ADONIRAN, SEM RETOQUES (Playmen, setembro de 1980)
ADONIRAN, SEM RETOQUES
Por Celso Lungaretti
Conheci o Adoniran num
escritoriozinho que a gravadora Odeon mantinha na rua Bento Freitas. Eram só
dois funcionários, que aguardavam os malotes, distribuíam o material vindo da
matriz e recolhiam outros tantos volumes para despachar de volta. Eu costumava
passar lá e apanhar os lançamentos do mês, para fazer minhas críticas. E sempre
encontrava o Adoniran, paradão, ouvindo o papo dos outros, cochilando. Ás vezes
o pessoal saía e deixava o Adoniran tomando conta. E ele pacientemente esperava
que alguém voltasse.
Esse escritório fechou,
quando a Odeon abriu uma representação à altura em São Paulo. Mas Adoniran
continuou tendo seu itinerário particular, que cumpre com a pontualidade de um
empregado-modelo. Passar a manhã na rádio Eldorado, até a hora do almoço. Sair
para almoçar com algum conhecido de lá, talvez o amigo Nogueira, um divulgador.
Ficar meio triste quando todo mundo está com algum compromisso e ele tem que ir
comer sozinho. Mas disfarçar, recusar se aparece o convite de um “estranho”.
(Meu caso. Ele balançou a cabeça e disse: “Eu vou sair por aí, na direção do
Arouche. Não sei nem se vou almoçar ou comer um sanduíche. Fica para outra
vez”). Comparecer todas as tardes no La Barca, um boteco onde espera encontrar
outro amigo o Talismã, líder do conjunto que atualmente o acompanha. E assim
por diante.
Lembro-me do meu sogro,
notívago e bom papo, que sempre sonhava com o que ia fazer quando se
aposentasse: pesar, passear, comprar uma granja e plantar sua horte, assistir
aos filmes de TV que passam à meia-noite. Afinal chegou o dia. E na manhã
seguinte, lá estava ele de novo na repartição, no horário de sempre, para
“bater uma caixa” com os amigos e ir junto para o bar. Nada mudou. Até hoje.
Você
acha que eu estou com um pé na cova?
As homenagens
programadas para a comemoração de seu 70º aniversário desconcertaram Adoniran,
que chegou até a dizer que não as merecia, “afinal não sou nenhum João Paulo
2º, nenhum Chaplin ou presidente da república”. E, de qualquer forma, não
serviram para compensar anos e anos de esquecimento. Homem às antigas, Adoniran
ainda não habitou a virar notícia apenas em tempo de efeméride. Cansou-se de
dar entrevistas, “o que mais posso dizer da minha vida? Já disse tudo, para
todo mundo!”. E não conseguiu conter o desabafo de quem teve de lutar demais
para obter um reconhecimento tardio e superficial. “Por que não me procuraram
há vinte anos atrás?”.
Mas em geral esforça-se
para corresponder ao clima festivo. Pergunta-lhe se ainda espera alguma coisa
da vida. “Por que, você acha que eu estou com um pé na cova?”. Explico melhor:
falta-lhe realizar algum sonho, uma grande meta? Aí ele dá um sorriso e mostra
que continua atento ao linguajar das ruas. Sabe até a gíria da meninada: “O que
vier, eu traço. Tudo bem!”.
“Um
boêmio pobre. Filante. Bicão”.
Efeméride é a
palavra-chave. Era preciso comemorar os 70 anos de Adoniran, nem que para isso
se-lhe romantizasse o passado, transformando-o numa imagem ao gosto do público
de agora. E já que o folclore paulistano nem de longe se compara ao da Lapa
carioca ou de Vila Isabel, que tal promover Adoniran a algo assim como o
estereótipo do boêmio do Bexiga?
Com um pouco de boa
vontade e puxando por sua veio saudosista, conseguiram extrair de Adoniran
declarações na medida para coloca-lo dentro do figurino pretendido. “Fui na
Bela Vista procurar o Bexiga e não achei. Antes o pessoal sentava na calçada,
agora por lá andam muito diferentes, cheias de viaduto; o Brás eu também não
encontrei, as casas baixas foram embora; a Rangel Pestana também não está mais
lá; o Largo da Concórdia ficou cheio de banquinhas de camelô; a Celso Garcia,
onde havia o melhor carnaval do Brás, também já não existe. No Belém não achei o
Largo São José com seus casarões e suas árvores. Nem a Lapa, onde não nem sinal
de calma de bairro de antes. O Largo da Sé acho que venderam”. (JT, 9/8/80). A
matéria fala também de suas saudades de um bar “boêmio” da Av. São João e de um
bonde “boêmio” que rodava a noite inteira.
