Playboy entrevista Guilherme Fontes
Uma conversa franca com o ex-galã da Globo e diretor do filme Chatô, o Rei do Brasil sobre os 20 anos
de espera pelo longa, as acusações de desvio de dinheiro público, sexo, drogas
e a maneira como foi humilhado por José Wilker
Nascido Guilherme Machado Cardoso Fontes, em Petrópolis, região serrana
do Rio, em 1967, o ator, o sétimo filho de uma família de classe média, cresceu
com a mãe. Aos 13 anos se apaixonou pela arte de interpretar e entrou na escola
de teatro Tablado. Na TV, estreou como ator na novela Ti Ti Ti, em 1985. Um ano depois, fez seu debute nos cinemas com o
longa A Cor do Seu Destino, ao lado
da atriz Norma Benguell, com quem dividiria problemas parecidos anos depois.
Vieram mais dois filmes, diversas novelas e peças de teatro de sucesso, como Eu Odeio Hamlet, que produziu e atuou ao
lado de Cláudia Abreu, com que esteve casado entre 1989 e 1994. Até que em
1994, ainda amargando a separação, veio Chatô.
Hoje, o pai de Carolina, de 10 anos, e Carlos, de 7, do segundo casamento com
Patrícia Lins e Silva, está solteiro.
Há 48 horas da estreia nacional de Chatô,
o Rei do Brasil, o ator e diretor Guilherme Fontes chegou para um almoço no
Terraço da Editora Abril, à beira do Rio Pinheiros, em São Paulo, no começo do
mês passado. Qual é a expressão do rosto de alguém que levou porrada
incessantemente ao longo dos últimos 20 anos?
Como essa pessoa reage a provocações ao longo de uma conversa? Quais são as
marcas mais evidentes que ela traz consigo depois de duas décadas ininterruptas
nas cordas? Essas eram as perguntas que passavam pela cabeça dos editores
Jardel Sebba e Marco Bezzi antes da primeira sessão da entrevista. “Vamos tomar
um vinho para relaxar”, pediu Guilherme ao chegar ao restaurante. Provocativo,
o cineasta mostrou uma autoconfiança inacreditável para quem passou os últimos
anos tendo que justificar um possível fracasso para a vida toda. Foram três
horas e meia de conversa divididas entre o encontro na Editora Abril e um
almoço tardio no restaurante Avenca, de frente para o Jardim Botânico do Rio,
três dias depois. O melhor das duas sessões você confere aqui.
Depois de tudo o que você
passou, faria igual?
Em relação ao projeto, eu não mudaria uma vírgula,
tomaria as mesmas decisões artísticas. Mas não começaria o filme sem o dinheiro
integralizado, foi aí que eu botei a bunda na janela. Eu tinha dois projetos
grandes para o Chatô. E fui captando tudo muito rápido. Passava pelas empresas,
as secretárias me adoravam, era bajulado pelos diretores. Isso resultou numa
ciumeira generalizada dos pequenos, médios e grandes produtores.
Você se cercou de pessoas erradas?
Eu não tinha sócios, e isso me fragilizou. Eu, além de
diretor, era produtor, relações públicas, era eu que dava a cara a tapa. Foi
ruim estar sozinho.
Acha que Chatô é o começou ou o fim da sua
carreira no cinema?
O começo, 100%. Pena que perdi 15 anos. Nesse tempo
podia ter feito mais dez filmes, seria milionário. E num próximo (filme), sei que tenho de encontrar uma
fonte de dinheiro segura, de procedência privada. Não posso confiar no Brasil,
me enrolei todo. Você tem que tomar o cuidado com as pessoas que assinam os
papéis pelo país.
Uma pessoa que te impediu de
captar mais dinheiro foi o (então
Ministro da Cultura no governo FHC) Francisco Weffort.
Ele é um banana, um bananão. O apelido dele é
“Wefraco”. E foi totalmente manipulado pelo sociólogo lá (FHC), aquele falso moralista que vai para a televisão para falar de
anticorrupção. O Weffort me parou.
