Bastidores do rádio, parte III de VII: O Rádio na década de 1930
Por Renato Murce
Seleção e transcrição:
Matheus Trunk
O rádio tem suas raízes históricas no século XIX. Depois de várias tentativas científicas, o alemão Henrique Hertz provou, em 1888, a existência de ondas capazes de transmitir sons a distância. Posteriormente o nome desse sábio foi dado a essas ondas: são as ondas hertzianas, o telégrafo e o rádio são as grandes expressões práticas dessa histórica demonstração científica de Hertz.
O telégrafo veio muito
antes do rádio, que só daria seus primeiros vagidos aí por volta de 1920-22.
Engatinhando alguns anos, conforme já contamos, até chegar a 1930, aí passou a
ser “coqueluche” em todo o mundo. Em 1930 já tínhamos conhecimento de tudo o
que se passava no mundo todo. Foi um ano marcado por acontecimentos de alto
relevo que atingiram dimensões extraordinárias, sobretudo pela ação do rádio.
O movimento político,
com as campanhas eleitorais em que lutavam Júlio Prestes, candidato governista,
e Getúlio Vargas, chamado o candidato do povo, agitava o país sem as limitações
da censura e bem ao sabor do povo brasileiro. Uma boataria incrível se
espalhava em torno do momento em que vivíamos. A luta se prenunciava árdua e
violenta, havendo mesmo os que previam uma guerra civil. Apesar de Getúlio
reunir mais simpatia e mais adeptos, Júlio Prestes – homem íntegro -, que
fizera ótima administração em São Paulo, apoiado por Washington Luís, era um
presidente simpático e tolerante, apesar da fama de teimoso (o que o levou a
querer impor o seu candidato). Na sua deposição, pela revolução de 3 de outubro,
não saiu malquisto nem humilhado pelos vencedores: prestaram relevantes
serviços a nossa terra, principalmente com seu slogan: “Governar é abrir
estradas”. A revolução estava mesmo para explodir a qualquer momento desde os
governos de Epitácio e Bernardes, que, em momento algum afinaram com os
reclamos e os anseios do povo. Já vinha ele ganhando corpo desde a revolta dos
cadetes e dos 18 heróis do Forte de Copacabana.
Os jornais faziam campanhas bombásticas e provocadoras; o rádio imitava-se a
noticiar e comentar moderadamente os acontecimentos. Como toda gente sabe, este
nunca teve a liberdade de ação dos jornais (submetido, como sempre foi, ao
âmbito governamental). Mas, de certo modo, esse era um dos “pratos do dia” do
broadcasting em 1930.
A
Noite, promovendo no Brasil o concurso para Miss Brasil e
Miss Universo. Sagrou-se vencedora uma gaúcha linda, da cidade de Pelotas,
Yolanda Pereira. Hoje, quase 50 anos depois, é ainda uma senhora bonita e de
muito charme. No entanto, na fase para eleição de Miss Brasil, as opiniões se
dividiram entre a vencedora e a senhorita Didi Caillet, Miss Paraná. Era uma
moça com todos os atributos para vencer, além de uma invulgar cultura e um do
acentuado para as artes: canto, declamação, etc. Mas não se pode dizer que
tenha sido injusto o resultado. Yolanda Pereira era, como se dizia, de “fechar
o comércio”.
Não havia desfile de
maiô (que hoje é imprescindível). A controvérsia voltou quando da escola de
Miss Universo. Yolanda encontrou sérias rivais nas candidatas da França e de
Portugal (esta principalmente), que eram belíssimas. O cetro ficou em boas
mãos. O Brasil “lavrou um tento”, apesar de alguns pálidos protestos.
Ainda em 1930, outro concurso mexeu com a opinião púbica, interessando as
rádios e os jornais: o Diário Carioca
quis eleger a Rainha da Canção Brasileira e o Príncipe dos Cantores Regionais
do Brasil. No naipe feminino seria uma “barbada” para Carmen Miranda (embora
ela não fosse propriamente uma intérprete de canções). Isso, se ela não se
desentendesse com os organizadores do concurso e retirasse seu nome do mesmo.
Proporcionou a Jesy Barbosa (uma excelente cantora, por sinal) sagrar-se
vencedora. Do lado masculino, concorrendo Francisco Alves, Gastão Formenti,
Sílvio Caldas, Breno Ferreira, Antônio Fernandes, Georges Fernandes e outros, o
vencedor, para surpresa geral, fui eu, Renato Murce. Surpresa porque os
disputantes eram quase todos mais credenciados que o rabiscador dessas linhas.
Aconteceu que o concurso, como se fazia com quase todos, era para vender
jornal. Os votos eram comprados nas bancas de jornais, e os meus cabos
eleitorais eram de uma eficiência impressionante. A ponto de irem, em plena
madrugada, comprar nas bancas os encalhes do Diário Carioca e retirarem os respectivos cupões para a votação.
O detalhe principal que
me outorgou a vitória foi o seguinte: o concorrente, para se sagrar vencedor,
precisava destacar-se em duas fases do certame, na contagem dos votos e na
consagração popular, num grande espetáculo a ser realizado no Teatro Lírico. E
foi aí que eu venci. Não pelos meus dotes vocais, mas pelo magnífico repertório
que formara com números regionais, números cômicos, paródias, etc. Muitos eram
de Augusto Calheiros, Minoma Carneiro, e outros. Basta dizer que fui chamado ao
palco para cantar oito vezes. Depois de mim, quem cantou mais foi Gastão
Formenti, e somente por três vezes.
Houve, ainda, um
detalhe bastante curioso: Gastão Formenti cantou a música mais em voga na época
(e que considero antológica em nosso cancioneiro): “Casa de Caboclo”, de Luís
Peixoto e Hekel Tavares. Foi aplauididíssimo, como sempre. Logo a seguir, vim
ao palco e cantei uma paródia da mesma “Casa de Caboclo”, feita pelo próprio
Luís Peixoto (homem inteligentíssimo) para o artista Mesquitinha apresentar numa
revista do Teatro Recreio. Foi a consagração! O teatro “veio abaixo”. Fiquei
sendo o vencedor das duas etapas do concurso (esse título muito me honra, mas
não o uso e nunca usei porque ficaria encabulado, sabendo das minhas
limitações). Muita coisa mais, evidentemente, aconteceu naquele ano. Essas
foram as que mais ficaram gravadas em minha mente.
Passaremos agora a falar na década de 1930. Na minha opinião, foi a “era de
ouro” da música popular brasileira. Principalmente no gênero carnavalesco. Foi
também a época mais prenhe de acontecimento político no Brasil e no mundo:
manos em que Hitler, Mussolini e outros “bandidos” preparavam a maior hetacombe
que o mundo viria a conhecer, a grande guerra, com grande repercussão no
Brasil, onde Getúlio e sua grei pontificavam.
Os últimos anos da
década de 1920 já haviam assinalado alguns êxitos carnavalescos, tais como “Ora
Vejam Só” de J.B. Silva (o Sinhô) em 1927; “Gosto que me enrosco”, também do
Sinhô; “Pinião” de Luperce Miranda e Calheiros; “Dorinha meu Amor”, de José
Francisco de Freitas; “Samba de Negro” e “Já te Digo”, de Pixinguinha. A
explosão carnavalesca viria mesmo, como já dissemos, em 1930, estourando logo
com a batucada de Almirante e Candoca da Anunciação, “Na Pavuna” e “Pra Você
Gostar de Mim” (Taí) de Joubert de Carvalho. Foi o primeiro grande cartaz e
carro-chefe de Carmen Miranda. Em 1931, Ismael Silva, Nílton Bastos e Francisco
Alves (este, naturalmente como “sócio”) apareceram com “Se Você Jurar”. Chico
Viola começou cantando sozinho e depois em dupla com Mário Reis; 1932 foi
fértil em músicas de sucesso: “Com que Roupa”, de Noel Rosa (esse samba “pegou”
em 32, mas Noel o compôs em 1930); tive pequena colaboração numa parte da
letra, e ele a cantou pela primeira vez em Belo Horizonte, em benefício dos 18
do Forte); “A-E-I-O-U”, de Noel e Lamartine Babo.
O maior êxito de todos os tempos foi a célebre marcha “O Teu Cabelo não Nega”,
(a mais cantada até hoje em todos os carnavais). O conhecido compositor a fez
com o estribilho de outra música dos pernambucanos irmãos Valença, intitulada
“Mulata”, compondo música e letra dos demais versos. Os autores de “mulata”
estrilaram: moveram ação contra o editor da música Mangione, e por fim
entrariam num acordo que resultou benéfico para todos, inclusive para o
público.
Lamartine Babo e Noel
Rosa viriam a ser os verdadeiros campeões de músicas daquele período. Além das
citadas, ainda lançaram: “Até Amanhã”, Noel; 1933; “Linda Morena”, Lamartine,
1933; “O Orvalho Vem Caindo”, Noel e Kid Pepe, 1934; “História do Brasil”,
Lamartine, 1934; “Grau Dez”, Lamartine e Ary Barroso, 1935; “Pierrô
Apaixonado”, Noel Rosa e Heitor dos Prazeres, 1936; e “Hino do Carnaval”,
Lamartine Babo, 1939.