Adoniran, você foi
mesmo esse boêmio que estão pintando? “Fui mas é um boêmio pobre, que ia de bar
em bar, de boteco em boteco, sem dinheiro, filando bebidas dos amigos. Um
boêmio bicão”.
“Só de samba ninguém vivia”.
Adoniran era capaz de
registrar impressões acerca da cidade com alma de artista. É o grande cronista
de São Paulo. Mas suas andanças não foram despreocupadas como as dos sambistas
cariocas e sua história está longe de ser a de um boêmio. Mesmo porque seu amor
pela cidade não era correspondido: ela rejeitava seu samba, só queria saber de
serenatas, valsas, modinhas, boleros e tangos.
Nesta cidade de
imigrantes, ciosa de suas raízes culturais alienígenas, não havia espaço para
os ritmos, costumes e tradições realmente brasileiros. Adoniran testemunha: “Só
de samba ninguém vivia, em São Paulo. Era pouquíssimo executado. Os sambistas
daqui como a Isaura Garcia e o Vassourinha, eram obrigados a ir lá no Rio e
gravar composições de autores cariocas”. Daí o seu orgulho em ter sido o grande
divulgador do samba paulista, “não o iniciador, porque já existiam o Raul
Torres, o Nestor Amaral, o Cacique. Mas o Rio só veio saber que se fazia samba
em São Paulo quando os meus entraram lá. E aí a coisa se estendeu parta todo o
Brasil”.
Até que chegasse esse
reconhecimento (e mesmo depois dele), a vida de Adoniran foi tipicamente
paulista, mas num aspecto pouco romântico e que as matérias louvaminhas
esqueceram de registrar: o trabalho. Carreira sacrificada, árdua, difícil. E
não foi por acaso que o pão nosso saiu quase sempre de suas atuações como
rádioator e não da música. O clássico Trem
das Onze, por exemplo, não veio de impressões deixadas por agradáveis
noitadas boêmias, mas sim de observações feitas quando ia ao Circo do Batista,
lá no Jaçanã, interpretar ao vivo os tipos que faziam sucesso no programa de
rádio História das Malocas. “Aliás,
o trem nunca foi das onze; era das oito, eu me lembro muito bem”.
“Não
parava em emprego nenhum”
Adoniran Barbosa na
verdade é João Rubinato, um dos seis filhos (três homens e três mulheres) de um
casal italiano que se estabelecera em Valinhos. Tinha catorze anos quando o
pai, empregado em olarias, descobriu que seria rendoso trabalhar perto da
capital, onde, de quebra os filhos homens também encontrariam sua colocação.
Assim, em 1924 a família se mudou para Santo André.
Adoniran tem boas
lembranças da infância, “pobrinha, mas tranquila. Uma infância comum. Não
miserável. Tinha tudo. Boa comidinha em casa. Com minha mãe, meu pai, tudo”.
Fez até o terceiro ano primário, entregou marmitas. Já em São Paulo, passou por
uma variedade enorme de empregos, sem se dar bem. Foi operário de fábrica de
tecidos, serralheiro, pintor de parede, ferragista, encanador, balconista,
metalúrgico, garçom. “Não parava em emprego nenhum. Fui tanta coisa que nem me
lembro”.
Nas horas de folga,
gostava de assistir aos ensaios das bandas de música. Até que um dia faltou o
tocador de caixa e ele se oferecer para substituir, “isso lá por 1926, 28, mais
ou menos. Então eu gostei tanto da coisa que comecei a estudar música. Comprei
um flautim, passei a tocar o danadinho também”.
“No baralho tem um ás de ouro. Na Rádio São Paulo tem três”
Em 1932, ele veio
sozinho morar em São Paulo. Logo começou a frequentar as rádios, cantando sambas
em programas de calouros. No dia do animador Jorge Amaral, na rádio Cruzeiro
do Sul, ganhou o primeiro prêmio, interpretando “Filosofia”, Noel Rosa,
apropriada para sua voz rouquenha. Recebeu 25 mil réis e um contrato, pois teve
a sorte de ser notado por Paraguassu, diretor do programa. Adotou um nome
artístico que “homenageava” dois amigos: o funcionário de correio Adoniran e o
sambista carioca Luiz Barbosa.
