quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

A chanchada no cinema brasileiro, parte IV de V: A Atlântida sobe

A chanchada no cinema brasileiro, capítulo IV: A Atlântida sobe

 

Por Afrânio M. Catani e José Inácio de Melo Souza

Seleção e transcrição: Matheus Trunk

 

De 1941 a 1947 a Atlântida consolidou-se como a maior produtora carioca e, consequentemente, do Brasil. Ao contrário da Cinédia e da Brasil Vita Filmes, empresas mergulhadas em ciclotimias emperradoras, a Atlântida desenvolvia seguidos empreendimentos derivados de linhas de produção complementares, quais sejam, a chanchada e as fitas “socializantes”, forças condutoras da perenidade da empresa. Em razão da estratégia adotada pela companhia, permaneciam anunciadas em alguns cinemas dos grandes centros durante todo o ano as suas fitas, possibilitando aos espectadores a escolha conveniente a qualquer tempo. Três ou quatro filmes anuais forçavam a convivência benéfica entre o cinema brasileiro e o público, fato inovador e formador das primeiras plateias cativas da fita nacional.

 


O ritmo produtor imposto pela Atlântida, contrariamente ao imaginável, não desaguou na Hollywood tropical. A agradável impressão oferecida pelos incertos dados que cercavam a sua constituição, somada aos minguados lucros resultantes de fraudados borderôs dos filmes colocados no mercado exibidor indicariam um crescimento físico da empresa, o que também não se revelou verdadeiro. Os informes presentes nos artigos de revistas e nos livros de cinema configuram a precária situação da firma carioca, tanto quanto ou pior que na sua fundação. Pedro Lima, escrevendo para
O Cruzeiro (março de 1947), afirmava que das três produtoras importantes do Rio a Atlântida era a mais credenciada, mesmo funcionando num antigo boliche – fonte de pitorescas histórias. Pedro Lima, o decano da crítica cinematográfica, contava que se pedia silêncio à vizinhança quando se filmava de dia; José Sanz, desfiando os apuros da empresa no seu artigo italiano, não esquecia de incluir no relato a anedota do homem postado em cima do telhado do edifício, sinalizador da aproximação de trens ou aviões que interfeririam nas gravações diretas dos diálogos cênicos. A impropriedade dos estúdios foi taxativamente anunciada em 1949 quando Alberto Cavalcanti os visitou: “Isto não é um estúdio...é uma fogueira” bradou, mas não foi ouvido. O resultado veio três anos depois, com um incêndio que devastou o antigo barracão.

 

Mal instalada, ela era também mal equipada. Pedro Lima criticava a sua aparelhagem rudimentar e seu quadro técnico pouco numeroso e despreparado. Descuidava-se da montagem dos estúdios, da compra de aparelhamentos, que não conduziam nem a uma produção aprimorada nem à formação técnica de novos quadros. Completando o panorama negativo da Atlântida infere-se, pelos poucos dados, que ele era também péssima remuneradora do trabalho de seu pessoal. Watson Macedo entrou para a empresa na função de montador e mesmo passando à direção continuou a receber o seu salário anterior. Nos seus dois últimos filmes “melhorou de vida”, subindo seus ganhos para Cr$ 10.000,00. A sua sobrinha Eliana Macedo, futura integrante do sistema estelar da empresa, entrou recebendo Cr$ 8.000,00 na chanchada E o Mundo se Diverte (1949). Contratada para figurar em dois filmes anuais passou para Cr$ 10.000,00. Para termos uma ideia do pouco que representava o seu salário, Eliana, quando saiu da Atlântida acompanhando o seu tio em 1952, pulou para 100 mil cruzeiros na Watson Macedo Produções Cinematográficas. Adelaide Chiozzo depois de anos de contrato passou a receber Cr$ 25.000,00 quando só o vestido que usava num filme valia Cr$ 35.000,00.

