celebradas figuras da reportagem de
Joel Silveira, “Grã-Finos em São Paulo”. E o cinema? Bem, para São Paulo o
cinema era o Rio e o Rio em termos de cinema...
A agitação do cinema carioca no ano de 49 obteve um balanço extremamente
positivo por parte de Alex Viany nas páginas de Scena Muda. Ele realçava o
número de produções (18), a qualidade técnica (conseguia-se entender quase 90%
do som das fitas), bem como a revelação de valores (Ruth de Souza, Orlando
Villar, Maria Della Costa, Maria Fernanda, Anselmo Duarte). A produção
diversifica-se, preenchendo os novos diretores a lacuna deixada pela saída dos
filmes “sérios” da Atlântida. Para São Paulo, que naquele ano de 1949 produziu
duas fitas – Luar do Sertão de Tito
Batini e Mário Civelli e Quase no Céu
de Oduvaldo Vianna -, o cinema brasileiro permanecia em decadência devido
exclusivamente ao cinema carioca, crucificando-se, independentemente de valores próprios, todos os filmes sob o
estigma da chanchada. O que São Paulo compreendia como chanchada está no livro Burguesia e Cinema, de Maria Rita
Galvão: “Á sensibilidade burguesa, no entanto, repugnava na chanchada aquilo
que ela tinha de mais aparente: a produção rápida e descuidada, alguns cômicos careteiros,
o humor chulo, a improvisação, a pobreza de cenografia e indumentária, todas as
decorrências do baixo orçamento. O que repelia, fundamentalmente, era a
chanchada enquanto tipo de espetáculo, exatamente como o teatro ligeiro da
época, e muito parecida com ele. Sobretudo como tipo de espetáculo, porque é
pouco provável que as pessoas tivessem alguma noção do que representava a
chanchada em termos de produção”. Dito isto, entende-se o afã da burguesia
paulistana em tirar o cinema brasileiro do abismo em que se encontrava. E para
tal criou-se a Companhia Cinematográfica Vera Cruz, na tarde de 3 de novembro
de 1949.
A Vera Cruz veio para dividir. O que aconteceu antes e o que aconteceria
depois da data de sua fundação estavam totalmente dissociados como se,
justamente naquele dia, regado pelo brindes e aplausos da burguesia
frequentadora do Museu de Arte Moderna, nascesse o cinema brasileiro.
Na esteira da Vera Cruz vieram outras grandes produtoras com0o a
Maristela e a Multifilmes, e mais 40 ou 50 pequenas produtoras independentes,
alcunhadas por Benedito Junqueira Duarte pelas páginas de Anhembi de “cogumelos
de uma só manhã”. Do Rio vieram tentar a sorte na canãa cinematográfica
paulista. O êxodo contou com Alex Viany, Anselmo Duarte, José Carlos Burle,
técnicos os mais diversos, e só não importamos Oscarito pelo seu desagrado com
o contato oferecido pela Vera Cruz.
O boom cinematográfico
transformou-se num cadinho de ideias sumamente entrelaçadas à história do
período: Getúlio volta ao Catete nos braços do povo, portando na bagagem uma
política nacionalista que provocaria atritos com a burguesia e os militares; as
esquerdas, encabeçadas pelo Partido Comunista Brasileiro, desfraldavam diversas
bandeiras de luta; o golpismo dos partidos conservadores rondava o espectro
político. O cinema contaminou-se das lutas do tempo. Um grande números de
intelectuais de extração esquerdista, da qualidade de Alex Viany, Carlos Ortiz,
Salvyano Cavalcanti de Paiva, José Ortiz Monteiro, Mauro de Alencar e Artur
Neves, entre outros, fizeram do cinema um campo de combate (onde demonstravam
bom aguerrimento) e de experiências teóricas ou fílmicas, construídas na
maioria das vezes com menos garra e inspiração. Ao lado do brilho técnico das
produções da Vera Cruz e sucedâneos, formulou-se um corpo de ideias dedicadas à
crítica destas realizações que escamoteavam, segundo as esquerdas, as condições
do homem brasileiro. Ultrapassando a palavra publicada e falada, eles
investiram na produção de seus filmes, vindo às telas, então Agulha no Palheiro (1953), Rua Sem Sol (1954), O Saci (1953) e Rio, 40 Graus
(1955).