É estranho porque você tinha
relações muito boas com a cúpula do governo. O (então ministro das Comunicações) Sérgio Motta até te ajudou a
captar dinheiro.
Com o Sérgio Motta a minha relação era excelente. Mas
aí você tinha o Fernando Henrique, um covardão com aquela pose de intelectual.
O segundo mandato dele foi um fiasco, ele se vendeu para todo mundo e eu fiquei
no meio do caminho. O Chatô era o
único filme sendo feito naquele momento, em 1999. Ele fugiu de mim.
Por que ele não queria te
receber?
Porque era um covarde. Pelo menos comigo, se portou
como um. Mas no fim, depois que provei que ele e todo mundo estavam errados,
voltou atrás. A verdade é que o Fernando Henrique acha que é a Gisele Bundchen.
Ele finge uma certa humildade que não tem.
Como assim voltou atrás?
No fim do governo, enchi tanto o saco que consegui com
que a Petrobras me financiasse parte do projeto. Mas aí já era tarde. O governo
FHC acabou e entrou o Lula. Os comunistas acharam que eu tinha olho azul demais
e me pararam mais uma vez.
Você chegou a tratar com o Gil (Gilberto Gil, primeiro ministro da Cultura
do governo Lula)?
O Gil? Só rindo. Fiquei muito triste, ele me conhece
desde criança. A Preta (Gil) foi a
minha primeira assistente do filme. Ele também foi omisso e covarde comigo, fez
aquela cara de passeio, de paisagem. Do lado dele ainda estava o assessor para
assuntos audiovisuais Manoel Rangel, quando eu o encontrei a única vez. Como
tinha uma certa intimidade com o Gil, passei um tempo no Ministério naquele
dia. De repente ouço: “Esse projeto nunca poderia ter sido aprovado”. Fiquei
muito ofendido. Pequenas coisas me ofendem demais. Olhei para o lado e
perguntei: “Você conhece o projeto, já leu alguma frase dele? Fica quieto aí
que você não sabe de nada”. Entrei para a lista negra do Rangel. E assim que
ele assumiu a Ancine (Agência Nacional de
Cinema), em 2005, me proibiu de captar. Eu estava no Cadin (Cadastro Informativo Municipal), e ele
disse que quem estava no órgão não podia mais captar, me fecharam de novo. Eu
nunca, em momento algum, estourei o orçamento.
A amizade com o Gil não
ajudou em nada?
Ele não moveu uma palha, zero, estava sempre muito
ocupado. A verdade é que as pessoas sujam as mãos no poder, e não querem que os
outros vejam que a mão está suja. O Gil estava mais interessado em colocar a
coroa de símbolo cultural do Brasil do que em entender a executividade do
processo cultural. O executor, na verdade, era o Juca (Ferreira), que depois virou ministro.
E depois do Gilberto Gil,
você foi procurar o então prefeito do Rio César Maia e a RioFilme?
A RioFilme ia me dar 1,7 milhão e só me deu 1,3 milhão,
e mesmo assim de uma maneira tortuosa, doentia. Foi de chorar, eu tinha que
lidar com o José Wilker (então
diretor-presidente da RioFilme), que era um colega de trabalho. E ele me
humilhou bastante naquela época.
Como o José Wilker te
humilhou?
É uma situação complexa, que eu nunca falei, porque ele
não está mais aqui (Wilker morreu em
abril de 2014). Quando o Cesar Maia resolveu me dar dinheiro, o Wilker
montou uma comissão de notáveis, de quase 14 pessoas. Quando o projeto foi
aprovado, ele se sentou na cadeira e também em cima do meu projeto. O Cesar
Maia enchia os cofres da RioFilme ele não me repassava. Eu tinha contrato no
tesouro e sabia que o dinheiro estava na conta. Ele me deu um pedacinho para
começar, que, na verdade, não deu para nada, eu já estava todo enrolado.