 

O aspecto relativo ao guarda-roupa dos atores é interessante, lembrando as produções entre amigos, onde o próprio artista confecciona sua vestimenta. José Lewgoy no seu primeiro filme, Carnaval no Fogo (1949), quase esteve impedido de contracenar com Oscarito e Grande Otelo por não possuir um smoking exigido no roteiro. Foi salvo pelo de José Sanz. A prática hollywoodiana da exclusividade contratual também foi empregada pela Atlântida: Oscarito e Grande Otelo, para citarmos apenas dois exemplos, eram atores exclusivos. A estratégia revelou-se perversa, pois restringia a participação dos artistas em outros filmes de ganhos superiores ou então na negociação, em melhores bases, pelo ator, conforme a sua ascensão popular. Consequentemente, acontecia aquilo que Renato Murce, relatando a sua experiência radiofônica, comentava sobre a vida profissional do artista: “O rádio, como ninguém ignora, criou uma série interminável de mitos...Entre eles, o de que quem atingisse aquele grau de prestígio junto ao público deveria ser, forçosamente, um artista rico! Puro engano: os artistas, com muito raras exceções, ganhavam ordenados ridículos. A única ou maior vantagem era a divulgação dos seus nomes por esse Brasil afora. Tornava-os conhecidos. Proporcionava-lhes também uma renda extra: atuavam em espetáculos ou faziam pequenas excursões no interior do país durante as férias. Desse expediente tive que me valer: equilibrava as finanças, sempre em caixa muito baixa”.

 

As palavras de Renato Murce são poderosamente amplificadas quando sintonizamos na temporada paulistana de Grande Otelo em 1945. Por dez dias corridíssimos o artista “em pessoa”, como anunciava o programa, apresentou-se no Teatro Colombo e Circo Seyssel, passando depois aos cineteatros de Santo André e São Caetano, voltando à capital para terminar o roteiro nos cines Rialto e Fênix, além do Circo Piolin. No Rio de Janeiro, na temporada teatral de 1947, Oscarito obtinha grande sucesso com a revista “Homem Não!”, que o crítico Accioly Neto de O Cruzeiro afirmava tratar-se de uma crítica à peça “Desejo”, de O´Neill. O teatro de revista era uma fonte importante do trabalho para Oscarito. Quando a ditadura estado-novista impedia a caricaturização política, ou quando cinema não era capital na sua vida profissional, Oscarito passou grandes temporadas em São Paulo encenando, juntamente com Beatriz Costa, espetáculos teatrais. Graças à projeção nacional alcançada pelas suas participações nas chanchadas da Atlântida (um exemplo vivo é Este Mundo é um Pandeiro, de 1947), Oscarito viajava o Brasil com suas revistas satíricas.

 

Por falar em Este Mundo é um Pandeiro, subia o cartaz de Watson Macedo na Atlântida, embalado perlo êxito crescente de suas fitas. A película no Rio permaneceu em cartaz duas semanas além dos sete dias obrigatórios nos cinemas presos à rede exibidora de Severiano Ribeiro. A ultrapassagem da semana obrigatória estava se tornando um atestado de qualidade para os filmes – assim entendia Raimundo de Magalhães Jr. pela Scena Muda. Pedro Lima citava Recife, território de exibição de Severiano, onde o mesmo fato ocorrera, suspendendo-se as projeções somente na entrada da Semana Santa. Quanto à crítica, a coluna de Scena Muda achava a nova fita de Watson Macedo inferior a Segura Esta Mulher, que estava em reprise. De Este Mundo é um Pandeiro salvavam-se um espanhol de Málaga chamado Oscar Lorenzo Jacinto de la Imaculada Concepción Tereza Dias, apelido de Rei Oscarito, mais Marion e os quadros de bailados de revista conduzidos pelo bailarino Yuco Lindenburgh e seu corpo de baile.


O ótimo sucesso das chanchadas da Atlântida encontraram em 1947 o ano da saturação transformadora. Impelidos pela sequencia de boas performances da firma, novos investidores entraram no mercado produtor, aumentando consideravelmente o volume de produtores e produções. A Cinegráfica São Luiz, a Cinelândia Filmes, Tapuia, a Atlântida e a tradicional Brasil Vita Filmes preparavam nove filmes para o ano, dado que levou Pedro Lima à eufórica e angustiosa conclusão que após os êxitos das chanchadas da Atlântida e de O Ébrio, da Cinédia, “todo mundo passou a ser cineasta”.