Não se pode deixar de
citar a inspiração e a fertilidade dos nossos grandes compositores que nos
deram: “Agora é Cinza” (Alcebíades Barcelos e A. Marçal); “Linda Lourinha”, de
1934 (João de Barro); “Eva Querida”, de 1935 (Benedito Lacerda); “Implorar”, de
1935 (Germano Augusto e Kid Pepe; “Cidade Maravilhosa”, de 1935 (André Filho);
“Mamãe Eu Quero”, de 1937, sucesso que se mantém até hoje, não só no Brasil
como no exterior, surpreendendo os próprios autores Vicente Paiva e Jararaca; “Acorda,
Escola de Samba”, de 1937 (Benedito Lacerda e Herivelto Martins);
“Lig-Lig-Lig-Lé”, de 1937 (Paulo Barbosa e Oswaldo Santiago); “Abre a Janela”,
de 1938 (Arlindo Marques Júnior e Roberto Roberti); “Não Tenho Lágrimas”, de
1938 (Max Bulhões e Milton de Oliveira); “Camisa Listrada”, de 1938 (Assis
Valente). “Touradas em Madrid”, de 1938 (João de Barro e Alberto Ribeiro);
“Periquitinho Verde”, de 1938 (Nássara e Sá Rorís); “Pastorinhas”, de 1939
(João de Barro e Noel Rosa); “Yes, Nós Temos Bananas”, de 1939 (João de Barro e
Alberto Ribeiro); “Jardineira”, de 1939 (Benedito Lacerda e Humberto Porto).
“Meu Consolo é Você”, de 1939 (Nássara e Roberto Martins).
É claro que não vamos
detalhar todas as músicas até os dias de hoje, que foram milhares, não poucas
de real mérito. Revelaram outros grandes autores, como Ataulfo Alves, Mário
Lago, Haroldo Lobo, Frazão, Pedro Caetano, Fernando Lobo, Antônio Maria,
Paquito, Luís Soberano, Romeu Gentil, Klécius Caldas e Armando Cavalcanti, Zé
Zuzuca, e muito mais.
Também uma imensidade
de pseudocompositores tentaram nos impingir uma enxurrada de “bagulhos”. Os famosos
disk-jockeys procuravam divulgar noite e dia através do rádio, de tal maneira
que o público passou a cantar mais as músicas antigas do que as modernas, mesmo
quando estas tinham alguns méritos.
O que quisermos
demonstrar foi o equilíbrio e a homogeneidade musical da década de 1930. Com a
ajuda do rádio, evidentemente, tornou-se um símbolo do que é bom em matéria de
música popular brasileira.
Outras ocorrências de
relevo de 1930 a 1940, em que o rádio foi fator preponderante na sua
divulgação, foram as mais diversificadas possíveis. Não é fácil recompô-las de
memória. Que Clio, uma das filhas de Mnemósine e Júpiter, musas da História, me
auxilie.
Em 1931, surgiu na
Rádio Sociedade o primeiro programa. Ou, antes, o primeiro arremedo de
humorismo no rádio: era uma pequena audição, de cerca de cinco minutos,
patrocinada por uma pasta dentifrícia. Era interpretada por dois atores cômicos
do teatro da época: Artur de Oliveira e Salu de Carvalho. Denominava-se
“Manezinho e Quintanilha”. Os artistas batiam um papo, de cerca de três
minutos, em torno de velhas anedotas, trazidas do palco ou dos almanaques de
propaganda medicinal. O tempo restante era preenchido pela publicidade e pelo
pioneirismo.
Como consequência, organizei, de parceria com Raul Bruce (Gramury), cronista de
teatro e de turfe, um programa variado de meia hora de duração: tinha música,
esquetes, poesia, piadas, sátiras, alcançado ótima receptividade; denominava-se
“Rádio Miscelânea”. Depois de um ano no ar, deixei o programa sob a responsabilidade
exclusiva do Gramury e organizei outro na Rádio Philips. Chamava-se “Horas de
Outro Mundo”. Marcou época e alcançou êxito mais do que surpreendente. Tanto
que o projeto era ser irradiado durante uma hora, às quartas-feiras; precisei
ampliá-lo para três vezes por semana no mesmo horário (das 21 ás 22 horas).
Nessa época, surgia o
famoso e magnífico “Programa Casé”, melhor do que o meu, e do qual falarei mais
tarde.
O programa “Horas de Outro Mundo”, foi assim batizado porque imaginei as
irradiações supostamente feitas do planeta Saturno para todo o Universo.
Transmitíamos, assim, nossos esquetes, nossas piadas, nossas canções e uma
publicidade muito mais eficiente.
Parece que estávamos a
prever os dias de hoje quando já não nos encontramos muito distantes de
realizar aquelas fantasias, ou outras mais surpreendentes ainda. Além do
programa “Horas do Outro Mundo”, do “Programa Casé” e do “Esplêndido Programa”,
de Waldo Abreu, apareceram outros idênticos, de menor importância e de duração
efêmera. Havia falta de recursos e patrocinadores, apesar da honestidade de
propósitos e do esforços dos seus organizadores.
Não foi só de flores e
vitórias esse período do rádio. Persistiam ainda muitas dificuldades,
remanescentes do período heroico dos primeiros anos da nossa radiofonia, e das
quais as gerações de hoje sabem mais ou menos por ouvir dizer. Nós, que as
vivemos e sentimos, podemos avalia-las.
Outro trabalho que
enfrentamos foi o de expurgar ou pelo menos conter o grande número de maus
elementos. Tentavam, por todos os meios e modos, infiltrar-se nos meios
radiofônicos, sob qualquer pretexto, para usufruir vantagens de fácil alcance.
Constantemente apareciam com sambas, marchas e canções, querendo de todo jeito
impingir suas “magistrais” composições. A ingenuidade de alguns diretores de
estações permitia que seus microfones fossem ocupados por gente sem a menor
qualificação para o ofício. Servia apenas para deseducar ouvintes (o livro de
Nestor de Holanda, Anedotas do Rádio
relata uma série de asneiras, que parecem piadas, mas que representam a mais
pura expressão da verdade). Corretores desonestos faziam a permuta da
publicidade de programas alheios por móveis e utensílios domésticos para
arrumarem suas próprias casas. Esse expediente afugentou muitos anunciantes dos
nossos programas e quando queríamos obter suas verbas tínhamos que ir
pessoalmente (eu, o Casé e outros) procura-las.
Voltemos a 1932, quando
o rádio teve maior evidência devido à revolução constitucionalista de São
Paulo. Fui um ato heroico do povo paulistano. Deu muita dor de cabeça ao
governo federal. A revolução de 30 vinha (dizia-se_ animada dos melhores
propósitos. Prometendo “tudo isso e o céu também” ao povo brasileiro. Entre as
promessas, estava a da nova constituição do país. No entanto, nada se fazia. A
alta cúpula governamental, assim como o chamado “segundo escalão”, estavam
muito satisfeitos e o lema de Getúlio, dizia-se, era: “Vamos deixar como está
para ver como fica”.
São Paulo cansou de
esperar e, sem “aviso prévio”, levantou-se em armas contra o governo central.
Foram dias de angústia e de grande expectativa. O rádio da capital do país e
dos outros estados foram “arrolhados” pela censura. Não se podia dizer coisa
alguma que não fosse favorável às chamadas “hostes legalistas” (nem tão
legalistas como se julgavam...). Só podíamos ouvir em aparelhos de ondas
curtas, altas horas da noite, uma voz paulistana que narrava a realidade dos
fatos. Era um prazer ouvir aquela voz. Não só pelo que transmitia, como, e
principalmente, por se tratar de uma voz de timbre privilegiado, como não se
ouvira antes. Era a voz de um jovem jornalista. Ocupava o microfone da rede
paulista de comunicações quase que durante a noite inteira. E nos punha a par
do que, de fato, vinha acontecendo. Era a voz de César Ladeira, até hoje
considerado como o melhor locutor do Brasil em todos os tempos.
Terminou a revolução
paulista, com a melancólica derrota dos denodados bandeirantes; César Ladeira
veio para o Rio. Foi imediatamente contratado, com exclusividade, pela Rádio
Mayrink Veiga. Em pouco tempo tornava-se a “coqueluche” da cidade.
A parte semifinal deste
livro vou dedica-la a traçar minibiografias. Dentre as dos maiores do rádio, já
desaparecidos, a de César Ladeira será das mais comoventes, ao lado das de Paulo
Roberto, Vítor Costa, Ary Barroso, Celso Guimarães, Oduvaldo Viana, Nestor de
Holanda, Ismênia dos Santos, Orestes Barbosa, Heron Domingues e alguns mais.
Escrevi que a revolução terminou com a melancólica derrota dos paulistas. A
verdade é que essa derrota teve um lado altamente benéfico. Despertou a
consciência do governo para um estado de espírito latente em todos os
brasileiros. Tratou-se logo de promover a instalação do Congresso; fez-se uma
constituição, promulgada em 1934, e que elegeu o próprio Getúlio Vargas
presidente do Brasil.
Isso fez o país
retornar aparentemente a um regime de legalidade.