Diante do quadro transformador em que vivia o cinema brasileiro
entrechocavam-se, no interior do campo cinematográfico, novas tendências
voltadas ou para o cosmopolitismo ou para o nacionalismo. Do debate a Scena Muda extraía alento para a
demolição da chanchada, reconhecendo todavia a inutilidade de seus esforços. Aí Vem o Barão (1951), de Watson Macedo,
tinha o seu comentário na revista finalizado com as seguintes palavras: “Não
recomendamos a ninguém, mas temos certeza que os fãs de Oscarito e do cinema
brasileiro irão de qualquer maneira”. Salvyano Cavalcanti de Paiva em estudo
sobre a comédia internacional e a brasileira destinava à primeira o reinado dos
astros cômicos e, à segunda, o deserto. No Brasil não havia “um comediante que
constituísse, com dignidade, um tipo, uma figura de arrebatar, pela atuação
imediata e pelo que de universalismo contivesse, às plateias populares e à
elite intelectual capaz de nele reconhecer o representante de uma classe, de
uma casta, de uma nação”. Á sugestão do nome de Oscarito, Salvyano recusa, pois
ele não seria jamais “esse tipo, esse elemento que representasse nacionalmente
uma forma e universalmente na essência, o que correspondente de Carlitos”. No
Brasil comédia significava o pior tipo delas, qual seja, a chanchada: “É o
disparate vulgar combinado a um pouco de sexo e de frases de duplo sentido.
Influência do baixo teatro, da burleta e do radiologismo mais ruim. Que do
rádio e do teatro é que têm vindo os nossos cômicos...”. A alta comédia
praticada no exterior inexistia no Brasil: “Os realizadores, incapazes, alegam
dar ao público o que o público quer. E a cômicos de certas possibilidades
entregam papéis ultrajantes, velhacos, que não oferecem a mínima oportunidade
para a mostra de suas qualidades histriônicas, pelo contrário, filmes sem
roteiro obrigavam o cômico a improvisar uma gracinha, balbuciar uma ‘pilhéria
pornográfica’ ou a aproveitar a gíria do momento”.
A companha da revista a Scena Muda
continuou a cada filme trazido à tela pela Atlântida. Em 1953 pedia que Watson
Macedo abandonasse os hotéis Copacabana e Quitandinha e estruturasse, em
contrapartida, enredos levados no meio da rua. Carnaval Atlântida, de Burle, era aquinhoado com comentário de
Lívio Dantas que, sem meias palavras, dizia: “Positivamente, a Atlântida virou
um clube de carnaval com muita bagunça, muita pândega e não poucos desvarios
(...) Quiseram os responsáveis por aqueles estúdios fazer um filme musical
depois de um incêndio que devorou suas instalações. Ora, muito bem! Foi feito o
filme musical, não há a menor dúvida. Mas, à custa de quê? A custa de chavões,
de decalques em filmes estrangeiros, de situações cômicas mais velhas que a Sé
de Braga. Á custa da fama de rumbera de Maria Antonieta Pons, à custa dos
trejeitos repetidos por Oscarito e, sobretudo à custa de todos nós que sempre
temos demasiada boa vontade para com os filmes nacionais, apoiando-os
irrestritamente, mas sempre decepcionados cada vez que os projetores começam a
exibir a prata da casa...”.
Conquanto a crítica fosse implacável, a Atlântida respondeu-lhe com um
filme que, embora negativamente recebido, passou à história do cinema
brasileiro como um filme político por excelência: Nem Sansão Nem Dalila (1954). A direção era de Carlos Manga,
estreante da safra de 1953 (Dupla do
Barulho), escolado na direção amadorística de shows. Conduzido à Atlântida
por Cyll Farney, começou ganhando seis vezes menos do que ganhava fora do
cinema, o que não o desanimou; outra decepção foi não encontrar Hollywood na
Atlântida. Manga declararia mais tarde que sua geração estava toda impregnada
de americanismos, tanto que ele era presidente do fã-clube de Frank Sinatra no
Brasil. Curtido no cinema americano faria, à semelhança de seu modelo Watson
Macedo, transposições literais de filmes de Hollywood. Nem Sansão Nem Dalila parodiava Sansão
e Dalila, de Cecil B. de Mille; Matar
ou Correr fazia sombra a Matar ou
Correr (High Noon), de Fred
Zinnemann. O Homem do Sputnik
satirizava a guerra fria entre russos e americanos, e por aí afora.