Cantou músicas alheias,
com regional, nas rádios Cosmo (hoje América), São Paulo, Difusora. Em 1935,
inscreveu Dona Boa (composição sua,
em parceria com o pianista J. Aymberê) no concurso para o carnaval oficial da
Prefeitura paulista. Ganhou o primeiro prêmio: 500 mil réis. O cheque foi
descontado na Praça da Sé e o dinheiro mal deu para a farra que Adoniran e os
amigos aprontaram. Ele acabou voltando a pé para casa.
Nesse mesmo concurso, o
segundo lugar ficou com outro novato, o Ranchinho. E Adoniran se encontrara com
essa notável dupla caipira no cast da rádio São Paulo, ainda em 1935. Foi quando
saiu a primeira matéria com ele em jornal, com um título que ainda hoje repete
de memória: “No baralho tem um ás de ouro. Na Rádio São Paulo tem três:
Adoniran Barbosa, Ranchinho e Alvarenga”.
“Eu
falando já era uma piada”
Um dia, Blota Jr. e o
Vicente Leporace resolveram fazer uma experiência e colocaram o Adoniran num
programa humorístico que eles tinham na Cruzeiro do Sul. O auditório entrou em
delírio. E a partir daí a carreira de rádio-ator passou a ser sua principal
ocupação, deixando a música em segundo plano até 1969, quando ele “se
aposentou”.
Transferiu-se para a
rádio Record em 1942, chamado pelo Otávio Gabus Mendes. Os programas foram se
sucedendo: Palmolive no Palco, Escolinha Risonha e Franca (ele era o
Barbosinha Maleducado da Silva), Casa da
Sogra (ele interpretava vários tipos: o galã de cinema francês Jean
Rubinet, o professor de inglês Richard, o cobrador de prestações Moisés
Rabinovic, o chofer de táxi do Largo do Paissandu Perna Fina), Zé Conversa e Catarina (o Zé Conversa
era um crioulo folgado da Barra Funda, que vestia a roupa do patrão para
conquistar as empregadinhas), O Crime
Não Compensa (este já sério e o Adoniran fazia sempre o criminoso).
Mas o grande sucesso
foi mesmo o História das Malocas,
escrito por Osvaldo Molles (o Adoniran com seu característico sotaque italiano,
o chama de “Molichi”) e inspirado pelo sucesso da música Saudosa Maloca. A
galeria de tipos é inesquecível: a Terezoca, o Trabucão, Panela de Pressão,
Pafunça...E o principal deles, “um negro da favela, vagabundo que não faz
nada”, marcaria época, interpretado por Adoniran: o Charutinho. Trata-se de
mais um dos personagens curiosos baseados no carismático presidente do
Corinthians, Alfredo Ignácio Trindade. (Outro deles é o político populista
vivido por José Lewgoy no filme Terra em
Transe, de Glauber Rocha).
O História das Malocas ficou no ar de 1954 a 1968 em dois horários:
domingos ás 12,00 e sexta-feira ás 21,00. Adoniran diz que ele foi o programa
humorístico de maior audiência do rádio brasileiro, graças ao talento de Molles
(“Igual a esse não apareceu mais nenhum e nem vai aparecer!”). Pergunto se ele
próprio, Adoniran chegava a criar alguma piada. “Eu não. E nem precisava que eu
falando já era uma piada”.
A
consagração na capital do samba
“Antigamente era mais
difícil entrar e mais difícil ainda fazer sucesso. Ninguém queria nada com a
gente. O elevador vazio, para artista sem nome, estava sempre lotado. E agente
tinha que ficar dando em cima das gravadoras, dos cantores, dos locutores, dos
diretores artísticos”. A confissão de Adoniran explica bem porque compôs de
forma tão descontínua: Joga, a Chave,
Malvina e Iracema em 1943; pausa até 1950, ano de Saudosa Maloca, Samba do
Arnesto, Os Mimoso Colibri; novo
colapso até 1956, quando suas composições antigas fazem sucesso através do
Demônios da Garoa e ele se anima a uma parceria com Vinícius de Morais, Bom Dia Tristeza, que Aracy de Almeida
gravou.