De 1932 a 1934 temos
algo a contar. Nesse período foram lançados ao microfone, pela primeira vez no
Rio, inúmeros grandes cantores. Alguns até hoje nos deliciam com sua arte.
Só no programa “Horas de Outro Mundo” surgiram Aracy de Almeida, Manezinho
Araújo, Joel e Gaúcho, Olinda Leite de Castro, Ecila Jopert, Zezé Macedo (como
cantora depois viria a ser uma grande rádio-atriz), Sílvio Vieira, Luís Barbosa
(o inventor do breque com o chapéu de palha), Hervê Cordovil, Olga Nobre
(também depois grande rádio-atriz), Zaira de Oliveira Santos (esposa do Donga),
Ogarita Dell´Amico, Alda Verona, Dario Murce. Ainda noutras modalidades
artísticas: Ary Barroso, Amélia de Oliveira, Ismênia dos Santos, Salu de
Carvalho, Barbosa Júnior, Antenógenes Silva, Léa Silva, Alma Flora, Luís
Americano, Francisco Duarte e o famoso Maetro Chiquinho.
O “Programa Casé”
lançava artistas que se tornariam famosos como Marília Batista e outros cujos
nomes já não me ocorrem. Além dos arregimentar, com ótimos contratos de
exclusividade, alguns dos grandes nomes já em voga: Francisco Alves, Almirante,
Carmen Miranda, Noel Rosa, Aurora Miranda. Foi Ademar Casé (um dínamo em forma
de gente) quem primeiro valorizou o artista brasileiro: pagava bons cachês e
conseguia, com isso, enorme audiência e um interesse desusado dos anunciantes.
Felizmente nossas irradiações eram em dias e horários diferentes. Não me
prejudicava quando à audiência das “Horas do Outro Mundo”. Só precisei
modificar o teto dos cachês, para evitar a debandada da minha turma.
Nessa época já muitos
outros grandes nomes pontificavam no rádio, entre eles, além dos já citados:
Pixinguinha, Calheiros, Sílvio Caldas, Elisinha Coelho, Jesy Barbosa, Helena
Fernandes, George Fernandes, Gastão Formenti, Albenzio Perroni, Vicente
Celestino, Patrício Teixeira, Rogério Guimarães, Irmãos Tapajós, João Petra de
Barros, Aurora Miranda, Jaime Brito, e outros.
No decorrer destas
páginas o leitor encontrará a citação daqueles que vieram mais tarde enriquecer
a legião artística brasileira. Na época, a maioria dos que despontavam estava
na Rádio Mayrink Veiga. César Ladeira se destacava como locutor e diretor
artístico. César notabilizou-se. Além da voz formidável que possuía, também
pelas denominações curiosas que dava aos artistas que apresentava: Carmen
Miranda, a “Garota Notável”; Carlos Galhardo, o “Cantor que Dispensa
Adjetivos”; Francisco Alves, o “Rei da Voz”; Sílvio Caldas, o “Seresteiro
Incorrigível”; João Petra de Barros, “A Voz de 18 Quilates”, e alguns mais.
Um fato inusitado
aconteceu com o rabiscador destas linhas. Viria a ser, mais tarde, cognominado
“Ziegfield” brasileiro: lance grandes números de artistas no programa “Papel
Carbono” (estava no ar durante 28 anos). Pois bem, vetei no programa “Horas do
Outro Mundo” os nomes de, imaginem: Orlando Silva e Carlos Galhardo! Mas, como?
– perguntarão. Muito simples: eles foram cantar no meu programa, recomendados
por pessoas amigas; não tive tempo de ensaia-los porque chegaram em cima da
hora. E a apresentação foi um desastre! Tremiam como varas verdes. Desafinaram
o tempo todo. E um deles, creio que o Galhardo, chegou a esquecer a letra.
Fiquei com muita pena, tanto mais que se tratava de gente muito humilde e bem
educada. Mas humildade e educação, infelizmente, não dão ritmo nem afinação a
ninguém. Felizmente, o tempo se encarregou de mostrar, não que eu estivesse
errado, mas que eles realmente não foram felizes naquele dia. Depois de se
encontraram com suas reais qualidades artísticas. E são, até hoje, dois dos
mais consagrados cantores que o Brasil já teve a ventura de ouvir.
Em 1933, dois grandes
acontecimentos esportivos marcaram época para os aficionados do automobilismo e
do turfe. Foram corridos no mesmo dia, 3 de agosto, dois primeiros grandes
prêmios “Brasil”: o de automobilismo, no circuito da Gávea (por sinal, um dos
mais perigosos do mundo: grande parte da pista nem asfaltada era); e a do turfe
era como que uma festa comemorativa da unificação das duas grandes sociedades
cariocas: o Jóquei Clube Fluminense e o Derby Clube, que se transformaram no
Jóquei Clube Brasileiro.
No automóvel, venceu
Manoel de Teffé. Era o corredor mais experimentado e possuía a melhor máquina,
uma Alfa-Romeu, com larga experiência adquirida com certames de que já
participara na Europa. No Jóquei foi vencedor um bonito tordilho pernambucano,
Mossoró, criação do Haras Maranguape, dos irmãos Lundgreen. Montou o vencedor o
jóquei brasileiro Justiniano Mesquita. Eu, na época, era entusiasta dos dois
esportes. Pude assistir aos dois feitos: fizeram todo o Rio esportivo vibrar
intensamente. Tanto numa prova como noutra, havia concorrentes estrangeiros. Na
bolsa das apostas antecipavam-se como prováveis vencedores. Para o rádio, como
é fácil calcular, foi um “dia cheio”. Houve até o caso do locutor de um
programa da Rádio Educadora, o Antunes, que era conhecido como Pinochio, pelo
seu enorme nariz: ao comentar os fatos, no auge do entusiasmo, mandou um abraço
e um beijo para o Mossoró...
Em 1933 comemorou-se no
Brasil (com um programa de 12 horas), no dia 20 de setembro, o aniversário das
“Horas do Outro Mundo” (aliás, o primeiro aniversário de programas do gênero).
Sobre o fato, não posso deixar de transcrever o que Paulo Roberto (ainda não
era do rádio, mas jornalista) escreveu em sua coluna de A Pátria, de 21 de setembro daquele ano, denominada “Microfone”:
“Solidariedade”
“Horas do Outro Mundo”
faz anos ontem. (Língua levada do diabo essa nossa! “Horas do outro mundo” como
toda gente sabe, não são horas, é um programa). Renato Murce foi abraçado pelo
rádio, pelo telégrafo e pelo telefone, por todos os que gostam dele. Ontem é
que eu fui ver que os admiradores de Renato Murce são uma verdadeira legião de
entusiastas! Nada mais justo. Renato é um cavalheiro que sabe vencer sorrindo.
Achei interessante e quero registrar nesta crônica o movimento de solidariedade
que despertou na colônia do rádio o programa de festejo pela passagem do
primeiro aniversário de “Horas de Outro Mundo”. Lá estavam abraçando o
organizador vitorioso e auxiliando-o como podiam, abraçando o organizador
vitorioso e auxiliando-o como podiam, elementos de todo o broadcasting carioca.
Elba Dias, da Rádio Clube; Nássara e Cristóvão de Alencar do “Nosso Programa” e
do “Talismã”; Gramury, organizador de “Miscelânea” da Rádio Sociedade; César
Ladeira, Waldo Abreu, da Mayrink Veiga com seus elementos exclusivos: Madelu de
Assis, Alda Verona e Gastão Formenti; Ademar Casé também com artistas exclusivos
seus; Pinochio do “Programa da Cidade”. Enfim, excetuado um ou outro elemento
menos conhecido dos ouvintes, lá estava na Philips, em torno de Renato Murce, a
Radiolândia em peso. Até neste ponto, o nosso rádio faz lembrar um acampamento
de mineração, que tenha atraído pela notícia de veios maravilhosos e abundantes
o esforço de alguns sonhadores destemerosos e solidários. Mais tarde quando se
estabeleceram as grandes companhias de exploração, tudo entrou nos eixos de uma
perfeição absoluta. Mas a solidariedade dos pioneiros que viviam em casas
improvisadas, não volta nunca mais”.
Não pensem que estou
querendo me promover. Estou contando o que fiz e o que vi. Palavras como essas
de Paulo Roberto, não podia deixar de transcrever.
Quero ainda dizer que
uma das coisas que mais se sensibilizaram, foi a visita de César Ladeira (de
quem tenho muito que falar): atuou, como locutor, durante duas horas no
programa de aniversário. Era a primeira vez, aqui no Rio, que ele falava em
outro microfone que não fosse o da Mayrink Veiga, de onde era exclusivo. Para
terminar, quero informar que, no primeiro programa tão extenso (12 horas) que
se fez no Brasil, atuaram 51 artistas, 3 orquestras, 4 conjuntos regionais, 6
pianistas e 7 locutores. A transmissão teve início ao meio-dia: uma banda de
clarins da Polícia Militar anunciou-a.
Conclui-se que o rádio
realmente começava a ganhar força. E ainda viria a aumentar muito com o correr
dos anos.
