Bastidores do rádio, parte IV de VII: O Rádio a partir de 1939
Por Renato Murce
Seleção e transcrição:
Matheus Trunk
Como dizíamos, em 1939
a tensão nervosa nos países democráticos tomava conta de tudo e de todos. O
rádio, a par das notícias sobre o conflito procurava amenizar o ambiente.
Realizava programas os mais variados e que, de algum modo, pudesse distrair um
pouco o espírito do povo, voltado este, em grande aflição, para os
acontecimentos da Europa.
Vamos ao que chamamos a malograda tentativa de Gagliano Neto: reunir nas
Emissoras Byington & Cia. o maior cast do Brasil. Começou por contratar
Francisco Alves pela soma “astronômica” de dez contos mensais (na Rádio
Nacional ganhava cinco). Isso constituiu um fato importante. Deu até manchete
nos jornais: “Chico Viola, o cantor mais caro da América do Sul”; “Francisco
Alves contratado por 240 contos” (e contrato era de dois anos).
A seguir, contratou
Linda e Dircinha Batista, Elisinha Coelho e Silvinha Melo, Irmãs Pagãs, Gastão
Formenti, Lauro Borges e Castro Barbosa, Jorge Murad, Jesy Barbosa, Lícia
Maris, Conjunto Regional de Benedito Lacerda, Orquestrar de Fon-Fon e Os
Soldados Musicais de Napoleão Tavares (com os respectivos crooners): Juvenal
Fontes, Olga Nobre, George Fernandes...Enfim, uma loucura a que eu me opunha.
Quem mandava era ele. Ainda havia uma chama Orquestra de Salão, sob a regência
do grande maestro Arnold Glucman. Contratou mais gente, de que agora não me
lembro. A mim, como diretor artístico, competia programar aquele pessoal todo.
Fui fazendo como podia.
A orgia também durou
pouco. Os Byington eram muito ricos. Mas não queriam “jogar dinheiro fora”.
Queriam que suas estações, notadamente a principal, que era a Rádio Club, se
autofinanciassem. O departamento comercial não funcionou. Tal como acontecera
na Transmissora, à medida que os contratos iam terminando, não eram renovados.
Eram contratos de três e seis meses cada um. Só o de Francisco Alves era de
dois anos. E ele exigiu que fosse cumprido até o fim. Cada fim de mês era um
verdadeiro problema para “arranjar” os dez contos do Chico Viola. E nessa
aventura, até o próprio Gagliano “caiu fora”, ou mandaram embora, não sei bem.
Sei é que, pouco depois, ele estaria atuando na Rádio Nacional.
E já que falamos em
Gagliano e em futebol, seria injusto deixar de fazer uma referência ao pioneiro
das irradiações esportivos do Rio de Janeiro. Chamava-se Amador Santos. Era um
locutor sóbrio da Rádio Clube, de voz pausada. Irradiava uma partida de futebol
como se estivesse transmitindo uma ópera no Municipal. Mas foi o primeiro e
único durante muito tempo. Com uma tenacidade a prova de fogo. Os clubes, já
nessa época, através dos seus “cartolas”, achavam que as irradiações
prejudicavam as bilheterias, como hoje acontece com a televisão. Mas o Amador
Santos não esmorecia. Foi proibido de entrar em todos os campos de futebol nos
dias dos jogos. Mas ele inventava sempre um meio de transmiti-los: de binóculo,
de alguma casa distante, atrás de um muro, etc.
Certa vez teve a
entrada barrada no campo do Vasco, num Fla-Flu. Não teve dúvida: o estádio
ainda não estava com o círculo todo fechado. Havia por perto umas casas, de
onde se podia ver alguma coisa. Ele deu um jeito: fez a irradiação trepado no
poleiro de um galinheiro de uma daquelas casas. Entre cacarejos e outros ruídos
estranhos, a transmissão resultou num sucesso. E deu muito o que falar.
Daí por diante os
clubes modificaram as proibições. Todas as estações, então, tiveram acesso aos
estádios para a transmissão dos jogos. Isso aconteceu em meio à década de 1930.
É justo prestar-se aqui uma homenagem de gratidão e saudade ao bom Amador
Santos.