Finalmente, em 1964, o
grande sucesso: Trem das Onze, que sem ser música carnavalesca, acabou se
tornando um dos cinco sambas mais executados no carnaval do Centenário do Rio
de Janeiro, valendo a Adoniran dois mil cruzeiros de prêmio e um troféu que ele
exibe até hoje, com a inscrição ‘Adoniran Barbosa, campeão carioca do
carnaval’. Era o coroamento de sua carreira de compositor paulista, se
consagrar na capital do samba!
E depois? O justo
reconhecimento, a possibilidade de gravar seu próprio LP, a aceitação de seus
sambas originais, falando de tipos esquecidos do cotidiano em linguajar simples
e cheio de erros de português? Nada disso. Mais um período obscuro, de vacas
magras. E ele, que já atuara em cinema (inclusive em O Cangaceiro), chega até o fim dos anos 60 fazendo pontas em
novelas da Tupi como Mulheres de Areia
e Ovelha Negra.
Arnesto
e a Censura ortográfica
Foi então que o
produtor musical João Carlos Botezelli, o Pelão, tornou-se seu amigo e começou
a corrigir as injustiças de toda uma vida. Levou Adoniran para se apresentar no
Teatro Treze de Maio, foi um tremendo êxito. Conseguiu que ele gravasse seu primeiro
LP na Odeon, em 1975. Dá-se o episódio pitoresco de colocar nesse disco, onde
estão reunidos seus grandes sucessos, o Samba
do Arnesto, porque um decreto oficial proibia o mau uso do vernáculo nos
veículos de comunicação.
O professor Antônio
Cândido sai em defesa de Adoniran, na contracapa: “Já tenho lido que ele usa
uma linguagem misturada de italiano e português. Não concordo. Da mistura, que
é o sal de nossa terra, Adoniran colheu a flor e produziu uma obra radicalmente
brasileira, em que as melhores cadências do samba e da canção, alimentadas
inclusive pelo terreno fértil das Escolas, se aliaram com naturalidade às
deformações normais de português brasileiro, onde Ernesto vira Arnesto, em cuja
casa nóis fumo e não encontremo ninguém, exatamente por todo esse país”.
“Nós ganha poco, mas nóis si diverti”
Mais um LP em 1976. E
um novo hiato até agora, quando saiu o disco de seus 70 anos, em meio a todas
as festividades programas pela EMI-Odeon. Um sucesso certo, a julgar por sua
qualidade, pela repercussão da data e pelo peso dos convidados (Clementina de
Jesus, Clara Nunes, Carlinhos Vergueiro, Djavan, Elis Regina, Gonzaguinha, MPB
4, etc).
E depois? Quanto tempo
levará até que o público recorde novamente esse que é um dos mais sensíveis e
humanos retratistas do cotidiano? Meses, anos? Não importa. Adoniran seguirá
mantendo seus rituais diários, resistindo obstinadamente à velhice e à
acomodação. Continuará se apresentando pela periferia e pelo interior, em
faculdades, escolas, prefeituras, entusiasmado com o público jovem que
conquistou. “Até a criançada já conhece!” – afirma, orgulhoso. Não importa que
volte dessas excursões exausto, desabe na cama e permaneça o dia e a noite toda
recuperando as forças. E se alguém lhe perguntar se gosta da vida que leva,
decerto ele responderá sinceramente que sim, talvez até acrescentando sua frase
célebre: “Nóis ganha poco, mas nós si diverti”.
Publicado originalmente
na revista “Playmen” em outubro de 1980
2 comentários:
Obrigado por resgatar essa joia. O texto combina à perfeição elegância e simplicidade de um modo quase extinto no péssimo jornalismo contemporâneo. E a história de Adoniran...Por mais que se leia e releia narrativas diferentes a respeito, ela sempre comove, causa aperto no coração e parece ser uma síntese da vida desditosa de tantos brasileiros, sempre faz vibrar algo dentro de nós.
P. S. : uma confissão de culpa. Acesso seu blog regularmente e quase nunca comento...Parabéns e siga firme em resgatar a memória da cultura deste país(?).
Aquele ábum que tem Elis,Clara e MPB4 é fantástico.
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