Você tinha uma relação
anterior com o Wilker?
E era maravilhosa. Foi o primeiro cara que eue chamei
para dirigir uma peça (Eu Odeio Hamlet).
Lembro eu, ele e a Cacau (Cláudia Abreu)
no Maracanã naquele dia em que caiu o mundo.
Final do Campeonato
Brasileiro de 1992, Flamengo e Botafogo?
Isso, o jogo em que a (torcida) Raça desabou. A gente estava do outro lado do estádio. Eu
lembro do Wilker com aquela cara amassada no meio daquela gente toda,
totalmente não-me-toques, e a gente entrando meio pendurado. Mas daí ele se
sentou na cadeira, ganhou uma caneta, acho que era rei. Hipócrita, falso,
mentiroso.
E os seus coleguinhas, como
se portaram?
Na verdade, teve um ser humano da classe que eu lembro
bem. Vejo uma matéria desse cara, que foi fazer um filme no exterior. Vou lendo
e, na última frase, ele diz: “É, mas aí vem o Guilherme Fontes para fazer
bobagem...”Eu fiquei muito puto, liguei para a agente dele e mandei um recado:
“Fala para o seu amigo nunca mais dirigir a palavra a mim. Quando ele estiver
caminhando no Projac, que atravesse a calçada, senão vou dar uma cabeçada no
nariz dele e ele vai ter de fazer outra plástica. Ele não sabe nada, está se
metendo em assunto que não é devia e devia lavar a boca”. Esse sujeito tem
negócios com seres humanos muito estranhos.
Uma outra pessoa disse que
você não roubou, mas que o dinheiro foi mal administrado.
Esse é outro infeliz. Um diretor meio cultuado, da
minha turma. Ele namorou e casou duas ex-mulheres minhas. E veio com esse papo.
Para mim, mal administrado é roubado, ainda mais sendo dinheiro público. O cara
é um cagão, um covarde. Eu soube depois que ele colocou o dedo na cara do Marco
Ricca dizendo que nós tínhamos acabado com o cinema nacional. O cara é um débil
mental, um drogado. E fala de mim, da minha vida, quem é o cara?
Você disse uma vez que nem
com 5 milhões, nem com 8 milhões, nem com nenhum dinheiro esse filme poderia
ser feito no Brasil. Não é natural que as pessoas pensem que exista uma certa
prepotência num sujeito, independentemente de quem for, que queira fazer um
projeto desse no Brasil?
Ninguém quer fazer (um
projeto desse tamanho), e cada um faz o que quer e o que tem capacidade
para fazer. Este filme não acabou em 2000, mas poderia ter acabado. Você tem
que entender o meu momento e a minha determinação na época. Eu estava mal, numa
fossa profunda, tinha acabado de me separar (da atriz Cláudia Abreu), estava triste. Sempre fui um ambicioso do bem,
e ambicioso no Brasil, é confundido com ladrão. Eu queria arranjar uma coisa
grande, um desafio. Esse filme nunca sairia da noite para o dia, naturalmente
levaria cinco. Quando estava no quarto ano, neguinho ficou louco porque eu ia
acabar o filme no começo de 2000. Era uma ambição de longo prazo.
Ter tirado o projeto da
antessala do Barretão (o produtor Luiz
Carlos Barreto) também complicou a sua vida? Consta que você ofereceu 150
mil dólares pelo projeto enquanto ele teria oferecido a metade.
A minha proposta era pragmática e a dele, etérea. Não
vou confirmar esse número, mas ofereci muito menos do que a obra merece.
Chegaram a falar de 1 milhão.
O Fernando Morais ficou ao
seu lado todo esse tempo?
Foi um dos únicos. Coitado. Passou anos tendo que responder
perguntas sobre Guilherme Fontes em todas as palestras. Ele me ligava para
reclamar: “Não aguento mais ter de falar de você! Quando esse filme sai?” Nossa
relação ficou cada vez mais próxima, ele é padrinho da minha filha.