Voltemos a 1939-1940. Pudemos então, constatar que o rádio é arma de dois
gumes: espalha benefícios, mas também serve de instrumento eficaz para o que
possa haver de mais sórdido: a calúnia, a mentira, a ofensa, o desassossego.
Isso ocorreu durante todo o conflito mundial: as emissoras potentes da Europa,
ou, mais propriamente, do Eixo, se empenhavam numa campanha de desmoralização
do resto do mundo. As estações de ondas curtas eram captadas com absoluta
nitidez, em toda a parte. Isso, além das emissoras clandestinas espalhadas pelo
interior de todo o país. Tinham soldo da famigerada quinta coluna. Esta exercia
ação solerte, mas eficaz. E a favor dos bandidos sacrificavam a humanidade.
Tentavam, senão destruí-la, por impossível, pelo menos dominá-la em sua parte
sã, a democracia.
Todos nós, do rádio,
combatíamos os regimes de força que pretendiam nos aniquilar. Recebemos ameaças
terríveis da quinta coluna. Registraram-se alguns atentados: bandidos a seu
serviço. Como era triste ouvir, através das ondas curtas, as vozes de alguns
“brasileiros” na Alemanha e na Itália a serviço de Hitler e Mussolini. Uma
dessas vozes e a que mais nos chocou, foi a de um homem aqui tido como
radialista íntegro. Chegou até a dirigir a Mayrink Veiga: Felício Mastrângelo.
Soubesse depois que teve um fim melancólico. Dizem que foi morto na própria
Itália, onde trabalhava, quando nossos pracinhas ali chegaram. Mas não sei se é
verdade.
Com todos esses entraves, dificuldades e contratempos, nossa fibra não esmoreceu. Como acontecera na PRE-3 a debandada quase geral, tratei de procurar recompor as coisas. Comecei a inventar programas. Relancei alguns que já fizeram na Transmissora: “Antigamente” e “Cenas Escolares” depois se transformou em “Piadas do Manduca”. Sua história é interessante. As “Cenas” representavam uma escola “bagunçada”. A professora D. Teteca (Anamaria) sofria horrores com a indisciplina e as travessuras dos alunos: Manduca (Lauro Borges), Fedoca e Teleco, além do Coronel Fagundes (Juvenal Fontes) e Seu Ferramente (Castro Barbosa). Aderiram às aulas no desejo de “aprender” alguma coisa.
O programa era o mais
hilariante possível. Provocou uma onda enorme entre os ouvintes. A maioria
gostava. Uma minoria, onde se incluíam verdadeiras “Tetecas”, sem força moral
junto a seus alunos, deu de protestar. Dirigiram-se à Associação dos Pais de
Família. Pediam sua intervenção para a retirada do programa do ar. Estes foram
ai DIP. No dia seguinte, receberíamos aviso de que “Cenas Escolares” estavam
proibidas. Obedecemos. Comunicamos, pelo microfone, o fato aos nossos ouvintes.
Recebemos mais de mil cartas e telegramas. Além de inúmeras telefonemas de
protesto.
Vários jornalistas escreveram sobre o assunto: Paulo Roberto, Orestes Barbosa,
Caio César Pinheiro e J. Caribé da Rocha. Todos defendiam o programa. Dizem que
era até educativo. Ás respostas estapafúrdias e disparatadas, seguia-se a
necessária correção e a explicação daquilo que fora arguído.
Não desanimei:
conhecendo bem a burrice da gente do DIP, apresentei o programa transformado.
Não seria mais uma escola pública. Consistiria em reuniões semanais em casa de
uma professora aposentada. Depois do animado bate-papo, seguir-se-ia pequena
aula noturna, pondo à prova a inteligência daqueles amigos e ex-alunos. O
programa chamar-se-ia “Piadas do Manduca”. “Ah!, assim é outra coisa! Está
muito bem! Não atinge a ninguém”, disseram os “sábios” do DIP.
“Piadas do Manduca” foi
para o ar. Manteve-se durante 25 anos. Sempre obtendo os primeiros lugares nas
classificações do IBOPE. Quem fazia o papel título, Manduca, era Lauro Borges,
o maior humorista que já conheci. Convoquei-o para um outro programa. Seria o
predecessor da famosa PRK-30.