Orestes Barbosa, grande
poeta, escritor e jornalista, autor do verso mais bonito do cancioneiro popular
(“Tu pisavas os astros distraída”), segundo a opinião de outro “monstro” que é
Carlos Drummond der Andrade, também escreveu palavras belíssimas em torno da
minha pessoa e de Ary Barroso. Em sinal de gratidão irei transcrevê-las no fim
deste livro, quando fizer a sua minibiografia.
Não é por vaidade ou
por jactância que relato certos fatos de que participei. Todos os que
conviveram comigo, ao longo dos 50 anos que trabalhei no rádio, conhecem a
minha modéstia, direi mesmo a minha humildade. Jamais me promovi, deixando para
fazê-lo com aqueles que me cercavam e que comigo colaboravam. Jamais procurei
algum diretor para pleitear assunto do meu interesse (no que, reconheço, fiz
mal. Houve época em que tinha força, não para medir, mas até exigir que pelo
menos me fizessem justiça). Cuidei, e muito, dos interesses alheios. Ficava
sempre nos bastidores e me alegrava com as vitórias dos que promovia. Portanto,
o relato desses fatos, faço-o assim como uma espécie de manifestação de apreço
e gratidão para com aqueles que foram generosos ao tratar do meu nome.
Após essa pequena digressão, voltemos no ano de 1933. Animado pela festa de
aniversário, resolvi promover um concurso (o primeiro concurso que se fez no
rádio no Brasil). Queria descobrir um speaker pelo microfone da PRAX – Rádio
Philips do Brasil. Confesso que os inscritos não foram em grande número: cerca
de 15. Os votos deveriam ser enviados por cartas. As apurações se fariam
durante quatro semanas, nos dias de programa. Chegaram muitas cartas. Eram
entregues pessoalmente na emissora: pelo correio ficava muito caro para os
concorrentes.
Destes, sobraram para
as finais quatro apenas: Ary Barroso, Dario Murce, um professor do Colégio
Benett, e um funcionário da Companhia Aliança da Bahia.
O professor era o Dr.
José Campos. O funcionário da companhia de seguros me fora apresentado por um
amigo comum, Otávio Lemos que já trabalhava. Era nada mais nada menos que o
Saint-Clair Lopes. Nessa época, um desconhecido e sem os títulos que hoje ornam
o seu nome.
A votação dos demais
candidatos era tão “mixuruca”, que nem foi preciso apura-la. Ficaram, então,
aqueles quatro nomes. Disputaram o título que lhes daria a honra de ser speaker
das “Horas do Outro Mundo”. E um prêmio valioso: “fabuloso” contrato de três
meses, com a remuneração de cem cruzeiros.
Estávamos quase na hora
de encerrar a votação e começar a apuração. Entrou no estúdio um rapaz, levando
um saco enorme cheio de votos: os colegas de Saint-Clair tinham reunido para
ele. Com aquilo, parecia até desnecessário fazer qualquer contagem pois ele
estava automaticamente eleito.
E houve a surpresa
final: minutos antes de iniciarmos a apuração chegavam vários rapazes
conduzindo dois sacos (desses de farinha de trigo) abarrotados de votos. Os alunos
do Colégio Benett tinham obtido para o professor José Campos.
Também não é preciso
dizer que, a essa altura, Ary Barroso e meu irmão Dario já tinham “entrado pelo
cano”. Evidentemente, também aconteceria a mesma coisa com o Saint-Clair Lopes.
A votação do Dr. Campos foi esmagadora. O principal é que ele, dos quatro
finalistas, era o pior de todos. Ótima pessoa, muito distinto, muito culto, mas
sem nenhum requisito para speaker de rádio. O único que servia mesmo era o
Saint-Clair. E já despontava com todos os atributos que viriam abrilhantar a
sua longa e bem sucedida carreira no rádio.
Fiquei numa situação embaraçosa. Com a vitória do Dr. Campos, a locução do meu
programa iria piorar muito, em vez de melhorar, como era a nossa finalidade.
Contudo, ao anunciar o resultado do concurso, tive uma inspiração e “dei uma de
Salomão”. Dirigi-me aos ouvintes da seguinte maneira: “Como os senhores
ouviram, o nosso concurso teve êxito espetacular. Muito além da nossa
expectativa. Com o desenvolvimento sempre crescente do nosso programa,
resolvemos contratar não apenas o candidato vencedor, mas também o segundo
colocado. Este dividirá com o Dr. Campos a tarefa de anunciar o nosso
programa”. O “dividirá” aí podia ser considerado um eufemismo: passei a escalar
o Saint-Clair em quase todas as irradiações. Oferecia-lhe a mesma remuneração
do vencedor. Findos os três meses previstos, este compreendeu a sua situação de
inferioridade. Depois, talvez, de ter satisfeito uma aspiração – ocupar meu
microfone... – caiu fora. Voltou para sua cátedra e não mais se ouviu falar
nele. Enquanto que o Saint-Clair Lopes foi e é o Saint-Clair Lopes...
No programa “Horas do
Outro Mundo” lançamos as crônicas sobre teatro e cinema. Tivemos o ensejo de
constatar a verdadeira força do rádio, ainda não posta à prova. É preciso que
se diga que o rádio, em seus primeiros tempos, foi hostilizado de todos os
modos pela imprensa, de um modo geral. Salvo as naturais e honrosas exceções
(poucas). Gente que ocupava colunas dos jornais para criticar, áspera e
maldosamente tudo o que se fazia no broadcasting: nenhum programa “prestava”;
todos os que ali trabalhavam eram uns ignorantes e analfabetos cuja missão era
deseducar o povo, contrariando aquilo a que o rádio se propusera ao ser
lançado.
Nunca pude entender a
razão dessa má vontade.
E curiosa era a
passividade do rádio: não usava seus microfones, já não digo para atacar, mas,
nem sequer, para se defender. Os diretores das emissoras tinham medo desse
“monstro sagrado”, a imprensa. Esqueciam-se de que a palavra irradiada para
milhões de ouvintes tem muito mais força do que aquela escrita e lida por um
número limitado de pessoas. Quando você vê seu nome citado num jornal ou
revista, tem a impressão de que pouca gente tomou conhecimento do fato. Mas, quando
ouve qualquer coisa a seu respeito, no rádio (ou na TV), você sai pela rua com
a impressão quase certa de que todos ouviram o que foi irradiado. A sua relação
é boa ou má, conforme a natureza do que foi dito.
Foi, ao lançar nossas
crônicas (minhas e do Ary Barroso) sobre teatro e cinema, que inesperadamente
apareceu a oportunidade de testar o assunto. Chegara ao Brasil um filme da Fox
intitulado Voando para o Rio.
Pretendia mostrar a nossa capital, os nossos costumes e a nossa música para o
resto do mundo. A crônica especializada da imprensa gostou da película. A
maioria elogiou-a, inclusive um crítico muito rigoroso e temido, Sodré Viana,
de O Globo. Ora, o filme do Brasil, mostrava apenas aquela panorâmica do
Corcovado e do Pão de Açúcar (que todo avião que aqui chega, fotografa). O
resto era um amontoado de sandices, filmadas em estúdio. O pior era que
apresentava como música brasileira uma série interminável de rumbas, boleros,
foxes, etc.
A crônica que Ary
Barroso fez em nosso programa “malhou” o filme de alto a baixo. Inclusive
estranhando a opinião favorável de Sodré Viana! Pra que, seu? O crítico voltou
ao assunto. Agora de maneira grosseira, envolvendo o programa, o meu nome e
insultando de modo incrível o Ary. Se a réplica do Sodré foi violenta, a
tréplica do Ary foi muito mais. Causava espanto a atitude que o rádio, pela
primeira vez, tomava em relação à imprensa. Sobretudo enfrentando um jornal da
importância de O Globo. Sodré Viana,
que viria a falecer pouco tempo depois, encerrou o assunto. Contudo, um seu
colega, jornalista de grande gabarito, cujo nome omito porque sou hoje seu
grande amigo, tomou o “pião na unha”. Escreveu um artigo irônico e
“espinafrativo” sobre o assunto, sob o título “Guizos e Alvaiades”. Pretendia
nos chamar de palhaços...Aí foi a minha vez: respondi ao jornalista de maneira
violenta e agressiva, que o assunto foi considerado pelo diretor como
inoportuno e prejudicial ao jornal. Enviou-nos, então, um dos seus redatores
para conversar: punha-se ponto final na questão que estava afetando ambas as
partes. Era a bandeira branca. Aceitamos prazerosamente. Serviu para uma
demonstração da força do rádio: uma pequena estação de 5 watts enfrentava com
vantagem um dos mais poderosos órgãos da imprensa brasileira. Infelizmente, o
exemplo não pegou. E o rádio continuou, tempos afora, acovardando-se e sofrendo
sempre a hostilidade dos jornais.
Hoje já está tudo bem
modificado, tendo todos compreendido ser possível uma coexistência pacífica e
útil. Tanto, que as grandes empresas jornalísticas despõem também de possantes
emissoras de rádio e TV.
Sempre quis fazer um
programa sob o título “O Rádio se Defende”. Não pretendia atacar ninguém.
Apenas defender das injustiças e intrigar de que éramos vítimas. Jamais obtive
o consentimento dos diretores de emissoras onde trabalhei. Ah!...Os diretores!