Mas não foi só de cineastas e produtores que se encheu o cinema brasileiro. 1947 presenciou a entrada do truste exibidor der Luís Severiano Ribeiro Jr. como produtor de filmes, integrando-se ao mercado já dominado por ele nos setores de exibição e distribuição. A estratégia da participação do exibidor na produção tinha a sua lógica. A seção “Cinegráfica” de O Cruzeiro acusava, atrás da anônima assinatura de “Operador”, que Severiano durante a guerra havia comprado cotas da Distribuidora de Filmes Brasileiros (DFB) e da Distribuidora Nacional (DN), que eram duas ou três firmas especializadas na distribuição de filmes brasileiros no eixo Rio-São Paulo. Severiano trazia o cabedal dos territórios de exibição do Rio-Leste-Nordeste-Norte do país, agora acrescido de um laboratório cinematográfico que pretendia ser o melhor do Brasil. O passo seguinte da estratégia do exibidor foi aproveitar-se da exibição corrente no meio cinematográfico, propondo co-produções a quantos projetos houvesse. “Operador” fazia as contas dos lucros do magnata da exibição: entrava com 50% do capital na produção que em parte seria coberto por trabalho de laboratório; terminada, a fita entrava em exibição nos seus cinemas, de onde retirava uma participação de 50% da renda bruta que lhe cabia na qualidade de exibidor. Abocanhava de 20 a 30% da renda do filme como redistribuidor para outros territórios através de sua coligada União Cinematográfica Brasileira (UCE), por último, retirava 50% dos lucros do filme como co-produtor. Conclusão de “Operador”: “É por isso que além do seu laboratório, vem pensando também na criação de um pequeno e moderno estúdio, onde não só poderia realizar os seus filmes, como o alugará aos produtores independentes, que por sua vez lhe entregarão as distribuições, continuando o complicado círculo vicioso do qual saíra sempre o mais beneficiado”.

 



“Operador” destacava as intenções do truste em setembro. No número 9 da seção, datada de 18-10-47, ele nos informou que Severiano Ribeiro invertera a sua rota de construção de estúdios próprios pela compra de cotas da Atlântida, tornando-se seu acionista majoritário. A agitação foi imediata, revelando-se grandes expectativas pela entrada de Severiano, uma vez que ele daria novo dinamismo ao tripé da produção-distribuição-exibição organizados harmonicamente, e que fora o sustentáculo da produção fílmica dos primeiros anos do cinema brasileiro. O fato instigava no Rio especulações sobre o aumento da produção em bases sólidas. “Operador” salientou o desejo de boas intenções por parte de Severiano, pois assim seriam introduzidas “possibilidades de serem criados novos diretores, novos operadores, gente nova para a técnica e para novas equipes, a fim de que o número de produções aumente...”. Para o articulista, se fazia necessário o abandono pela Atlântida da característica de “diversão de família” para se orientar na direção de uma indústria. Era o fim da “burladas” (referência aos irmãos Burle).

 

Mas isso não ocorreu. Os estúdios não continuaram precaríssimos e a divisão de trabalho interna aos filmes seguiu reduzida a um fio de elementos imprescindíveis à continuidade e finalização das películas. Trocando em miúdos, isto significava que Waldemar Noya continuou na função de eterno montador; Amleto Dassé e Edgard Brasil fotografaram uma boa parte dos filmes produzidos e os mesmos diretores revezam-se na direção das fitas. As mudanças na Atlântida aconteceram ou por morte (Edgard Brasil), ou por incompatibilidade com o truste (Fenelon), ou quando Severiano ineptamente não segurou a cornucópia de dinheiro representada por Watson Macedo, que preferiu ganhar pouco mas na sua própria firma. Outro fato negativo foi a queda na produção, instante em que se esperava o inverso, decrescendo o nível de dois filmes por ano – geralmente duas chanchadas.