Você disse que não mudaria
nada no processo do filme, mas parece que as pessoas em que você confiava te
puxaram o tapete. Podemos chamar isso de ingenuidade?
Fui muito ingênuo. Mas não posso ir para um negócio
achando que querem me foder. Ainda mais um cara que quer me dar dinheiro.
Quando percebi, o secretário audiovisual não estava nem aí para mim, se meu
filme explodisse tanto fazia. Para a Ancine também não fazia a menor diferença.
Todos acharam que o filme ia pro saco.
Mas por que fazer tudo
sozinho?
Eu não encontrei sócios, uma série de coincidências
ruins aconteceram. Meu vizinho era banqueiro e me viu reclamar no elevador.
Pediu para procura-lo. Qual o banco? Fonte-Cindam. O banco quebrou e eu com
meus míseros reais lá dentro. Quando eles sofreram a auditoria eu estava lá no
meio do furacão, na lista. E estava bem acompanhado. Meu dinheiro somava 2
milhões, tinha gente com 200 milhões. Meu processo não tinha nada e eu consegui
reverter.
Mas você foi condenado a pagar 83
milhões.
Quando você pega dinheiro público para construir uma
ponte e mostra as notas fiscais, vão perguntar onde está a ponte. Se ela não
existir, vão querer o dinheiro. Agora eu tenho filme. São pequenas discussões
que ou ter de explicar. O que é uma violência, porque venho prestando contas há
anos. Tinha de prestar contas quando o filme acabasse.
Se você tivesse de pagar 83
milhões, como faria?
Teria de pedir dinheiro para PLAYBOY, Globo, para todo
mundo. Não tenho esse dinheiro. Dei como garantia meus imóveis nas ações.
Houve uma matéria na época em que dizia que encontraram na sua empresa 600 mil
reais em notas frias, nenhum registro contábil de 1999, quando você teria
arrecadado boa parte do dinheiro...
Deixa eu te ajudar: foi um estupro. Eles organizaram
uma matéria num jornal dizendo: “Chamam a polícia! Prendam o garoto! Invadam a
casa dele! Levem Tudo!” E me pegaram com a casa desarrumada. Foram lá pedir
esclarecimentos, ver as notas. Prestação de contas só é entregue depois que o
filme acaba. Imagina, eu ainda estava me organizando contabilmente, como todo
mundo faz. Mas não, eu tinha de entregar de qualquer jeito. Eles, o sistema da
CVM (Comissão de Valores Mobiliários),
porque o Ministério não podia naquele momento me investigar. E a CVM vai lá
entender de notinhas de filme? A CVM lá entende que o maquinista mora no morro
e que eventualmente a empresa dele é fraudulenta? Não sou fraudulento, é a
empresa do pobre coitado que é. Deram a volta em todos os morros cariocas,
“essa empresa não existe”, “essa é falsa”. Sim, são procedimentos corriqueiros
no Rio de Janeiro. Se você me vende pão, eu não sei se a sua padaria paga
impostos ou não.
Você pensou na hipótese do filme dar errado? Em um plano B?
Nunca. Estava muito satisfeito com o filme.
Houve resistência de algum
ator a fazer o filme?
Nenhuma. Precisei do André (Matos), do Gabriel (Braga
Nunes) e do Marco. Foi difícil, mas não foi preciso dublar de novo, foram offs que decidi fazer depois.
Você pensou que o que
aconteceu com a Normal Benguell poderia acontecer com você? Apenas 15 pessoas
estiveram no enterro dela.
Foi uma tristeza, mataram ela. E quem acusou estava
carregando o caixão. Fiquei muito ofendido. A Norma não tinha a minha
disposição para se defender, ela nunca foi até os ministros do TCU (Tribunal de Contas da União) para isso.