Este é um prato delicioso que vocês terão mais adiante. Aguardem...
O ano de 1934 correu
mais ou menos calmo. Apenas com a humanidade começando a se preocupar com a
situação europeia. Iniciava-se o clima de tensão que viria ensanguentar o mundo
a partir de 1939. A maioria do noticiário radiofônico girava em torno desse
assunto.
No Brasil, com a
constituição de 1934 e o consequente acesso de Getúlio à presidência da
república legalmente, o ambiente estava calmo. Aliás, é de justiça ressaltar
que Getúlio Vargas (que até hoje merece o respeito e o carinho de muitos
brasileiros) foi um ditador tolerante e até mesmo simpático. Tanto que permitia
a sátira à sua pessoa no teatro e no rádio.
No teatro, Armando
Nascimento encarnava com muita propriedade a figura de Getúlio. No rádio, até
eu me intitulava Remur I e Único, ditador de todos os planetas. A denominação
de ditador não alcançara ainda o sentido pejorativo que teria no Estado Novo
tornando-se um vocábulo proibido.
Agora, um pequeno
retorno no ano de 1932: pela primeira vez apresentei e transmiti um espetáculo
com as escolas de samba evoluindo no palco de um teatro, o Teatro Recreio,
conforme consta dos jornais da época, em 18 e 19 de fevereiro daquele ano (Diário de Notícias, Mundo Esportivo, A Pátria,
Diário Carioca, O Globo, etc). Tomaram parte: Estação Primeira de Mangueira, Vai
Como Pode (de Oswaldo Cruz) hoje a Portela, e Unidos da Tijuca, vencedoras do
grande concurso promovido pelo Mundo Esportivo, da Praça Onze. Nessa
apresentação tomou parte o conhecido sambista Paulo da Portela. Era tudo muito
diferente do que é hoje. A apresentação das escolas era muito modesta.
O espetáculo, devemos confessar, não teve quase nenhuma repercussão. Foi,
entretanto, um acontecimento curioso. Estamos fazendo questão de relembrá-lo
porque não consta do excelente livro de Sérgio Cabral, Escolas de Samba, que
assinala, entretanto, fatos de menor importância.
Voltemos a 1934. A
primeira corrida de automóveis foi realizada em 1933. Despertou um entusiasmo
enorme pelo automobilismo no Brasil. Já em 1934 o grupo de concorrentes era bem
maior. E quase não havia carros adequados àquela altura.
Muita gente começou,
então, a “fabricar” carros de corrida. Isto é, a fazer modificações em motores,
carrocerias, etc. Adaptavam carros de passeio para a grande prova. Apesar de
estarem na pista a Alfa-Romeu de Teffé, a Fiat de Júlio de Morais, diversas
Bugatti-Grand-Prix de corredores argentinos, uruguaios e portugueses, quem
venceu a corrida de 1934 foi um dos melhores volantes. Eu e muita gente
considerava o melhor entre os melhores. Equiparava-se mesmo a Francisco Landi:
foi Irineu Corrêa. Cruzou o vencedor depois das 25 voltas em primeiro lugar.
Pilotava um carrinho Ford, de passeio, o chamado V-8, por ele adaptado para a
prova.
O circuito da Gávea
ganhou um aspecto curioso: um sem-número de concorrentes sem a menor condição
para competir. Uma miscelânea esquisita de carros que nem marca tinham, e que
jocosamente eram chamados de “Galipões”. Era uma mistura de chassi Ford com
motor Alfa-Romeu, compressor Packard, etc. Era o meu caso: já sendo bem
conhecido no rádio, e tendo por hobby o automobilismo, resolvi apresentar o
rádio na sensacional prova.
A notícia de que um representante
do rádio iria correr causou desmedido entusiasmo. Formou-se logo uma enorme
torcida. Mas eu sabia que minha chance era muito reduzida. Primeiro, não tinha
carro à altura da competição; segundo, as colocações para a saída não eram por
contagem de tempo, mas por sorteio; terceiro, a pista estava em péssimas
condições; grande parte dela nem era asfaltada, o que só viria a acontecer no
ano seguinte.
No sorteio, minha
“possante Alfa-Romeu” ficou em antepenúltimo lugar, entre 35 disputantes. Toda
a família ficou alarmadíssima com a minha decisão. Tudo foi tentado para a
minha desistência. Mas eu já estava comprometido com o rádio e não podia voltar
atrás.
Na hora da largada, no
primeiro domingo de agosto de 1935, lá estava eu ao volante do meu carro. E já
arrependidíssimo de me ter metido naquela aventura. Até a última hora foi
tentada a desistência por minha família. O amor-próprio estava acima de tudo, e
não acedi.
Há um fato curioso, que
deve acontecer com muito corredor: os minutos que antecedem a largada são
simplesmente trágicos. Dá um nervoso e um frio na espinha, indescritíveis.
Dada, porém, a largada, como um fenômeno tudo isso desaparece. E a gente só
pensa num objetivo: correr o mais rápido possível. Ultrapassar os demais e
chegar na frente. Como representante do rádio, a minha torcida era imensa.
Cheguei a dar esperanças quando, como um louco, passei durante as quatro
primeiras voltas por cerca de 15 carros. Com a desistência de outros –
“Galipões” como o meu – já passara do 33º para 14º lugar. Vinha causando
sensação e entusiasmo entre os torcedores que aplaudiam delirantemente a minha
passagem. O entusiasmo aumentava com a descrição dos locutores quanto à façanha
que eu vinha realizando. Realmente estava muito acima do esperado.
Mas vejam como é
volúvel a humanidade! No meio da quarta volta, bem lá no alto da Rocinha,
quando começa a descida para a rua Marquês de São Vicente, meu carro enguiçou:
defeito na bomba de óleo. Como estava lá em cima, desliguei o motor. Deixei o
carro vir descendo. Até alcançar o primeiro posto em que pudesse entrar. Este
ficava na Rua Marquês de São Vicente. Os locutores começaram a anunciar a minha
ausência, de certa forma alarmante: “Onde está Renato Murce? Renato Murce ainda
não passou! Vamos verificar o que houve com Renato Murce, etc, etc”, pondo
pânico a minha família.
Passara antes delirantemente aclamado. Desci, então, a rua Marquês de São
Vicente debaixo da maior vaia que já ouvi em minha vida! Creio que nem os
festivais de música, nem o Paulo César sentiram coisa igual. Finalmente, o
rádio anunciou: “O carro de Renato Murce enguiçou por defeito na bomba de óleo.
Acaba de entrar no posto número 4”. Alívio em minha casa! Minha mãe limitou-se
a dar graças a Deus...
Neste ano houve uma
nota tristíssima: o falecimento em plena corrida, de Irineu Corrêa. Vencera em
1934. Tive a infelicidade de assistir ao desastre: seu carro derrapou numa poça
de óleo largada por outro concorrente. Ele, com a velocidade em que ia, “voou”
alguns metros, indo cair no canal da Avenida Visconde Albuquerque.
Em 1935, havia uma
certa inquietação quanto a movimentos subversivos em diversos pontos do país.
Culminaram com a bárbara intentona comunista da Praia Vermelha, logo sufocada.
Sacrificou diversas vidas preciosas. O governo, então, já se inquietava.
Para despistar, permitia
que os políticos se movimentassem para a sucessão presidencial, em 1938. Entre
os candidatos viáveis estavam Armando Sales de Oliveira, paulista, e José
Américo, paraibano. Começaram a coordenar suas campanhas. Essas campanhas
viriam a se intensificar em 1937. Ambos já se consideravam vitoriosos, quando
Getúlio cortou-lhes as asas: implantou o Estado Novo em 10 de novembro daquele
ano. Tinha, como pretexto, a intentona integralista que pretendeu tomar de
assalto o Palácio Guanabara, residência do presidente.
Além do levante
comunista e algumas notícias de tentativas de insurreições sem êxito em vários
Estados, o ano de 1935 terminou sem outros acontecimentos de maior vulto. Nada
chegava a empolgar o grande público. Este tinha sua atenção voltada para o que
se passava no Velho Mundo: as ações nefastas de Hitler e Mussolini.
Meticulosamente, preparavam aquilo que viria a ser a maior desgraça que a
humanidade teria que sofrer dentro em pouco.
Por incrível que pareça,
talvez temerosa do regime comunista – que se agigantava também -, muita gente
simpatizava com o nazismo e o fascismo, fatores do grande surto de
desenvolvimento da Alemanha e da Itália. Alguns ficavam naquela utopia da
democracia. Mas sem acreditar muito na sua eficiência, apesar de ser o regime
adotado pelos Estados Unidos, França e Inglaterra, e outros países de menor
expressão.
No Brasil, o povo era
democrata. Apesar de já estar sendo minado pelas estranhas ideologias de
Hitler, Mussolini e Lênin. Estávamos aparentemente numa democracia, com um
presidente eleito. Mas o que havia aqui era mesmo uma ditadura. Como os tempos
se encarregaram de demonstrar, não se coadunava com o regime por todos
desejado. Era uma democracia “salpicada”.