O pós-guerra anunciara um movimento ascendente do cinema brasileiro. O nosso crescimento não era isolado, refletindo, entre outras razões, um recuo do cinema norte-americano e avanço dos cinemas de outros países, como o mexicano e o argentino. Incendiava-se o meio cinematográfico: “1948 será o ano do cinema brasileiro”, previa Luiz Alípio de Barros pela Scena Muda. Em outro número da revista, Rubem Braga, comentando o balanço de uma produtora publicado no Jornal do Commercio, dizia que, com apenas dois filmes produzidos em 1947, a firma apurara 835 mil cruzeiros de lucro, deduzidos despesas gerais e imposto de renda. Com otimismo, Rubem Braga assinalava que de posse daqueles números não se podia negar que tínhamos uma indústria cinematográfica ao invés de aventuras, de sucessões de golpes. Dentro da efervescência do meio cinematográfico carioca e sentindo no ar os sintomas de uma virada, a crítica pedia a cabeça de muitos diretores, eternos cultores da chanchada. Fred Lee, na mesmíssima Scena Muda, gritava pelo término da aventura (palavra que obteria muito sucesso dali para frente), da improvisação e da cavação. O público deveria vigiar as películas, advertia, abandonando-se o patriotismo do aplauso sem reservas. Ele chegava a sugerir a aplicação no cinema do “Clube da Vaia”, à moda de similar comportamento criado para o teatro por Pascoal Carlos Magno. O que era antes corriqueiro, cotidiano, merecia agora crítica corrosiva. J. Arnaldo soltava os cachorros pela revista carioca: “Filmes são feitos às pressas, pobres de técnica e arte, com o único fim de, sob qualquer rótulo carnavalesco, atrair o público amigo de Momo, que é o único que não pode ser acusado de inimigo do cinema nacional”. Infelizmente, terminava o articulista, jamais o cinema brasileiro melhorou seus celuloides, embora o público correspondesse com boas rendas.


Até São Paulo, saindo da longa ausência, engrossava o cordão de crítica à conjuntura cinematográfica nacional. São Paulo renascia para o cinema pela sua crítica, pelos cineclubes emergentes, onde radicais e elitistas dedicavam-se ao culto do cinema estrangeiro, local em que o belo fremia epidermes ansiosas. O produzido no País era visto de viés ou então, mais frequentemente, negado. Em 1949 os cineclubes desconheciam o cinema brasileiro e B. J. Duarte, em O Estado de S. Paulo, sintetizava o não-reconhecimento à cidadania pela famosa frase “cinema nacional é coisa que não existe”. O alvo principal era a chanchada e seu sistema de produção. Na visão do crítico paulista fazer cinema compreendia outras coisas além de atores à frente de uma câmara. O bom cinema exigia de seus realizadores alfabetização na gramática cinematográfica, no conhecimento dos grandes nomes e peças do cinema mundial, bebendo-se este saber nas filmotecas e nos livros. Faltava cultura para termos um grande cinema, antes do aparelhamento e do capital, e isto estava ao alcance daqueles que passassem pelos Clubes de Cinema e Grupos de Estudos Cinematográficos – escolas de cinema possíveis na época. Dentro destas premissas B. J. Duarte considerava ridícula a nossa cinematografia, indigna de cotejo com a mexicana que em Enamorada e Flor Silvestre tinha dois filmes contemporâneos de classe internacional. As exceções no Brasil foram Limite, Uma Aventura Aos Quarenta e Estrela da Manhã, este último ainda em filmagens mas que, no seu entender, prometia muito.

 

A ácida investida da crítica paulista contra a produção de chanchadas mostrava mais desejos ocultos do que uma compreensão exata do fenômeno carioca. São Paulo crescia avassaladoramente desde a Segunda Guerra Mundial, dando margem à invenção do slogan “a cidade que mais cresce no mundo”. A sua burguesia estava ávida de compensações culturais que a salvassem da aridez provinciana. Escola de Arte e Museus de Arte Moderna, o Teatro Brasileiro de Comédia etc. proviam Fifi, Olívia e Mimi – celebradas figuras da reportagem de Joel Silveira, “Grã-Finos em São Paulo”. E o cinema? Bem, para São Paulo o cinema era o Rio e o Rio em termos de cinema...