O programa se chamava
“Sorrisos Colgate”. Contava com Lauro, Castro Barbosa, Jorge Murad, Del Mundo e
eu. Possuía uma emissora clandestina a “PRK-20-ZOIO D`AGUA, 200 Velocipe na
Antonia, 500 Kilovate na onda”. Logo depois Del Mundo sairia do Rádio Clube.
Jorge Murad passaria a fazer a famosa “Pensão do Salomão”. E permaneceu no ar
muito tempo.
Estava eu muito
assoberbado de serviço (tinha que fazer, ensaiar e apresentar nove programas
por semana). Achei a dupla Lauro Borges e Castro Barbosa, pela sua
versatilidade (do Lauro principalmente), preparada para, imitando várias vozes,
fazer a PRK-20, sem a minha participação. De fato aconteceu. Os primeiros
programas ainda escrevi. Depois entreguei-lhes a incumbência total de escrever,
ensaiar e apresentar. Os dois grandes artistas se saíram muito bem. E com
grande sucesso, enquanto estiveram no Rádio Clube do Brasil. Receberam, então,
proposta bem mais vantajosa da Mayrink Veiga. Não tínhamos recursos para cobrir.
Passaram a apresentar o mesmo programa, na Mayrink. Agora com o nome de PRK-30,
uma vez que PRK-20 era o título meu e eles não poderiam usá-lo. Mais tarde,
voltariam a trabalhar comigo na Rádio Nacional. Mantivemos o PRK-30. Foi, sem
dúvida, o programa mais ouvido e comentado na época.
Na Rádio Clube do
Brasil, mesmo depois do fracasso da tentativa de Gagliano Neto, muita coisa
aconteceu. Começou pela constante mudança de “diretores gerais”. O primeiro
deles, um advogado amigo do Byington, o Dr. Ralpho Siqueira, nem sequer
assistia aos programas. Não raro, aos sábados, aparecia na caixa da emissora e
perguntava: “Quanto tem aí de dinheiro?”. E o caixa: “Tem cinco contos de
réis”. “Deixe ver...” Assinava um vale e desaparecia com o dinheiro.
Os empregados e os artistas também precisavam de “algum”. Tive, muitas vezes,
que recorrer a meu pai. Pedia-lhe dinheiro emprestado para adiantar vales aos
nossos dedicados auxiliares. Só no fim do mês, com a cobrança da parca
publicidade, é que as coisas, mais ou menos, se acertavam.
Na Rádio Clube também
surgiram muitos artistas: vinham de toda a parte tentar a vida no Rio. Nós, sem
recursos para contratá-los, encaminhávamos os mesmos para outras paragens.
Principalmente para o Cassino da Urca. Nelson Gonçalves, Marlene Jatene (a do
chapéu de palha), Ademilde Fonseca, foram alguns deles.
Apesar de todas essas
dificuldades, a Rádio Clube tinha muitos ouvintes. Podíamos constatar pela
correspondência que recebíamos. Nós nos virávamos como podíamos. Com Lauro
Borges, Castro Barbosa, Arnaldo Amaral, Manoel Reis (um bom cantor paulista),
Olga Nobre, Jorge Murad, Anamaria, Juvenal Fontes, Aniz Murad, Antônio Nobre e
Yara Jordão, conseguíamos levar ao ar os seguintes programas: “Alma do Sertão”,
“PRK-20”, “Aventuras do Félix”, “Clube do Lero-Lero”, “Piadas do Manduca”,
“Somos no Circo”, “Programa do Galã” (com Arnaldo Amaral que acabara de fazer
um filme interessante com Dircinha Batista, Ítala Ferreira, eu e Jaime Costa:
Futebol em Família). Alguns musicais também, com os poucos cantores que
dispúnhamos.
Foi aí que nasceu o
célebre “Papel Carbono”, em 1940. Mas como nasceu? Fui assistir ao filme de um
comediante famoso da época: William Haines. Dirigia ele uma estação de rádio.