O rádio noticiava tudo
e dava cores bem nítidas os fatos. O mundo se inquietava com a situação caótica
da Espanha. A guerra civil se antecipava: era um treino para a grande hetacombe
que seria deflagrada em 1939. Só que o conflito espanhol era entre comunistas e
fascistas. Serviam o solo e o povo espanhol daquela terra como cobaias.
Inúmeras vítimas foram sacrificadas; Entre elas o grande poeta García Lorca. A
terra de Cervantes quase arrasada. A guerra terminou com a elevação de Franco
ao poder. Infelizmente, nele se manteve por quarenta anos, até morrer
recentemente.
De outros fatos de
1935, assim de maior relevo, não nos lembramos no momento, o que é natural.
Mesmo aqueles que escrevem amparados em arquivos e demoradas pesquisas, omitem
muita coisa. Isso nos absolve quando a memória falha.
Assim chegou 1936. Foi
um ano marcado por inúmeros acontecimentos importantes, sobretudo com
referência ao rádio. Logo no dia 1º de janeiro era inaugurada, na Rua do
Mercado, 22, 4º andar, uma grande emissora: a Rádio Transmissora Brasileira,
PRE-3. Pertencia à RCA Victor. Ficava instalada no mesmo prédio daquela
importante gravadora. Era seu diretor um americano, aqui radicado, Mr. Evans.
A Rádio Transmissora
surgiu como um “bomba”: apresentou o programa inaugural com um elenco artístico
tão grande e tão bom, que a gente chegava a duvidar. Não se acreditava que uma
estação de rádio pudesse reunir uma grande orquestra comandada por Romeu
Gipshmann onde pontificavam Célio Nogueira, Radamés Gnatalli, Iberê Gomes
Grosso, Jaime Marchevsky, Ari Ferreira, Pixinguinha, e outros grandes nomes de
igual porte. O naipe de cantores era o maior que já se havia reunido em
qualquer época do rádio: Gastão Formenti, Orlando Silva, Nelson Gonçalves, Sílvio
Caldas, Silvinha Melo, Dolly Ennor, Almirante, Sílvio Vieira, Reis e Silva e
alguns mais. Além de grandes “astros” vindos especialmente de São Paulo.
Como a RCA era uma empresa importante, de muitos recursos, e a maior gravadora
da época, acreditava-se que aquele lançamento da Rádio Transmissora iria “abafar
a banca”. Mas isso não aconteceu. Foram mal escolhidos os diretores da estação.
O Departamento Comercial era uma “piada”. Assim, antes de quatro meses de
transmissão, foi tudo modificado, contratos rescindidos, empregados despedidos,
ficaram apenas uns poucos artistas de nome para atender à programação.
Fui, então, convidado
para assumir a direção artística da PRE-3. Naturalmente, pelo que já fizera nas
“Horas do Outro Mundo”. Aceitei com o fabuloso ordenado de “um conto de réis”
(um cruzeiro hoje). Entrei a trabalhar com o auxílio de Almirante, Gastão
Formenti, Castro Barbosa, Lauro Borges, Alziro Zarur, Haroldo Barbosa,
Chiquinha Jardim, e um ótimo conjunto regional comandado por Pixinguinha, onde
se destacavam Luís Americano, Dilermando Reis, Luperce Miranda, Tute e João da
Baiana. Convoquei alguns artistas que já haviam trabalhado comigo nas “Horas do
Outro Mundo”: Artur e Amélia de Oliveira, Salu de Carvalho, Alma Flora, Lou de
Moreira Santos.
Começamos a “bolar”
programas que fossem diferentes. Lançamos “Antigamente...” nos moldes da “Hora
para os Nossos Avós”, que já fizéramos na Philips; a “Hora Sertaneja”, apenas
com música e aspectos regionais; as “Cenas Escolares”; lançamos o “Teatro
Leopoldo Fróes”, que, também, já como pioneiros, tínhamos irradiado em 1932.
Convoquei para nossa estação o grande “Programa Casé”. Tinha duração de quatro
horas, aos domingos. E o público ouvinte foi aceitando e gostando. Passei a
Rádio Transmissora à liderança de audiência.
Além disso, 1936 iria
notabilizar-se no rádio por outros motivos. O Circuito da Gávea já alcançara
repercussão internacional. Começou a atrair para o Brasil os maiores nomes do
automobilismo do Velho Mundo. Em 1936 aqui aportaram Pintacuda e Marinoni,
compondo a equipe da Masserati; Von Stuck com uma possante Mercedes-Daimler,
fabricada especialmente para ele; além de Vasco Sameiro, português com
Alfa-Romeu; Lerfeld, também português, com uma Bugatti Espacial tipo
“Grand-Prix”; e os argentinos e uruguaios que já aqui tinham estado antes. Von
Stuck era o pai do piloto do mesmo nome que vem correndo atualmente.
Com esses cartazes
todos, o Circuito da Gávea (já então todo asfaltado) tornou-se atração mundial.
Nem pensei em me aventurar novamente. Com o entusiasmo com que estava dirigindo
a Transmissora, queria fazer uma transmissão da corrida que superasse todas as
demais. Não tinha, porém, um locutor capaz daquela tarefa. Foi quando Mr.
Evans, diretor da RCA-Victor, me chamou a atenção para um rapaz. Irradiava,
pela manhã, na PRH-8 – Rádio Ipanema um programa denominado “Hora do Livro”.
Liguei para a Ipanema no dia seguinte. Ouvi o tal rapaz. Realmente tinha voz
muito boa, muito bem timbrada e falando de improviso com muita facilidade e
acerto. Mandei chama-lo. Ofereci-lhe o cargo de speaker-chefe da nossa estação.
Aceitou prazerosamente, entrando logo a trabalhar em função do cargo.
Ao se aproximar o dia da corrida, disse-lhe: “Nós vamos fazer a irradiação do
Circuito da Gávea”. “Nós, quem?”, perguntou ele. “Nós, eu e você”. “Não entendo
nada de automobilismo!”. “Mas eu entendo, eu entro com a parte técnica,
cronometragem, comentários, etc. Você descreve a corrida a seu modo, com
entusiasmo, dando a maior ênfase ao que estiver presenciando”. Ele “topou”. E,
se assim combinamos, melhor o fizermos. A Rádio Transmissora fez uma
transmissão espetacular. Deu uma verdadeiro “banho” nas demais emissoras. Foi
assim que iniciou sua carreira esportiva, que seria brilhantíssima pelos anos
afora, um então rapazinho chamado Oduvaldo Cozzi.
Na semana seguinte,
repetiríamos a dose no Grande Prêmio São Paulo, disputado na Avenida Brasil,
daquela capital. Além da corrida propriamente dita, tivemos a oportunidade de
fazer um relato sensacional do desastre com o carro da francesa Helenice.
Ocorreu bem em frente ao nosso posto de irradiação. Foi sensacional. Mas muito
chocante, muito triste. Ao capotar, o carro saiu da pista. Feriu muita gente.
Deixou sua motorista inconsciente, com a vida em perigo por muitos dias. Essas
duas transmissão deram ao Oduvaldo Cozzi um grande cartaz. Em dezembro ele nos
deixava. Seduzido por um contrato mais vantajoso da Rádio Nacional surgida em
setembro do mesmo ano.
Continuávamos a lutar
da PRE-3, sempre imaginando novidades. Poucos bons elementos nos restavam. A
Alziro Zarur entregamos um programa diário: “Cock-tail Musical”. Aí, teve ele
oportunidade de fazer excelente trabalho literário. Tornou a Transmissora a
pioneira da literatura no broadcasting brasileiro. Seguido, depois, pela
Mayrink Veiga com a “Biblioteca do Ar”, entregue à competência de Genolino e
César Ladeira.
No mês de agosto de
1936, foram realizadas as Olimpíadas de Berlim. Preparadas com grande aparato e
menos com o propósito de mostrar uma competição atlética do que o poderio dos
representes do Reich, cuidadosamente, preparados, capazes de derrotar
inapelavelmente qualquer outro tipo de competidos que não fosse da raça ariana.
Saiu-lhes o “tiro pela culatra”.
Numa bem cuidada
“História das Olimpíadas”, editada pela revista Realidade e com excelentes
textos de João Máximo, vamos encontrar detalhes importantíssimos dessa
olímpiada. Venceram os americanos (nove medalhas de ouro). Só o atleta negro
Jesse Owens conquistaram quatro: 100 e 200 metros rasos, revezamento 4x100, e
um fantástico salto em distância de 8,06m., marca esta que ficou 24 anos sem
ser suplantada. A única vitória alemã foi a das moças ginastas por equipe.
Hitler retirou-se
acintosamente do majestoso estádio, recusando-se a cumprimentar os atletas
vencedores, deixando isso a cargo dos seus auxiliares.
Logo depois, no mesmo
ano de 1936, em que o mundo se mostrava apreensivo com a guerra civil
espanhola, outro acontecimento, de grande dimensão viria a empolgar os meios
radiofônicos: a 12 de setembro daquele ano, inaugurava-se a Rádio Nacional: da
mesma maneira mais espetacular ainda do que o fizera, nove meses antes, a Rádio
Transmissora.