Eu ligava pedindo pra ela ir até Brasília se explicar. Ela tinha feito o filme
(O Guarani, de 1997) no prazo. (Exaltado.) Os problemas dela com a
prestação de contas eram de 20,30% do total. E todo mundo sabe que o diretor
pode vir a ganhar até 10% do orçamento. E o captador tem o direito de receber
20% do orçamento. Então ela tinha esse direito! E com esse dinheiro, comprar o
apartamento dela. Porque ela ganhou! Deixa de ser público e passa a ser o
salário dela. Um dia liguei pra ela e perguntei: “Quanto você captou?” Ela
disse que tinha captado 4 milhões. Pedi para ela escrever carta de próprio
punho doando o filme para dirimir qualquer dúvida ou equívoco. Mas não
deixaram. Fiquei com muita raiva disso.
Em algum momento passou pela
sua cabeça que tudo o que estava acontecendo poderia acabar com a sua carreira
de ator?
Como sempre, tive a consciência tranquila e a segurança
de que estava fazendo um filme legal, de que estava no caminho certo, nunca
pensei isso. Ainda que o filme ficasse muito ruim, tipo: “Ele gastou esse
dinheiro todo e olha que porcaria ele fez...” Nunca achei que minha carreira ia
acabar nesse meio de caminho. Ao contrário, confesso a você que passei esses
anos todos muito constrangido de atuar.
Por quê?
Porque eu atuava apenas para ganhar dinheiro, para me
fazer vivo, me fazer presente, mostrar que a minha carreira de ator não tinha a
ver com a de diretor. O que era uma grande bobagem, porque o corpo era o mesmo.
Mas não é algo natural
trabalhar para ganhar dinheiro?
É, mas eu estava fazendo obrigado, só por causa do
dinheiro. Estava fazendo constrangido, porque tinha uma dívida de compromisso
com as pessoas que só podia cumprir se gravasse uma novela.
Você chegou a fazer coisas
que não faria normalmente?
Eu preferia não ter estado no ar esses anos todos antes
do filme ficar pronto, depois das acusações. Sempre me senti um pouco idiota me
vendo no ar, com tantos problemas do lado de fora. Com tantos compromissos
assumidos e não cumpridos. Eu parecia um galãzinho que esqueceu das coisas
importantes e dos compromissos sérios que tinha na vida para ir dar beijo em
mulher bonita.
Ao mesmo tempo, pensava nas
dívidas e lembrava que precisava fazer...
É, tinha que pensar nas dívidas, pensar no meu filme,
nos meus filhos, na minha família e nas pessoas que trabalharam para mim, e
tinha que acabar o filme. Então eu separava 60, 70% do meu dinheiro e gastava
no filme, e o resto mantinha minha vida apertada. Mas sempre muito seguro do
que estava fazendo. Ninguém entendia o porquê. “Porra, para que gastar nesse
filme?”, “Para de botar dinheiro!”, “Não tem mais por que fazer isso, acabou, o
que foi, foi, já está bom”, “Vende tudo, vende sua casa, vamos resolver”. E
nada disso eu aceitei. Tudo tinha claramente um tempo. Eu dava uns passos, mas
sabia que não ia chegar no final porque não tinha dinheiro. Era muito difícil.
Sofri muitos esses anos na calada da noite.
Em 2000 você já tinha
filmado 80% do filme e apresentado uma cópia ao Ministério da Cultura. Não teve
a tentação de terminar e entregar logo?
Eu quase apanhei do (diretor) João Emanuel Carneiro, porque ele entrou um dia na ilha de
edição com um editor, que é um grande amigo meu, e disse: “Vamos resolver com o
que tem”. Eles entraram e fizeram uma versão. Dirigiu a montagem e me mostrou.
Eu achei fabuloso, mas era um filme muito difícil, muito artístico, muito
autoral. Tinha que ter muito conhecimento da história para compreender aquilo.
Dava tesão? Dava. Mas não era o meu filme, era um arranjo. Eles queriam que eu
fingisse que estava ótimo, maravilhoso, e não estava. Isso foi em 2000.
Num mundo ideal, o cinema
brasileiro formaria uma indústria e não dependeria tanto de dinheiro público.