Marcou um grande programa com artistas famosos, para um determinado dia. Na
hora marcada, porém, não apareceu um só dos escalados. O programa não era de
auditório. Era um estúdio fechado. Tinha que irradiar o que fora anunciado. O
comediante era um músico hábil. Resolveu apresentar o programa sozinho. Imitou
todos os artistas que faltaram. Inclusive os femininos, os instrumentistas,
etc. Foi um êxito notável.
“Bolei”, então, fazer
um programa baseado em imitações de grandes cartazes. Convoquei pelo microfone:
quem quisesse tentar a vida artística se inscrevesse para ensaio e seleção. Foi
um “Deus nos acuda”. Eu, o pianista José Maria de Abreu e o conjunto regional
de Benedito Lacerda, tivemos uma trabalheira infernal. Selecionamos os 15
primeiros, entre mais de duzentos, para apresenta-los na inauguração do
programa. Valeu a pena!
Logo no primeiro
programa conseguimos revelar para o público dois nomes. Até hoje são grandes
astros nos nossos meios artísticos: José Vasconcelos e Luiz Gonzaga. Os demais
também eram bem razoáveis como cantores, músicos, etc. Foi uma consagração!
O Dr. Alberto Byington
estava, por acaso, naquele dia no auditório da Rádio Clube. Traziam novo
diretor para substituir o Dr. Ralpho. Mesmo sendo um homem caladão e pouco
comunicativo, não se conteve: subiu ao palco para nos abraçar e felicitar.
No dia seguinte, não se
falava noutra coisa. “Bancava” eu o diretor da hipotética estação de rádio.
Tinha como secretaria “Miss Mary”. Encarnado pela radioatriz e cantora Olga
Nobre. Mas tarde, na Rádio Nacional, a Miss Mary viria a ser a artista
Teresinha Nascimento.
O locutor de
publicidade foi César de Alencar. Entrou para a Rádio Clube de forma curiosa:
foi lá procurando vender tacos para assoalho. Falou tanto e com tanto élan,
tanto desembaraço e bom timbre de voz que, me pareceu, daria um bom speaker.
Não compramos os tacos. Pergunte-lhe se não gostaria de fazer um teste.
Respondeu afirmativamente. Imediatamente foi escalado para trabalhar no horário
das 7 ás 8 da manhã, com o ordenado de 250 mil réis. Pequeno, era apenas para
ajudá-lo. Era uma oportunidade para treinar e tentar uma nova carreira. Teve
sorte. Dias depois o diretor (também por acaso) ouvi-o pelo rádio. Gostou e
autorizou a dobrar-lhe o ordenado para 500 mil réis. Para encurtar a história:
foi progredindo, progredindo. Era até assediado por outras emissoras.
No dia em que
apresentou o “Papel Carbono”, já ganhava mais do que eu. Eu ganhava quatro
contos e ele cinco. Assim começou a carreira de um homem: viria a ser depois,
com os seus programas aos sábados, na Nacional, uma verdadeira “coqueluche”
popular. Era ouvido em todo o Brasil. Havia cinemas de cidades do interior que
deixaram de dar suas vesperais, por falta de público, aos sábados. De 1940 a
1945 o rádio, apesar da guerra e do DIP, teve um desenvolvimento extraordinário.
Todas as estações se esmeravam o mais que podiam. Queriam atrair ouvintes e
angariar a publicidade. Levava então certa vantagem a Rádio Nacional, dado os
recursos que possuía.
A Mayrink tinha uma
programação humorística muito boa. Pontificavam os notáveis Antônio Maria e
Sérgio Porto. Faziam sucesso também Plácido e Cordélia Ferreira com o “Teatro
pelos Ares”.
A Rádio Educadora tinha uma boa programação musical. Destacava-se Albenzio
Perrone, cujo horário carreava para a simpática estação milhares ouvintes.