A Rádio Nacional formou
um grande cast com artistas do Rio e de São Paulo. Foi buscar na Transmissora
aqueles elementos preciosos (poucos, mas de grande valor) que comigo ali
colaboravam com propostas irrecusáveis. Foi assim que perdemos Almirante,
Haroldo Barbosa, Pixinguinha e seu Conjunto Regional, Radamés Gnatalli, Iberê
Gomes Grosso, e alguns mais; além de Cozzi, que se transferiu em dezembro. Da
Rádio Nacional ainda teremos muito o que relatar. Fica para mais tarde.
A Transmissora, embora
enfraquecida, continuou a lutar bravamente. Muitos ouvintes ainda se mantinham
fiéis aos nossos programas: tinham a marca da originalidade. Principalmente a
“Hora Sertaneja” (depois “Alma do Sertão), “Antigamente”, “Cenas Escolares”
(depois “Piadas do Manduca”) e “Teatro Leopoldo Fróes”; “Coquetel Musical”, do
Zarur.
Certamente teríamos
encontrado uma fórmula de sobrevivência, não fossem as constantes mudanças de
diretores. (Ah! Os diretores, como atrapalharam o rádio!) Nada entendiam do
metiê. Entravam num dia e, uma semana depois, estavam “caindo fora”. Não sem
antes darem seus “palpites infelizes”. Em um ano e pouco que estive à testa de
programação da PRE-3, por lá passaram cinco diretores. Nenhum deles sabendo
sequer escrever um programa de rádio. Pessoas dignas – algumas-, como Mr.
Evans, Marcos Carneiro de Mendonça (o grande goal keeper do passado), Paulo César Kelly e, por fim, o Dr. Nelson
Dantas. Dizia este ter comprado a estação da RCA. Megalomaníaco, só falava em
milhões e bilhões, e mil projetos! Tratava-nos muito bem. Infelizmente somos
obrigados a dizer que ele, depois de aniquilar a emissora, vendeu-a ao jornal O Globo. Perguntarão: como foi que ele
consegui derrubar a estação?
Foi a seguinte. Em fins
de 1936 e começo de 1937 o famigerado integralismo (moldado nas doutrinas do
nazismo e do fascismo) desenvolvia-se de forma alarmante no Brasil. Ao que tudo
indicava, com o assentimento ou a complacência do governo. Faziam passeatas,
formavam paradas. E a mais célebre e ridícula saudação “Anauê”. As figuras, dos
seus maiorais, no Rio, eram Plínio Salgado, Gustavo Barroso, Raimundo Padilha e
Arthur Thompson. Plínio Salgado estava certo de que seria o Führer do Brasil.
Um dia, vi chegar à
Transmissora a figura pequenina do diretor, Dr. Nelson Dantas, fantasiado de
integralista. Estranhei e indaguei o que era aquilo. E ele: “Entrei em
entendimentos com o meu amigo Plínio Salgado. Hoje sou uma das figuras de maior
realce nesse movimento maravilhoso – o integralismo. Daqui por diante, os
microfones da nossa estação também vão se abrir à grande causa. Amanhã teremos
aqui uma grande assembleia: o nosso chefe falará para todo o Brasil”. Claro que
não gostei, mas não comentei o fato.
Resolvi aguardar os acontecimentos. No dia seguinte, começou a chegar, logo à
noitinha, uma verdadeira multidão de adeptos. Todos de calças brancas e camisas
verdes, curiosos pela chegada do seu “ídolo”. Quando este saiu do elevador e
transpôs a porta do estúdio, como se fossem uma só pessoa, aqueles energúmenos
ergueram os braços e deram o brado: “Anauê!”.
Os microfones já
estavam ligados. O Dr. Nelson tinha feito uma preleção sobre o acontecimento.
Anunciou, logo em seguida, a palavra do chefe. Este começou, então, uma
“arenga”, cheia de lugares comuns e frases feitas. Foi se entusiasmando,
elevando a voz, pregando a doutrina. Logo passou a fazer ameaças aterradoras! O
homenzinho arranjou duas palavras que repetiu umas vinte vezes: “Castigarei implacavelmente”,
todo que...” Castigarei implacavelmente” quem ousar discordar da nossa doutrina! “Castigarei
implacavelmente”...
Enfim, quem era
“castigar implacavelmente” todos aqueles que não estivessem de acordo com ele!
Achei tudo aquilo uma “palhaçada” sem nome. No dia seguinte me demiti da
estação. Ao comunicar essa resolução ao Dr. Nelson Dantas ele, muito surpreso,
me perguntou o que havia. Estava muito satisfeito comigo e não compreendia o
meu gesto. Mas eu disse, apenas, ironicamente: “Não quero ser castigado
implacavelmente. Acho esse troço de integralismo numa besteira sem nome. Passe
bem”.
Não posso encerrar o
capítulo de minha passagem pela Transmissora, sem dizer que ali conheci
diversos grandes artistas: o grande violonista Dilermando Reis, Heleninha
Costa, Emilinha Borba e Dalva de Oliveira, estas muito meninas ainda. Heleninha
tinha apenas doze anos. Procedente de Santos vinha tentar o rádio no Rio;
Emilinha, com treze, cantava num programa que tínhamos aos sábados, comandado
por Gomes Cardim. Dalva ainda não pertencia ao Trio de Ouro. Teria uns 15 anos.
Cabelos muito compridos e um fiozinho de voz muito agradável.
Esse Gomes Cardim era
daqueles corretores de que falei: “fazia qualquer negócio”. Trocava publicidade
por móveis, roupas, utensílios domésticos e o que mais pudesse. Deixou a
estação devendo uma “erva” muito grande, para a época.
Ao deixar a
Transmissora, recebi logo o convite de um grande homem de rádio, o Dr. Carlos
Rizzini. Pertencia à alta cúpula das Emissoras Associadas. Convidou-me para ser
o diretor de broadcasting da Rádio Tupi, aqui do Rio.
A Rádio Tupi funcionava num galpão, ou trapiche, lá na rua Santo Cristo. Muito
mal instalada apesar do espaço enorme que ocupava. Lá encontrei, como diretor
artístico, um rapaz que viria a ser um dos melhores radialistas do Brasil:
Teófilo de Barros Filho. Depois seria diretor da Rádio Jornal do Comércio do
Recife. Era a mais bem instalada do Brasil. Posteriormente, Teófilo seria
diretor artístico da Rádio Tupi de São Paulo. Teófilo, já falecido, pode
figurar brilhantemente, no quadro de honra dos melhores homens do rádio.
Trabalhava ali também,
recém-chegado de Pelotas, o gaúcho Manoel Barcelos. Era locutor de um programa
matutino e tinha o ordenado de 400$000 (quatrocentos mil réis). Teófilo ganhava
um conto de réis. Uma das primeiras coisas que fiz foi aumentar-lhes os
ordenados: Teófilo passou a um conto e quinhentos mil réis e Barcelos a
oitocentos mil réis. Eu ganhava dois contos.
A situação da Tupi
(parece que é uma tradição) era a pior possível: um cast muito fraco onde os
maiores nomes eram Gilberto Alves e Cristina Maristani. Um faturamento
precaríssimo, mal dando para as despesas. Foi quando tivemos a ideia de
enriquecer os nossos programas. Trouxemos aos nossos microfones os grandes
cartazes estrangeiros que aqui vinham para cantar no Cassino da Urca. Fizemos
um acordo com a direção daquela casa de jogo. Em troca de muita publicidade,
eles nos mandariam os seus artistas contratados. Assim, pudemos apresentar ao
público Pedro Vargas, Ana Maria Gonzalez, Elvira Rios, José Mojica, Carlo Buti,
Luciene Bouer, Adelina Harcia, Martha Eggert, Jan Kiepura, Tito Guizard,
Augustin Lara, Ortiz Tirado e mais alguns outros.
No entanto, todo o
nosso esforço resultou improfícuo. Estava mesmo tudo muito difícil de
consertar. Não pude permanecer muito tempo na Tupi, por razões óbvias:
trabalhava muito e não recebia. Trabalhei seis meses do ano de 1937. Nem sequer
pude ou posso reclamar. Fui sem contrato; apenas conversa...
Nesse mesmo ano, o Sr.
Plínio Salgado e seus asseclas se entusiasmaram demais, e tantas fizeram que
Getúlio perdeu a paciência. Numa penada, dissolveu a célebre Ação Integralista
Brasileira. Os responsáveis pela mesma não se conformaram. Organizaram uma
intentona, a fim de tomar de assalto o Palácio Guanabara: queriam liquidar com
o presidente. Deram-se mal. Foram facilmente dominados. Ofereceram a Getúlio o
pretexto que ele já esperava: implantar o célebre Estado Novo; promulgar uma
constituição sui-generis. O povo apelidou-a de “polaca”. Saiu do cérebro
maquiavélico do Dr. Francisco Campos, cognominado de Chico Ciência.