 

A agitação do cinema carioca no ano de 49 obteve um balanço extremamente positivo por parte de Alex Viany nas páginas de Scena Muda. Ele realçava o número de produções (18), a qualidade técnica (conseguia-se entender quase 90% do som das fitas), bem como a revelação de valores (Ruth de Souza, Orlando Villar, Maria Della Costa, Maria Fernanda, Anselmo Duarte). A produção diversifica-se, preenchendo os novos diretores a lacuna deixada pela saída dos filmes “sérios” da Atlântida. Para São Paulo, que naquele ano de 1949 produziu duas fitas – Luar do Sertão de Tito Batini e Mário Civelli e Quase no Céu de Oduvaldo Vianna -, o cinema brasileiro permanecia em decadência devido exclusivamente ao cinema carioca, crucificando-se, independentemente  de valores próprios, todos os filmes sob o estigma da chanchada. O que São Paulo compreendia como chanchada está no livro Burguesia e Cinema, de Maria Rita Galvão: “Á sensibilidade burguesa, no entanto, repugnava na chanchada aquilo que ela tinha de mais aparente: a produção rápida e descuidada, alguns cômicos careteiros, o humor chulo, a improvisação, a pobreza de cenografia e indumentária, todas as decorrências do baixo orçamento. O que repelia, fundamentalmente, era a chanchada enquanto tipo de espetáculo, exatamente como o teatro ligeiro da época, e muito parecida com ele. Sobretudo como tipo de espetáculo, porque é pouco provável que as pessoas tivessem alguma noção do que representava a chanchada em termos de produção”. Dito isto, entende-se o afã da burguesia paulistana em tirar o cinema brasileiro do abismo em que se encontrava. E para tal criou-se a Companhia Cinematográfica Vera Cruz, na tarde de 3 de novembro de 1949.

 

A Vera Cruz veio para dividir. O que aconteceu antes e o que aconteceria depois da data de sua fundação estavam totalmente dissociados como se, justamente naquele dia, regado pelo brindes e aplausos da burguesia frequentadora do Museu de Arte Moderna, nascesse o cinema brasileiro.

 

Na esteira da Vera Cruz vieram outras grandes produtoras com0o a Maristela e a Multifilmes, e mais 40 ou 50 pequenas produtoras independentes, alcunhadas por Benedito Junqueira Duarte pelas páginas de Anhembi de “cogumelos de uma só manhã”. Do Rio vieram tentar a sorte na canãa cinematográfica paulista. O êxodo contou com Alex Viany, Anselmo Duarte, José Carlos Burle, técnicos os mais diversos, e só não importamos Oscarito pelo seu desagrado com o contato oferecido pela Vera Cruz.

 

O boom cinematográfico transformou-se num cadinho de ideias sumamente entrelaçadas à história do período: Getúlio volta ao Catete nos braços do povo, portando na bagagem uma política nacionalista que provocaria atritos com a burguesia e os militares; as esquerdas, encabeçadas pelo Partido Comunista Brasileiro, desfraldavam diversas bandeiras de luta; o golpismo dos partidos conservadores rondava o espectro político. O cinema contaminou-se das lutas do tempo. Um grande números de intelectuais de extração esquerdista, da qualidade de Alex Viany, Carlos Ortiz, Salvyano Cavalcanti de Paiva, José Ortiz Monteiro, Mauro de Alencar e Artur Neves, entre outros, fizeram do cinema um campo de combate (onde demonstravam bom aguerrimento) e de experiências teóricas ou fílmicas, construídas na maioria das vezes com menos garra e inspiração. Ao lado do brilho técnico das produções da Vera Cruz e sucedâneos, formulou-se um corpo de ideias dedicadas à crítica destas realizações que escamoteavam, segundo as esquerdas, as condições do homem brasileiro. Ultrapassando a palavra publicada e falada, eles investiram na produção de seus filmes, vindo às telas, então Agulha no Palheiro (1953), Rua Sem Sol (1954), O Saci (1953) e Rio, 40 Graus (1955).