A Rádio Jornal do Brasil insistia nos seus programas de música clássica. Tinha uma grande atração: a voz magnífica do locutor Luís Jatobá (um dos melhores do Brasil). Outras, mais modestas, também trabalhavam com denodo, dentro de suas limitadas possibilidades. Na Rádio Clube do Brasil, procurávamos ser diferentes: fazíamos programas que fugissem aos padrões comuns. Com isso, granjeamos uma legião de ouvintes bem razoável. Dispúnhamos de certos horários, em que nos tornamos imbatíveis: “Alma do Sertão”, “Piadas do Manduca”, “PRK-20”, “Papel Carbono”, “Radio Teatro Leopoldo Fróes”, “Somos de Circo”. “Aventuras do Felix”, e outros. Nos horários desses programas não havia Ibope que nos derrubasse. Na Rádio Nacional podia-se ouvir, entre outros: “Instantâneos Sonoros do Brasil”, “Caixa de Perguntas” (criação de Almirante), “Dona Música”, com a José Mauro e Haroldo Barbosa, “Um milhão de Melodias”, “Cavalgata da Alegra”, “Teatro de Mistério”, “Teatro Sherlock”, “Fantasias Sonoras”, e tantos outros mais que minha memória não dá para enumerar.
Se fossem irradiados
nos horários dos nossos modestos e despretensiosos programas da Rádio Clube do
Brasil, na certa perdiam em audiência. Tanto isso era verdade que a Rádio
Nacional só encontrou uma maneira de nos vencer: convidou-nos (a mim e ao César
de Alencar) para integrar o seu cast. Ali faríamos os nossos programas. Isso
ocorreu em 1945, já depois de finda a guerra.
Por falar em guerra, o
segundo grande conflito mundial me absorvia e empolgada mais do que tudo. Vivia
em função de realizar alguma coisa de útil nesse setor. Assim, promovi várias
campanhas contra o Eixo, em prol dos nossos pracinhas. Instituí a campanha do
cigarro, que denominei a Campanha do Milhão. Audaciosamente me comprometia a
remeter para a Itália, pelo menos, um milhão de cigarros para a Força
Expedicionária Brasileira.
Outras emissoras
louvaram e seguiram a ideia, embora achando que a proposição tinha algo de
audácia.
Pois bem, em menos de
um mês só a Rádio Clube do Brasil tinha obtido cerca de 1.500.000 cigarros.
Mais do que todas as outras, que somadas conseguiram 700.000. No entanto, nunca
fui um nome popular. Nunca procurei destacar meu nome. Sempre procurei agir no
sentido de me conceituar bem com o público (a quem sempre respeitei, acima de
tudo). Se, neste livro, estou falando muito de mim, é simplesmente porque
estive presente e sempre fui um espectador atento a tudo o que ocorria no
rádio.
O rádio era para mim
vocação, mania...Sei lá. Tanto que jamais discuti contratos ou exigi aumentos
excessivos. A ponto de, depois de 50 anos de rádio (26 dos quais passados na
Rádio Nacional), tendo a atuação destacada que todos reconhecem, quis me
aposentar. Ganhava tão pouco que tive que pagar ao INPS (como autônomo: autor
teatral, corretor de publicidade, etc.) o correspondente a cinco salários
mínimos, durante dez anos, com multa, juros e correção monetária: meus
vencimentos, na Rádio Nacional, não iam além dos outros cinco. Tive que
“empinar uns papagaios” nos bancos. Mesmo depois de aposentado tive
dificuldades. Levei muito tempo para saldar.
Voltamos à Rádio Clube.
Além de fazer os programas, combatia o nazismo e o fascismo de todas as
maneiras. Certa vez resolvi ridicularizá-los. Adotei o velho aforismo latino
“Ridendo Castigat Mores”. Escrevi uma paródia da imortal peça de Júlio Dantas,
A Ceia dos Cardeais. Denominei-a O
Regabofe dos Vândalos, apresentando as figuras caricatas de Hitler,
Mussolini e Tojo (o primeiro-ministro japonês) como os pantagruélicos
personagens, e escrito quando mais crítica era a situação para o mundo livre. E
quando ninguém acreditava na vitória dos aliados...
Esse nosso trabalho
“deu pano para mangas”. O impacto foi tão grande que recebemos diversos pedidos
de cópias vindos de todo o Brasil. Muitas estações (de São Paulo e do interior
do país) transmitiam também. De tal modo a repercussão que resolvemos
publicá-lo em folhetim. Vendíamos a três cruzeiros velhos (preço mínimo; havia
muita gente que pagava mais, muito mais, até com cruzeiros). O que fosse
apurado seria, como foi, em favor da Cruz Vermelha Brasileira. A venda dos
folhetos ultrapassou a casa de 50 mil cruzeiros velhos – quantia respeitável para
a época. Entregamos tudo à benemérita instituição; o recibo deve (ou devia)
estar nos arquivos da Rádio Clube.
