domingo, 23 de maio de 2021

ADONIRAN, SEM RETOQUES (Playmen, setembro de 1980)

ADONIRAN, SEM RETOQUES (Playmen, setembro de 1980)

 

ADONIRAN, SEM RETOQUES

 



Por Celso Lungaretti

 

Conheci o Adoniran num escritoriozinho que a gravadora Odeon mantinha na rua Bento Freitas. Eram só dois funcionários, que aguardavam os malotes, distribuíam o material vindo da matriz e recolhiam outros tantos volumes para despachar de volta. Eu costumava passar lá e apanhar os lançamentos do mês, para fazer minhas críticas. E sempre encontrava o Adoniran, paradão, ouvindo o papo dos outros, cochilando. Ás vezes o pessoal saía e deixava o Adoniran tomando conta. E ele pacientemente esperava que alguém voltasse.

Esse escritório fechou, quando a Odeon abriu uma representação à altura em São Paulo. Mas Adoniran continuou tendo seu itinerário particular, que cumpre com a pontualidade de um empregado-modelo. Passar a manhã na rádio Eldorado, até a hora do almoço. Sair para almoçar com algum conhecido de lá, talvez o amigo Nogueira, um divulgador. Ficar meio triste quando todo mundo está com algum compromisso e ele tem que ir comer sozinho. Mas disfarçar, recusar se aparece o convite de um “estranho”. (Meu caso. Ele balançou a cabeça e disse: “Eu vou sair por aí, na direção do Arouche. Não sei nem se vou almoçar ou comer um sanduíche. Fica para outra vez”). Comparecer todas as tardes no La Barca, um boteco onde espera encontrar outro amigo o Talismã, líder do conjunto que atualmente o acompanha. E assim por diante.

Lembro-me do meu sogro, notívago e bom papo, que sempre sonhava com o que ia fazer quando se aposentasse: pesar, passear, comprar uma granja e plantar sua horte, assistir aos filmes de TV que passam à meia-noite. Afinal chegou o dia. E na manhã seguinte, lá estava ele de novo na repartição, no horário de sempre, para “bater uma caixa” com os amigos e ir junto para o bar. Nada mudou. Até hoje.

 

Você acha que eu estou com um pé na cova?

As homenagens programadas para a comemoração de seu 70º aniversário desconcertaram Adoniran, que chegou até a dizer que não as merecia, “afinal não sou nenhum João Paulo 2º, nenhum Chaplin ou presidente da república”. E, de qualquer forma, não serviram para compensar anos e anos de esquecimento. Homem às antigas, Adoniran ainda não habitou a virar notícia apenas em tempo de efeméride. Cansou-se de dar entrevistas, “o que mais posso dizer da minha vida? Já disse tudo, para todo mundo!”. E não conseguiu conter o desabafo de quem teve de lutar demais para obter um reconhecimento tardio e superficial. “Por que não me procuraram há vinte anos atrás?”.

Mas em geral esforça-se para corresponder ao clima festivo. Pergunta-lhe se ainda espera alguma coisa da vida. “Por que, você acha que eu estou com um pé na cova?”. Explico melhor: falta-lhe realizar algum sonho, uma grande meta? Aí ele dá um sorriso e mostra que continua atento ao linguajar das ruas. Sabe até a gíria da meninada: “O que vier, eu traço. Tudo bem!”.

 

“Um boêmio pobre. Filante. Bicão”.

Efeméride é a palavra-chave. Era preciso comemorar os 70 anos de Adoniran, nem que para isso se-lhe romantizasse o passado, transformando-o numa imagem ao gosto do público de agora. E já que o folclore paulistano nem de longe se compara ao da Lapa carioca ou de Vila Isabel, que tal promover Adoniran a algo assim como o estereótipo do boêmio do Bexiga?