 

Diante do quadro transformador em que vivia o cinema brasileiro entrechocavam-se, no interior do campo cinematográfico, novas tendências voltadas ou para o cosmopolitismo ou para o nacionalismo. Do debate a Scena Muda extraía alento para a demolição da chanchada, reconhecendo todavia a inutilidade de seus esforços. Aí Vem o Barão (1951), de Watson Macedo, tinha o seu comentário na revista finalizado com as seguintes palavras: “Não recomendamos a ninguém, mas temos certeza que os fãs de Oscarito e do cinema brasileiro irão de qualquer maneira”. Salvyano Cavalcanti de Paiva em estudo sobre a comédia internacional e a brasileira destinava à primeira o reinado dos astros cômicos e, à segunda, o deserto. No Brasil não havia “um comediante que constituísse, com dignidade, um tipo, uma figura de arrebatar, pela atuação imediata e pelo que de universalismo contivesse, às plateias populares e à elite intelectual capaz de nele reconhecer o representante de uma classe, de uma casta, de uma nação”. Á sugestão do nome de Oscarito, Salvyano recusa, pois ele não seria jamais “esse tipo, esse elemento que representasse nacionalmente uma forma e universalmente na essência, o que correspondente de Carlitos”. No Brasil comédia significava o pior tipo delas, qual seja, a chanchada: “É o disparate vulgar combinado a um pouco de sexo e de frases de duplo sentido. Influência do baixo teatro, da burleta e do radiologismo mais ruim. Que do rádio e do teatro é que têm vindo os nossos cômicos...”. A alta comédia praticada no exterior inexistia no Brasil: “Os realizadores, incapazes, alegam dar ao público o que o público quer. E a cômicos de certas possibilidades entregam papéis ultrajantes, velhacos, que não oferecem a mínima oportunidade para a mostra de suas qualidades histriônicas, pelo contrário, filmes sem roteiro obrigavam o cômico a improvisar uma gracinha, balbuciar uma ‘pilhéria pornográfica’ ou a aproveitar a gíria do momento”.

 

A companha da revista a Scena Muda continuou a cada filme trazido à tela pela Atlântida. Em 1953 pedia que Watson Macedo abandonasse os hotéis Copacabana e Quitandinha e estruturasse, em contrapartida, enredos levados no meio da rua. Carnaval Atlântida, de Burle, era aquinhoado com comentário de Lívio Dantas que, sem meias palavras, dizia: “Positivamente, a Atlântida virou um clube de carnaval com muita bagunça, muita pândega e não poucos desvarios (...) Quiseram os responsáveis por aqueles estúdios fazer um filme musical depois de um incêndio que devorou suas instalações. Ora, muito bem! Foi feito o filme musical, não há a menor dúvida. Mas, à custa de quê? A custa de chavões, de decalques em filmes estrangeiros, de situações cômicas mais velhas que a Sé de Braga. Á custa da fama de rumbera de Maria Antonieta Pons, à custa dos trejeitos repetidos por Oscarito e, sobretudo à custa de todos nós que sempre temos demasiada boa vontade para com os filmes nacionais, apoiando-os irrestritamente, mas sempre decepcionados cada vez que os projetores começam a exibir a prata da casa...”.

 

Conquanto a crítica fosse implacável, a Atlântida respondeu-lhe com um filme que, embora negativamente recebido, passou à história do cinema brasileiro como um filme político por excelência: Nem Sansão Nem Dalila (1954). A direção era de Carlos Manga, estreante da safra de 1953 (Dupla do Barulho), escolado na direção amadorística de shows. Conduzido à Atlântida por Cyll Farney, começou ganhando seis vezes menos do que ganhava fora do cinema, o que não o desanimou; outra decepção foi não encontrar Hollywood na Atlântida. Manga declararia mais tarde que sua geração estava toda impregnada de americanismos, tanto que ele era presidente do fã-clube de Frank Sinatra no Brasil. Curtido no cinema americano faria, à semelhança de seu modelo Watson Macedo, transposições literais de filmes de Hollywood. Nem Sansão Nem Dalila parodiava Sansão e Dalila, de Cecil B. de Mille; Matar ou Correr fazia sombra a Matar ou Correr (High Noon), de Fred Zinnemann. O Homem do Sputnik satirizava a guerra fria entre russos e americanos, e por aí afora.