A par da alegria que o
sucesso nos proporcionava, tivemos alguns embaraços. A célebre e famigerada
quinta coluna. Fui ameaçado de morte. Sofri ameaça de agressão, ao voltar,
certa madrugada para casa. A agressão não se consumou. Milagrosamente, ao apoiar-se
nuns cabos de aço de uma das obras (creio que da Light) um pedaço de ferro
ficou solto na minha mão, e com ele pude enfrentar, com vantagem, os três
bandidos que me perseguiam!
O
Regabofe foi escrito em agosto de 1942. Animado pelo
sucesso, um dia, deu-me aquele “estalo”. Resolvi partir para o trabalho de
maior envergadura e seriedade em torno da guerra.
Em agosto de 1943,
ainda eram muito sombrias as perspectivas em torno do desfecho do conflito. O
Brasil (muito tarde, aliás, numa demora que causava espécie) resolvera então
dele participar. Escrevi e apresentei pelo microfone da Rádio Clube o trabalho
que considero, com orgulho, o ápice de toda a minha carreira radiofônica: “A
Epopéia do Mundo”. Era um trabalho em versos alexandrinos. A música, parte era
compilada e parte escrita especialmente pelo maestro Arnold Gluckmann (alemão
antinazista). Os personagens eram vivos ou mortos: uns reais, outros
simbólicos. Girava em torno da tragédia, jamais imaginada por alguém, que o
mundo atravessava.
A História, atônita
ante o que acontecia, vinha pedir explicações à Humanidade sobre aquilo que,
jamais, seus fatos, em milênios, registraram. O tempo tem uma terapêutica
especial para modificar as coisas e mudar conceitos. Hoje somos amigos daqueles
povos contra os quais lutamos. Se bem que jamais tenhamos lutado contra os
povos, mas contra os regimes absurdos que os dominavam. Procuramos estigmatizar
figuras sinistras. E o mal que elas representavam para o universo, incluindo
seus próprios países. Hoje há quem tenha pena do fim trágico de Mussolini.
Outros personagens, com o passar do tempo, tiveram modificados os conceitos que
deles se faziam. Exista, na França, quem queira reabilitar a memória de Pierre
Leval (traidor tristemente célebre), ao lado de Petain (figura lendária e
gloriosa da primeira grande guerra), na vergonhosa capitulação da sua pátria.
A atitude de Leopoldo,
da Bélgica, filho de Alberto I- o rei-heróis da guerra de 1914 – é, até hoje,
uma incógnita, uma nebulosa. A Rússia, era combatida por todos que se diziam
adeptos da democracia. Houve um momento em que se tornou o fiel da luta:
Hitler, temerariamente, invadiu o seu solo. Foi duramente rechaçado por
Timochenko e pelo célebre “general inverno”, que também derrotara Napoleão.
Voltemos ao dia-a-dia
do rádio em nossa terra. O trabalho era intenso. A concorrência, apesar de
fortíssima, era exercida dentro da mais rigorosa ética. Sem nada que
desabonasse a conduta dos valentes soldados da nossa radiofonia. Alguns casos
esporádicos de falta de cumprimento da palavra, de algumas escorregadelas e
ingratidões não afetavam o sem-fio brasileiro.
Os programas ganham vulto a cada dia. O rádio-teatro, principalmente, passava a
se firmar no paladar do público. Graças sobretudo aos esforços de Olavo de
Barros, de Plado Ferreira, de Vítor Costa, Floriano Faissal, inclusive o nosso.
Penso que foi nesse setor que o rádio encontrou a soma de acontecimentos
curiosos e imprevistos, que ilustram humoristicamente a sua história. Estou me
referindo ao rádio-teatro de peças integrais num só programa.
Depois é que veio a
novela tomando conta do setor. Relegou as tais peças para segundo plano. Só na
Rádio Clube, nos oito anos que lá estivemos, irradiamos mais de 200 peças. Os
originais (traduções e adaptações) deveriam constar dos arquivos daquela
emissora (hoje Mundial). Infelizmente ninguém, sabe onde se encontram.