Com um pouco de boa vontade e puxando por sua veio saudosista, conseguiram extrair de Adoniran declarações na medida para coloca-lo dentro do figurino pretendido. “Fui na Bela Vista procurar o Bexiga e não achei. Antes o pessoal sentava na calçada, agora por lá andam muito diferentes, cheias de viaduto; o Brás eu também não encontrei, as casas baixas foram embora; a Rangel Pestana também não está mais lá; o Largo da Concórdia ficou cheio de banquinhas de camelô; a Celso Garcia, onde havia o melhor carnaval do Brás, também já não existe. No Belém não achei o Largo São José com seus casarões e suas árvores. Nem a Lapa, onde não nem sinal de calma de bairro de antes. O Largo da Sé acho que venderam”. (JT, 9/8/80). A matéria fala também de suas saudades de um bar “boêmio” da Av. São João e de um bonde “boêmio” que rodava a noite inteira.

Adoniran, você foi mesmo esse boêmio que estão pintando? “Fui mas é um boêmio pobre, que ia de bar em bar, de boteco em boteco, sem dinheiro, filando bebidas dos amigos. Um boêmio bicão”.


“Só de samba ninguém vivia”.

Adoniran era capaz de registrar impressões acerca da cidade com alma de artista. É o grande cronista de São Paulo. Mas suas andanças não foram despreocupadas como as dos sambistas cariocas e sua história está longe de ser a de um boêmio. Mesmo porque seu amor pela cidade não era correspondido: ela rejeitava seu samba, só queria saber de serenatas, valsas, modinhas, boleros e tangos.

Nesta cidade de imigrantes, ciosa de suas raízes culturais alienígenas, não havia espaço para os ritmos, costumes e tradições realmente brasileiros. Adoniran testemunha: “Só de samba ninguém vivia, em São Paulo. Era pouquíssimo executado. Os sambistas daqui como a Isaura Garcia e o Vassourinha, eram obrigados a ir lá no Rio e gravar composições de autores cariocas”. Daí o seu orgulho em ter sido o grande divulgador do samba paulista, “não o iniciador, porque já existiam o Raul Torres, o Nestor Amaral, o Cacique. Mas o Rio só veio saber que se fazia samba em São Paulo quando os meus entraram lá. E aí a coisa se estendeu parta todo o Brasil”.

Até que chegasse esse reconhecimento (e mesmo depois dele), a vida de Adoniran foi tipicamente paulista, mas num aspecto pouco romântico e que as matérias louvaminhas esqueceram de registrar: o trabalho. Carreira sacrificada, árdua, difícil. E não foi por acaso que o pão nosso saiu quase sempre de suas atuações como rádioator e não da música. O clássico Trem das Onze, por exemplo, não veio de impressões deixadas por agradáveis noitadas boêmias, mas sim de observações feitas quando ia ao Circo do Batista, lá no Jaçanã, interpretar ao vivo os tipos que faziam sucesso no programa de rádio História das Malocas. “Aliás, o trem nunca foi das onze; era das oito, eu me lembro muito bem”.

 

“Não parava em emprego nenhum”

Adoniran Barbosa na verdade é João Rubinato, um dos seis filhos (três homens e três mulheres) de um casal italiano que se estabelecera em Valinhos. Tinha catorze anos quando o pai, empregado em olarias, descobriu que seria rendoso trabalhar perto da capital, onde, de quebra os filhos homens também encontrariam sua colocação. Assim, em 1924 a família se mudou para Santo André.

Adoniran tem boas lembranças da infância, “pobrinha, mas tranquila. Uma infância comum. Não miserável. Tinha tudo. Boa comidinha em casa. Com minha mãe, meu pai, tudo”. Fez até o terceiro ano primário, entregou marmitas. Já em São Paulo, passou por uma variedade enorme de empregos, sem se dar bem. Foi operário de fábrica de tecidos, serralheiro, pintor de parede, ferragista, encanador, balconista, metalúrgico, garçom. “Não parava em emprego nenhum. Fui tanta coisa que nem me lembro”.

Nas horas de folga, gostava de assistir aos ensaios das bandas de música. Até que um dia faltou o tocador de caixa e ele se oferecer para substituir, “isso lá por 1926, 28, mais ou menos. Então eu gostei tanto da coisa que comecei a estudar música. Comprei um flautim, passei a tocar o danadinho também”.