Você acha isso viável?
Completamente viável. Basta que nossas autoridades e
nossos financistas perceberam que o business
é altamente rentável. Cada dia mais. Há uma profusão de canais produzindo,
precisando de conteúdo. Você precisa do dinheiro público? Sim, para um primeiro
filme, talvez. Tem que existir dinheiro público para cultura dar um primeiro
empurrão. Assim como o Brasil precisa de educação, a gente precisa de formação,
da plateia e dos profissionais. A gente está muito atrasado, é um inferno. Quem
não nasceu na miséria vive com este país agarrado na miséria. Você não consegue
resolver esse problema da miséria, não resolve a educação, e nem nada. É um
horror, está tudo errado. É difícil pra caralho. A gente está uns 50 anos
atrasados.
Você chegou a entrar em
depressão nesses 20 anos?
Quando eu ia para a antessala do Wilker, tinha uma
Kopenhagen no caminho. Antes de subir, como sabia que ia esperar ali por muito
tempo, comprava 100 gramas de chumbinho (açúcar
coberto com chocolate). Isso por 30 dias. Engordei 10 quilos.
Quando você voltou para a
Rede Globo, em Estrela Guia (2001),
disse que antes estava num processo autodestrutivo. A que pontoo chegou essa
angústia? Pensou em se matar?
Jamais. Não tenho esse instinto suicida. Mas tive
noites horrorosas, minha família foi atingida. Meus irmãos passaram poucas e
boas na rua. E atrapalhou meu casamento em 100%. Talvez eu não tivesse me
separado. A minha insistência em gastar todo o dinheiro no filme, em passar
dificuldades, foi algo muito penoso. Minha família esteve do meu lado e eu
sempre estie muito claro e seguro. Eles não estavam se beneficiando desse
“roubo”. Estávamos todos fodidos, porque eu era arrimo de família, minha mãe
depende de mim.
Teve um momento em que sua
mulher te pediu para parar?
Nunca. Ela só queria entender por que o filme não
acabava. Mas a nossa relação ficou ruim. Eu dizia para ela ficar calma. Lembro
que, no começo do namoro, eu tinha juntado um bom dinheiro dos anos anteriores.
Mas pensei que (se gastasse) iam
dizer que roubei esse dinheiro com a captação. Sabe o que eu fiz? Investi tudo
no filme. Foi a grande cagada que eu fiz. Porque eu não tinha mais dinheiro
para pagar advogados. Havia muito preconceito contra mim no escalão de cima da
TV.
Seus filhos sofreram bullyng na escola?
A minha filha sofreu. Um coleguinha falou um monte de
bobagem para ela e eu perguntei qual era o sobrenome dele. Ela me deu o
sobrenome e eu descobri que era o de um ator da Globo. Expliquei para ela que o
pai daquele menino era um megabandido, que tinha sido demitido da Globo, cheio
de ranço. Esse garoto deve ter escutado o pai dele falando mal de mim e só repetiu.
Mas eu expliquei para ela tudo bem direitinho, bem didático.
Quantas vezes teve vontade
de ar uma cabeçada em alguém?
Nunca dei cabeçada em ninguém, mas adoraria.
Você sofreu hostilidade em locais públicos?
Jamais. As pessoas gostam de mim de graça, eu tenho um
público enorme que me adora. Esse assunto nosso aqui é elite, é em cima da
pirâmide. Lá embaixo eles não sabem o que está acontecendo. Eu me expus e falei
com muita convicção o que estava acontecendo. Esse personagem do Guilherme
triste, amargurado, foi criado pela imprensa. A imprensa usava fotos minhas só
com imagens de tensão, imagens feias. O tempo todo aquelas fotos soturnas.
Foram me vendendo como o vilão.
Olhando para trás, qual foi
o seu pior momento?