 

Nem Sansão Nem Dalila, segundo Scena Muda, contava as peripécias de Oscarito (Horácio no filme), engraxate de barbearia, que ia parar em Gaza. Conseguida a infalível peruca de Sansão, Oscarito promovia eleições “livres e honestas” no reino, tornando-se um governador de “poderes ditatoriais” que distribuía cargos letra “O” a todos os seus companheiros e amigos, numa alusão ao empreguismo varguista glosada na letra de sucesso do carnaval de 1952, gravação de Blackout, “Maria Candelária”. Lançada em 20 cinemas, não motivou o semanário carioca a uma crítica melhor. O comentário de pré-estreia estranhava a apropriação de assuntos exóticos pela fita, como os temas bíblicos ou os filmes fantásticos. De resto, Oscarito carregava a glória, porém desarticulado do conjunto, aparecendo bem apenas em momentos isolados. A revisão do filme feita por Jean-Claude Bernardet mostrou, entretanto, uma leitura totalmente diversa da produzida por Scena Muda. Bernardet considera o filme de Manga um dos “melhores filmes políticos brasileiros”. Segundo o crítico, seu roteiro tratava de um sonho de Oscarito que conseguia a peruca de Sansão, trocando-a por um isqueiro e transmutando-se num homem fortíssimo. Em Gaza o rei recebia o aviso dos deuses de que o reino seria destruído por um homem forte e, à chegada de Oscarito, o rei pede que ele não destrua Gaza. Oscarito acede mas impõe uma condição, qual seja, a de ser governador do reino. O rei tem um assessor militar que se agasta com o fato, inclusive com as medidas populistas tomadas por Oscarito. Após a posse, atentados contra Oscarito falham, até que Dalila descobre a fonte de sua força. O assessor militar consegue apoderar-se da peruca, expulsa Oscarito e usurpa o poder real. Oscarito consegue reaver a peruca, desenrolando-se os sucessos finais de destruição do templo e fim do sonho. Jean-Claude conclui, então, que na fita ficava clara a sucessão de golpes, sendo o primeiro populista, momento em que Oscarito sobe ao poder e toma atitudes “consideradas de interesse do povo, só que o povo não toma parte dessa tomada de medidas”. Mantida a mesma estrutura de poder Oscarito, posteriormente, será destruído por meio de um golpe de estado promovido pelo assessor militar, “insatisfeito com a concessão feita pelo rei ao populismo”. Desse modo, tem-se um golpe de estado populista e um contragolpe de tipo militar. Até parece que Manga percebeu o que aconteceria em 1964.

 


Nem Sansão Nem Dalila pode ser considerado como o limite extremo da evolução da chanchada. Depois de anos absorvendo os mais diversos elementos extraídos do circo, do carnaval, do rádio e do cinema estrangeiro, do mood carioca e da ginga, a chanchada começou a sofrer o combate de um novo meio de comunicação: a televisão. Dos anos 30 aos anos 50 o cinema expandiu-se continuamente. Implantada no Brasil em 1950, a televisão terminou a década com quase 600.000 aparelhos instalados, tendência sempre crescente e determinante na queda da frequência de espectadores aos cinemas. Afinal, para que assistir a chanchadas em cinema quando se poderia desfrutá-las confortavelmente em casa? Mas outros fatores aliavam-se à televisão para mudar o cinema brasileiro. A Vera Cruz institui um tipo de produção refinada, adversa do “feito ás pressas” da chanchada e que abria as portas do cinema internacional ao brasileiro. A reação nacionalista ia rapidamente se espalhando, de início contrária ao governo Dutra e depois ao de Juscelino, pois ambos desenvolveram uma política de abertura ao capital internacional – o interregno varguista do “Petróleo é Nosso” reforça a vaga nacionalista. Rio, 40 Graus e Rio, Zona Norte anunciavam os temas da alienação e da conscientização que frutificaram com o Cinema Novo. Correndo contra o relógio, Juscelino queria remodelar o Brasil com a frase “50 anos em 5”: Elvis Presley, o DKW, Brasília, Niemeyer, O Repórter Esso, a Revolução Cubana, Nikita Kruschev e John Kennedy diziam adeus à chanchada e não pediam passagem para ocupar o lugar. O Brasil entrava na década da “Revolução” e a chanchada saía das telas para entrar na história.

 

Publicado originalmente em CATANI, Afrânio Mendes; SOUZA, José Inácio Melo. A chanchada no cinema brasileiro. São Paulo: Brasiliense, 1983. (Col. Tudo é História, número 76).

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