“No baralho tem um ás de ouro. Na Rádio São Paulo tem três”

Em 1932, ele veio sozinho morar em São Paulo. Logo começou a frequentar as rádios, cantando sambas em programas de calouros. No dia do animador Jorge Amaral, na rádio Cruzeiro do Sul, ganhou o primeiro prêmio, interpretando “Filosofia”, Noel Rosa, apropriada para sua voz rouquenha. Recebeu 25 mil réis e um contrato, pois teve a sorte de ser notado por Paraguassu, diretor do programa. Adotou um nome artístico que “homenageava” dois amigos: o funcionário de correio Adoniran e o sambista carioca Luiz Barbosa.

Cantou músicas alheias, com regional, nas rádios Cosmo (hoje América), São Paulo, Difusora. Em 1935, inscreveu Dona Boa (composição sua, em parceria com o pianista J. Aymberê) no concurso para o carnaval oficial da Prefeitura paulista. Ganhou o primeiro prêmio: 500 mil réis. O cheque foi descontado na Praça da Sé e o dinheiro mal deu para a farra que Adoniran e os amigos aprontaram. Ele acabou voltando a pé para casa.

Nesse mesmo concurso, o segundo lugar ficou com outro novato, o Ranchinho. E Adoniran se encontrara com essa notável dupla caipira no cast da rádio São Paulo, ainda em 1935. Foi quando saiu a primeira matéria com ele em jornal, com um título que ainda hoje repete de memória: “No baralho tem um ás de ouro. Na Rádio São Paulo tem três: Adoniran Barbosa, Ranchinho e Alvarenga”.

 

“Eu falando já era uma piada”

Um dia, Blota Jr. e o Vicente Leporace resolveram fazer uma experiência e colocaram o Adoniran num programa humorístico que eles tinham na Cruzeiro do Sul. O auditório entrou em delírio. E a partir daí a carreira de rádio-ator passou a ser sua principal ocupação, deixando a música em segundo plano até 1969, quando ele “se aposentou”.

Transferiu-se para a rádio Record em 1942, chamado pelo Otávio Gabus Mendes. Os programas foram se sucedendo: Palmolive no Palco, Escolinha Risonha e Franca (ele era o Barbosinha Maleducado da Silva), Casa da Sogra (ele interpretava vários tipos: o galã de cinema francês Jean Rubinet, o professor de inglês Richard, o cobrador de prestações Moisés Rabinovic, o chofer de táxi do Largo do Paissandu Perna Fina), Zé Conversa e Catarina (o Zé Conversa era um crioulo folgado da Barra Funda, que vestia a roupa do patrão para conquistar as empregadinhas), O Crime Não Compensa (este já sério e o Adoniran fazia sempre o criminoso).

Mas o grande sucesso foi mesmo o História das Malocas, escrito por Osvaldo Molles (o Adoniran com seu característico sotaque italiano, o chama de “Molichi”) e inspirado pelo sucesso da música Saudosa Maloca. A galeria de tipos é inesquecível: a Terezoca, o Trabucão, Panela de Pressão, Pafunça...E o principal deles, “um negro da favela, vagabundo que não faz nada”, marcaria época, interpretado por Adoniran: o Charutinho. Trata-se de mais um dos personagens curiosos baseados no carismático presidente do Corinthians, Alfredo Ignácio Trindade. (Outro deles é o político populista vivido por José Lewgoy no filme Terra em Transe, de Glauber Rocha).

O História das Malocas ficou no ar de 1954 a 1968 em dois horários: domingos ás 12,00 e sexta-feira ás 21,00. Adoniran diz que ele foi o programa humorístico de maior audiência do rádio brasileiro, graças ao talento de Molles (“Igual a esse não apareceu mais nenhum e nem vai aparecer!”). Pergunto se ele próprio, Adoniran chegava a criar alguma piada. “Eu não. E nem precisava que eu falando já era uma piada”.

 

A consagração na capital do samba

“Antigamente era mais difícil entrar e mais difícil ainda fazer sucesso. Ninguém queria nada com a gente. O elevador vazio, para artista sem nome, estava sempre lotado. E agente tinha que ficar dando em cima das gravadoras, dos cantores, dos locutores, dos diretores artísticos”. A confissão de Adoniran explica bem porque compôs de forma tão descontínua: Joga, a Chave, Malvina e Iracema em 1943; pausa até 1950, ano de Saudosa Maloca, Samba do Arnesto, Os Mimoso Colibri; novo colapso até 1956, quando suas composições antigas fazem sucesso através do Demônios da Garoa e ele se anima a uma parceria com Vinícius de Morais, Bom Dia Tristeza, que Aracy de Almeida gravou.