Foi quando esse secretário do audiovisual (Manoel Rangel) me deu as costas. Percebi
que ele estava decidido a me destruir, ou pelo menos tentar. Quando fui tentar
conversar com o cara, ele me disse literalmente: “Você é problema meu só para
2010, 2021...” Ele embaralhou o processo. O TCU sofreu pra cacete para entender
o processo.
Você disse que chegou a ficar sem
dinheiro para comer?
Passei dificuldades sérias de dinheiro. As pessoas
tripudiavam em mim quando eu falava de dinheiro. A TV Globo baixou o meu
salário, me tirou benefícios.
Chegou a tomar remédios?
Passei, a ter muitos problemas para dormir, a dormir
pouco e mal, e tomei remédios. Mas lá no fundo eu tinha uma certa
tranquilidade, porque eu não tinha culpa. Mas também não tinha grana, e sem
grana não tinha como comprar mídia. Isso me angustiava. Lancei o filme agora e
também queria ter mais mídia pra poder divulga-lo.
Você usou três expressões na
Globo News para resumir a causa dos seus problemas: “ciúme de captação”, “ciúme
de mulher” e “amores infantis”. Quando diz isso, não parece que tudo aconteceu
porque o galã não quis comer meia dúzia de moças, ou porque as comeu e largou?
Eu comi na hora errada a mulher de uns dois figurões.
As pessoas são muito pequenas, e esses problemas estão na base. Mas vou ter de
esperar 15 anos para dar nome ao santo. (Maliciosamente.)
Porra, eu era tão garotinho...Mas mesmo que soubesse (que daria merda), teria comido. Foi ótimo, um ensinamento. E
ninguém dá para ninguém de graça. Dá porque tem tesão.
Você foi um comedor?
Só antes de começar a me casar.
De levar duas, três para a
cama?
Nunca fui surubeiro. E nem gosto de traição. Dos meus
15 aos 21, fiz aquele strike antual que você faz. Ou fazem com você. Quando
você é garoto, é comum ser amante, pegar mulher (casada) insatisfeita. Depois fiquei uns dois anos nessa farra
quando me separei da Cláudia. E agora estou solteiro de novo. Estou calmo,
muito ocupado, não quero confusão, nem quero casar tão cedo. Não quero nem sair
de mão dada.
Aliás, parece que você
conhece nem a entrevistada de PLAYBOY do mês passado...
Ah, a Luana (Piovani).
Minha passagem ali foi rápida, namoramos só uns três, quatro meses. Tinha
acabado de me separar de Cláudia, em 1994. Naquela fase, passei dois anos
saindo um pouco mais, aproveitando.
Você chegou a namorar muita
gente do seu meio?
Não tantas quanto o Marquinhos Palmeira...(Risos).
Fazer teatro na
pré-adolescência foi também uma forma de encaminhar a sua iniciação sexual?
Minha iniciação sexual foi tão banal, tão simples. Era
muito novo e peguei uma empregada.
Quantos anos, uns 11, 12?
Por aí. Foi engraçado. Passei um fim de semana
transando, não sabia nada, depois fui atacado de noite, ela dizendo que eu a
tinha engravidado. Foi horrível.
Então a sua família inteira
ficou sabendo?
Até que não, ela segurou a onda.
Mas na época de galã da
Globo deve ter sido uma festa, não?
Essa situação de galã é tão relativa, depende muito da
Globo. Eles passam um tempo usando um ator, depois acabam com a imagem dele. E
eu sempre tive muito medo de ficar o tempo todo no ar, acho terrível que as
pessoas tenham de olhar para a cara de um mesmo ator a todo momento. Eu tinha
medo de que isso acontecesse comigo. Eu não tinha pressa, trabalhava com
parcimônia, não acho que a carreira do ator é imediata. Eu sempre fui muito
inquieto, já era produtor de teatro.
Mas não houve deslumbramento
no auge do sucesso, na primeira metade dos anos 1990?