Nem Sansão Nem Dalila, segundo Scena
Muda, contava as peripécias de Oscarito (Horácio no filme), engraxate de
barbearia, que ia parar em Gaza. Conseguida a infalível peruca de Sansão,
Oscarito promovia eleições “livres e honestas” no reino, tornando-se um
governador de “poderes ditatoriais” que distribuía cargos letra “O” a todos os
seus companheiros e amigos, numa alusão ao empreguismo varguista glosada na
letra de sucesso do carnaval de 1952, gravação de Blackout, “Maria Candelária”.
Lançada em 20 cinemas, não motivou o semanário carioca a uma crítica melhor. O
comentário de pré-estreia estranhava a apropriação de assuntos exóticos pela
fita, como os temas bíblicos ou os filmes fantásticos. De resto, Oscarito
carregava a glória, porém desarticulado do conjunto, aparecendo bem apenas em
momentos isolados. A revisão do filme feita por Jean-Claude Bernardet mostrou,
entretanto, uma leitura totalmente diversa da produzida por Scena Muda. Bernardet considera o filme
de Manga um dos “melhores filmes políticos brasileiros”. Segundo o crítico, seu
roteiro tratava de um sonho de Oscarito que conseguia a peruca de Sansão,
trocando-a por um isqueiro e transmutando-se num homem fortíssimo. Em Gaza o
rei recebia o aviso dos deuses de que o reino seria destruído por um homem
forte e, à chegada de Oscarito, o rei pede que ele não destrua Gaza. Oscarito
acede mas impõe uma condição, qual seja, a de ser governador do reino. O rei
tem um assessor militar que se agasta com o fato, inclusive com as medidas
populistas tomadas por Oscarito. Após a posse, atentados contra Oscarito
falham, até que Dalila descobre a fonte de sua força. O assessor militar
consegue apoderar-se da peruca, expulsa Oscarito e usurpa o poder real.
Oscarito consegue reaver a peruca, desenrolando-se os sucessos finais de
destruição do templo e fim do sonho. Jean-Claude conclui, então, que na fita
ficava clara a sucessão de golpes, sendo o primeiro populista, momento em que
Oscarito sobe ao poder e toma atitudes “consideradas de interesse do povo, só
que o povo não toma parte dessa tomada de medidas”. Mantida a mesma estrutura
de poder Oscarito, posteriormente, será destruído por meio de um golpe de
estado promovido pelo assessor militar, “insatisfeito com a concessão feita
pelo rei ao populismo”. Desse modo, tem-se um golpe de estado populista e um
contragolpe de tipo militar. Até parece que Manga percebeu o que aconteceria em
1964.
Nem Sansão Nem Dalila pode ser considerado como o limite extremo
da evolução da chanchada. Depois de anos absorvendo os mais diversos elementos
extraídos do circo, do carnaval, do rádio e do cinema estrangeiro, do mood carioca e da ginga, a chanchada
começou a sofrer o combate de um novo meio de comunicação: a televisão. Dos
anos 30 aos anos 50 o cinema expandiu-se continuamente. Implantada no Brasil em
1950, a televisão terminou a década com quase 600.000 aparelhos instalados,
tendência sempre crescente e determinante na queda da frequência de
espectadores aos cinemas. Afinal, para que assistir a chanchadas em cinema
quando se poderia desfrutá-las confortavelmente em casa? Mas outros fatores
aliavam-se à televisão para mudar o cinema brasileiro. A Vera Cruz institui um
tipo de produção refinada, adversa do “feito ás pressas” da chanchada e que
abria as portas do cinema internacional ao brasileiro. A reação nacionalista ia
rapidamente se espalhando, de início contrária ao governo Dutra e depois ao de
Juscelino, pois ambos desenvolveram uma política de abertura ao capital
internacional – o interregno varguista do “Petróleo é Nosso” reforça a vaga
nacionalista. Rio, 40 Graus e Rio, Zona Norte anunciavam os temas da alienação
e da conscientização que frutificaram com o Cinema Novo. Correndo contra o
relógio, Juscelino queria remodelar o Brasil com a frase “50 anos em 5”: Elvis
Presley, o DKW, Brasília, Niemeyer, O Repórter Esso, a Revolução Cubana, Nikita
Kruschev e John Kennedy diziam adeus à chanchada e não pediam passagem para
ocupar o lugar. O Brasil entrava na década da “Revolução” e a chanchada saía
das telas para entrar na história.
Publicado originalmente em CATANI, Afrânio Mendes; SOUZA, José Inácio
Melo. A chanchada no cinema brasileiro.
São Paulo: Brasiliense, 1983. (Col. Tudo é História, número 76).
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