Finalmente, em 1964, o grande sucesso: Trem das Onze, que sem ser música carnavalesca, acabou se tornando um dos cinco sambas mais executados no carnaval do Centenário do Rio de Janeiro, valendo a Adoniran dois mil cruzeiros de prêmio e um troféu que ele exibe até hoje, com a inscrição ‘Adoniran Barbosa, campeão carioca do carnaval’. Era o coroamento de sua carreira de compositor paulista, se consagrar na capital do samba!

E depois? O justo reconhecimento, a possibilidade de gravar seu próprio LP, a aceitação de seus sambas originais, falando de tipos esquecidos do cotidiano em linguajar simples e cheio de erros de português? Nada disso. Mais um período obscuro, de vacas magras. E ele, que já atuara em cinema (inclusive em O Cangaceiro), chega até o fim dos anos 60 fazendo pontas em novelas da Tupi como Mulheres de Areia e Ovelha Negra.

 

Arnesto e a Censura ortográfica

Foi então que o produtor musical João Carlos Botezelli, o Pelão, tornou-se seu amigo e começou a corrigir as injustiças de toda uma vida. Levou Adoniran para se apresentar no Teatro Treze de Maio, foi um tremendo êxito. Conseguiu que ele gravasse seu primeiro LP na Odeon, em 1975. Dá-se o episódio pitoresco de colocar nesse disco, onde estão reunidos seus grandes sucessos, o Samba do Arnesto, porque um decreto oficial proibia o mau uso do vernáculo nos veículos de comunicação.

O professor Antônio Cândido sai em defesa de Adoniran, na contracapa: “Já tenho lido que ele usa uma linguagem misturada de italiano e português. Não concordo. Da mistura, que é o sal de nossa terra, Adoniran colheu a flor e produziu uma obra radicalmente brasileira, em que as melhores cadências do samba e da canção, alimentadas inclusive pelo terreno fértil das Escolas, se aliaram com naturalidade às deformações normais de português brasileiro, onde Ernesto vira Arnesto, em cuja casa nóis fumo e não encontremo ninguém, exatamente por todo esse país”.


“Nós ganha poco, mas nóis si diverti”

Mais um LP em 1976. E um novo hiato até agora, quando saiu o disco de seus 70 anos, em meio a todas as festividades programas pela EMI-Odeon. Um sucesso certo, a julgar por sua qualidade, pela repercussão da data e pelo peso dos convidados (Clementina de Jesus, Clara Nunes, Carlinhos Vergueiro, Djavan, Elis Regina, Gonzaguinha, MPB 4, etc).

E depois? Quanto tempo levará até que o público recorde novamente esse que é um dos mais sensíveis e humanos retratistas do cotidiano? Meses, anos? Não importa. Adoniran seguirá mantendo seus rituais diários, resistindo obstinadamente à velhice e à acomodação. Continuará se apresentando pela periferia e pelo interior, em faculdades, escolas, prefeituras, entusiasmado com o público jovem que conquistou. “Até a criançada já conhece!” – afirma, orgulhoso. Não importa que volte dessas excursões exausto, desabe na cama e permaneça o dia e a noite toda recuperando as forças. E se alguém lhe perguntar se gosta da vida que leva, decerto ele responderá sinceramente que sim, talvez até acrescentando sua frase célebre: “Nóis ganha poco, mas nós si diverti”.


Publicado originalmente na revista “Playmen” em outubro de 1980

2 comentários:

Alex B disse...

Obrigado por resgatar essa joia. O texto combina à perfeição elegância e simplicidade de um modo quase extinto no péssimo jornalismo contemporâneo. E a história de Adoniran...Por mais que se leia e releia narrativas diferentes a respeito, ela sempre comove, causa aperto no coração e parece ser uma síntese da vida desditosa de tantos brasileiros, sempre faz vibrar algo dentro de nós.
P. S. : uma confissão de culpa. Acesso seu blog regularmente e quase nunca comento...Parabéns e siga firme em resgatar a memória da cultura deste país(?).

ADEMAR AMANCIO disse...

Aquele ábum que tem Elis,Clara e MPB4 é fantástico.