Lembro-me de um caso
pitoresco ocorrido no drama Maria Antonieta. Inesperadamente algo obrigou-nos a
parar a transmissão. Nosso cast era pequeno. Nele brilhava intensamente o
indiscutido talento de Olga Nobre (a quem coube o papel título), cercada de
gente de boa vontade, mas pouco experiente. Por vezes, nos valíamos de algum
auxiliar para colaborar num papel pequeno, de uma ou duas falas. Nesse dia,
faltava um artista para fazer o Carrasco do drama, papel de apenas uma “fala”.
Pedi, então, ajuda a um nosso bom colega. Era locutor de voz muito grossa.
Acedeu prazerosamente. Na parte culminante do drama ele teria que responder uma
ordem de Robespierre (que tomava brutalmente os filhos da amargurada rainha).
Ordenava ele ao nosso estreante, o Xavier de Sousa: “Leve essas crianças e
execute-as imediatamente!”. O outro apenas deveria responder: “Pois não,
senhor. Cumprirei suas ordens”. Pois, inesperadamente, saiu-se com esta: “Deixa
comigo! Isso é uma galinha morta”.
É escusado acrescentar
que o programa parou. Olga Nobre, que chorava copiosamente, teve um ataque de
riso que contaminou a todos, menos a mim: fiquei furioso e encabulado. Ora,
onde se viu gíria carioca num dramalhão do século XVIII?
Nessa época tínhamos
notícia, também, da expansão do rádio nos Estados. São Paulo já começava a
promover um intercâmbio com as estações cariocas: uma espécie de permuta de
artistas. Daqui pra lá ia muita gente já famosa: Orlando Silva, Francisco
Alves, Carlos Galhardo, Sílvio Caldas, Vicente Celestino, Manezinho Araújo,
Joel e Gaúcho, e muitos mais. Enquanto que, de lá, poucos mais conhecemos do
que Isaurinha Garcia, Vassourinha, Sônia Carvalho. Alguns ainda sem cartaz,
cujos nomes não nos ocorrem no momento.
Na Rádio Teatro, sim,
São Paulo tinha uma excelente equipe, liderada por Oduvaldo Viana e mais Mário
Lago, Rodolfo Mayer, Nélio Pinheiro, Sônia Maria, Dias Gomes, Plínio Campelo,
Sagramor de Scunvero, Alcides Viana, Otávio França, etc. Enquanto aquilo brilhavam
os seus já citados. E ainda Anita Spá, Ísis de Oliveira, Zezé Fonseca, Floriano
Faissal, Celso Guimarães, Abigail Maia, Ismênia dos Santos, Paulo Gracindo, e
outros que viriam a ficar famosos depois.
O curioso é que tanto
radioatores e radioatrizes, como os locutores, mesmo os aqui radicados, na sua
maioria, eram paulistas. A começar por César Ladeira, Celso Guimarães, Aurélio
de Andrade, Nélio Pinheiro, Vítor Costa e Oduvaldo Cozzi; Heron Domingues, era
gaúcho. Nesse setores, os cariocas eram minoria.
A Rádio Nacional
desenvolvia-se de maneira curiosa. Era a Meca de todo radialista. Para
felicidade nossa (minha e do César de Alencar), depois de lutarem muito com a
audiência dos nossos programas, sem conseguir derrubá-los, fomos convidados a
sair da Rádio Clube e ingressar na PRE-8. E o convite veio na hora certa. O Sr.
Byngton, nessa época, já tinha trazido outro diretor (outra nulidade), o Sr.
Armando Bertoni, com o qual não nos identificávamos.
Para não sair, como se
diz “de mãos abanando”, arranjei por intermédio do César, um motivo para eles
nos despedirem. O César (que é um “galinho de briga”), sei lá por que,
“embolou” com o novo diretor. Solidarizei-me com ele. Fomos postos na rua. Fui
devidamente indenizado: uma “micharia” 25 mil cruzeiros velhos!
Publicado originalmente em MURCE, Renato. Bastidores do rádio: fragmentos do rádio de ontem e hoje. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976.
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