Esboroaram-se as
esperanças de Armando Sales de Oliveira e de José Américo. Empenhavam-se na
árdua campanha eleitoral para ocupar a presidência em 1938. O candidato José
Américo, homem íntegro, político honesto, escritor de valor, autor de vários
livros, entre os quais se destaca A Bagaceira, num rasgo de ingenuidade, num
dos seus discursos de propaganda eleitoral, falou na escassez de recursos para
o povo, dizendo: “Eu sei onde está o dinheiro!” Pra que, “seu compadre”...A
frase foi motivo de uma gozação interminável. O bom paraibano foi glosado de
todo o jeito. Primeiro, ele não sabia onde estava coisa alguma; mesmo que
soubesse, não poderia falar! E só se ouvia nas ruas: “Onde está o dinheiro?!
Não sei, pergunte ao Zé Américo”.
O leitor deve estar
estranhando que eu falei muito nas “Horas do Outro Mundo”, da Rádio Mayrink
Veiga, da Rádio Transmissora, e passei como gato por brasa” ao referir-me à
Rádio Nacional. É fácil explicar: a Rádio Nacional foi, por muito tempo, pelo
menos durante vinte anos, a própria essência do rádio brasileiro. Dominava-o em
todo o Brasil de forma esmagadora. Merece um capítulo à parte, que virá
adiante.
Voltemos, pois, a 10 de
novembro de 1937: instituição do Estado Novo e criação do famigerado DIP
(Departamento de Imprensa e Propaganda). Dolorosa memória. Havia poderes
discricionários para controlar todos os meios de comunicação então existentes.
E, para cúmulo da sua ação nefasta, Getúlio nomeou como primeiro diretor um
homem arbitrário, de temperamento impulsivo: o Capitão Amílcar Dutra de
Meneses. Tratou logo de cercar-se de uma estranha equipe, para exercer a mais
execrável das censuras nas rádios, jornais e teatros.
Hoje, ninguém
acreditaria que certas coisas fossem censuradas naquela época. Não se podia,
sequer, citar o nome de alguma pessoa que não fosse simpática ao governo.
Lembro-me de que certa vez tive um programa inteiro vetado: numa frase, falando
no racionamento da gasolina, então severíssimo (para os que não tinham
pistolão; para os outros não havia problemas), um dos personagens do referido
programa dizia: “Poxa, companheiro, custei mas consegui gasolina! Conseguiu
como? Quanto? Consegui gasolina para o meu isqueiro”. Por causa disso foi
vetado um programa inteiro de mais de dez páginas. E não tinha mais alusão a
coisa alguma proibida.
O DIP destacava, para
cada rádio ou para cada jornal, um analfabeto para censurar programas e
scripts. Algumas vezes conseguíamos “dribá-los”, escrevendo coisas que eles não
entendiam. E a gente explicava de modo diferente.
Consegui irradiar,
certa vez, uma peça teatral traduzida do espanhol. Era toda uma sátira aos
regimes de força. Convenci ao censor de plantão de que era justamente o
contrário. A peça se chamava: O Soldado de S. Marcial.
Além dos representantes
do DIP, a “delicada” e “simpática” polícia da época colaborava eficientemente:
destacando um solado para cada rádio e cada jornal. Foi um período que dá até
vergonha citar. Algum tempo depois, foi o capitão Amílcar (já promovido a major
pelos “bons” serviços prestados no DIP) substituído pelo Sr. Lourival Fontes.
Mais culto e compreensivo, amenizou um pouco aquela situação de terror.
Finalmente, esteve à testa daquele departamento um homem de gabarito, vasta
cultura e muito humano. Deixou-nos mais à vontade. É claro, sem deixar de
cumprir, com equilíbrio, as ordens emanadas do Catete. Esse homem se chama
Júlio Barata. Todos sabem, foi ministro do Trabalho do governo Médici. Júlio
Barata foi também, durante algum tempo, diretor da Rádio Clube do Brasil onde
trabalhei durante oito anos como diretor artístico.
Entrei para a Rádio
Clube do Brasil. Deixei a Rádio Tupi. Isso a convite de Gagliano Neto, que
vieram de São Paulo para dirigir a Rádio Continental dos irmãos Berardo.
Passou, depois, para a Rádio Clube a convite do Sr. Alberto Byington Júnior:
dono da Rádio Cruzeiro do Sul (hoje Metropolitana) e das Rádios Kosmos e
Cruzeiro do Sul, de São Paulo.
Gagliano Neto já se
destacara em São Paulo. Ótimo speaker e melhor narrador de futebol.
Equiparava-se ao célebre Nicolau Tuma, o speaker metralhadora, que com rapidez
e eficiência narrava uma partida em todas as suas minúncias. Gagliano
convidou-me para a direção artística da Rádio Clube. O ordenado era três contos
de réis (bom para a época). Aceitei logo: ganhava dois na Tupi, e não recebia.
Era bom negócio.
Nessa época, 1938 a
Nacional já começava a se destacar como a maior estação do país. Tinha vastos
recursos, que as outras não possuíam. E os melhores artistas. Mas quem lavrou o
maior tento nesse ano foi a cadeia de Emissoras Byington. Gagliano Neto
conseguiu a exclusividade para a irradiação da Copa do Mundo a ser realizada em
Marselha, na França.
A CBD convocou para
técnico da seleção brasileira um homem inexperiente no assunto. Só lidara com
futebol algum tempo nas equipes intermediárias do Madureira Atlético Clube:
Ademar Pimenta. Houve surpresa nessa convocação. Surpresa muito maior foi
quando o referido técnico escalou os jogadores que deveriam seguir para a
Europa: reuniu o que de melhor havia no nosso futebol. Formou dois times
notáveis. Cada um capaz de conquistar o tão cobiçado título, então em poder da
Itália.
Não havia, naquela
época, essa história de “comissão técnica”, “departamento médico”,
concentrações e treinos muito antes do torneio. Era tudo mais ou menos no “vai
da valsa”. Mas Pimenta teve bom senso: reuniu muitos jogadores que já bastante
tempo jogavam juntos em seus clubes: Romeu, Tim, Afonsinho, Batatais e Hércules,
do Fluminense. Nariz, Martim, Perácio, Patesko e Zezé Procópio, do Botafogo.
Walter, Domingos e Leônidas, do Flamengo, etc.
A ausência dos craques paulistas está explicada: pouco tempo antes, o
Fluminense contratara, de um só golpe, quase todo o scratch bandeirante. Mais
alguns nomes de menor expressão completava a lista dos 22 convocados.
Partimos para Marselha.
Aqui ficaram os ouvintes, todos atentos aos menores detalhes preparatórios do
campeonato. Quando este começou, o Brasil inteiro parou, nas ruas, em frente às
lojas, em casa, em toda a parte, para ouvir as irradiações do Gagliano Neto.
Começamos a vencer os primeiros jogos com facilidade. Chegou o dia de enfrentar
a Polônia. Foi uma irradiação dramática: cheia de alternativas de ohs! De decepção
e ruidosas manifestações de entusiasmo. Basta dizer que o placar foi de 6x5 a
nosso favor. Leônidas (que já fizera três tentos) marcou o sexto gol no
finalzinho do jogo! Respiramos aliviados. Apreensivos quanto ao jogo seguinte.
Seria o último, contra a Itália, detentora do título desde 1934.
Aí começou a tragédia:
primeiro, Leônidas, contundido no jogo da Polônia, não podia jogar. Isso
correspondia ao desfalque de quase meio time; segundo o substituto de Leônidas,
o centro-avante Niginho, do Palestra Itália (hoje Cruzeiro) de Belo Horizonte,
foi impugnado pelos italianos. O regulamento considerava italiano qualquer
jogador, nascesse onde nascesse, filho de italianos; o Niginho o era. Pimenta,
sem outro recurso, teve que modificar o time todo. Passou Romeu para o centro,
etc.
Mesmo assim, o jogo
decorria mais ou menos tranquilo. Até com ligeira vantagem para a equipe
brasileira. Foi quando Domingos da Guia (o grande back, o “Divino Mestre”, como
o chamavam os torcedores fanáticos) cometeu uma besteira sem nome: com a bola
fora do jogo, reagiu a um palavrão do centro italiano Piola, dando-lhe um
pontapé na bunda! Azar do Domingos. O juiz não ouviu o palavrão. Mas viu com o
pontapé, aliás dado dentro da grande área. Imediatamente marcou um pênalti contra
o Brasil. O próprio Piola cobrou-o. Assinalou o único tento da partida. Era da
Itália o título de bicampeão mundial. O Brasil disputaria depois com a Suécia o
terceiro lugar. Conquistou-o vencendo por 4 x 3.
O campeonato do Mundo
deu imensa popularidade a Gagliano Neto. Então partiu para voos mais altos.
Atacado de uma certa megalomania, pretendeu repetir na Rádio Clube, a malograda
experiência da Rádio Transmissora em 1936. Quis aniquilar todas as demais
estações contratando os grandes artistas do momento.
Isso já em 1939, nas
vésperas de eclodir o grande conflito mundial. Era, então, o assunto que
empolgava o mundo. As conferências das grandes potências. As peregrinações de
Chamberlain, quase diárias, a Berlim. Vivia-se um clima de tensão inenarrável.
Viria a redundar na imensa tragédia que todo mundo já sabe, da qual trataremos
a seguir.
Publicado originalmente
em MURCE, Renato. Bastidores do rádio:
fragmentos do rádio de ontem e hoje. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976.
Nenhum comentário:
Postar um comentário