Não, sempre fui muito centrado. Não em sinto mais ou
menos porque tenho mais ou menos sucesso. Eu sempre batalho muito. Por exemplo,
quando fiz Bebê a Bordo (1988), foi um sucesso do cacete. Era uma
linguagem político-sexual libertária e exacerbada, porque naquele momento
estávamos na metade do governo (José)
Sarney e ele havia perdido o controle do país. O Roberto Marinho chegou a lugar
para mandar a gente pegar mais leve, porque a novela estava muito pesada para o
horário das sete. Aquilo foi demais na época. Agora, antes disso eu já tinha
vivido coisas incríveis, porque já tinha passado pelo cinema. Toda a minha
base, de concentração, de valorização do meu trabalho, teve origem no teatro e
no cinema. A televisão é uma consequência. Lembro que eu dizia: “O que eu
prefiro, prestígio ou popularidade? Prestígio é mais legal!” Com prestígio você
vive melhor, as pessoas começam a te chamar pelo seu nome, não pelo nome do
personagem. A televisão populariza, vira uma coisa meio varejão, uma coisa
gigantesca. Você perde um pouco o controle do objeto, da obra.
Como ator, você também tem
fama de ser um cara questionador. Tem uma história, por exemplo, de você teria
chegado às vias de fato com o diretor Paulo Ubiratan. É verdade?
Foi a única vez. Não, foram duas vezes, com o Ubiratan
e com o (também diretor) Herval
Rosano. Tenho horror a grosseria, a falta de educação, e reajo, seja comigo ou
com a pessoa ao meu lado. Cheguei atrasado a uma gravação, e os atores nunca
são responsáveis pelos atrasos, é sempre a produção, todo mundo sabe disso. O
diretor acha que aquele dia é dele. Há uma disponibilidade geral de todo mundo
em função daquele deus que se chama diretor, e acho isso uma babaquice. Nesse
dia, cheguei atrasado uns 10, 15 minutos. Nada que não se recuperasse com o que
eu podia dar no set. Tem atores que repetem e atores que fazem direto, e eu sempre
fui um dos que fazem direto. Aí vi uns caminhões indo embora e alguém me disse:
“O Ubiratan cancelou a gravação por sua causa, disse que você é um idiota, vai
pedir a sua cabeça para a Globo, ai direto no Mário Lúcio (Vaz)”. “Minha cabeça? Não vai, não...” Dei a volta, peguei meu
carro, cheguei na sala do Mário e o Ubiratan não tinha chegado ainda. Ele
entrou e começou a me xingar. Eu falei: “Vai se foder, vai tomar no cu, está
falando comigo desse jeito por quê?”.
Alguém além de vocês
presenciou essa cena?
Não, estávamos só nós dois e a secretária do Mário na
época. Depois a gente ficou amigo. Com o Herval, ele era um homem muito bruto.
Ele fez duas comigo. Um dia estava fazendo uma cena dentro d`água naquele canal
nojento da Barra. A novela era Gente Fina
(1990). No meio daquela lama, naquele nojo, e eu senti que ele estava se
divertindo comigo boiando. Quando ele errou duas vezes, eu fui embora. Jamais
faria isso se não percebesse que ele estava tirando onda com a minha cara. A
outra foi quando cheguei com uma camiseta, ele olhou para ela e rasgou no meu
peito. Porra, eu tomei um susto...
Por que a Globo te demitiu?
Contei pra Marluce (Dias,
diretora-geral da Globo entre 1998 e 2002) que tinha acabado de contratar o
(Francis Ford) Copolla para o filme.
Ela estava criando a Globo Filmes na época. Tinha uma visão de que os atores da
Globo não tinham que ir para a TV a cabo, porque iam disputar com a Globo, Uma
visão distorcida de quem não era do ramo. A minha captação era fabulosa. E ela
tinha um assessor poderoso que ficava na minha cola prometendo diversas coisas na
Globo Filmes. Na verdade, ele estava chupando informações de mercado. Aí eles
armaram para mim. Uma autora me chamou para fazer uma novela e eu disse que não
gostaria porque já tinha aparecido muito no ano anterior. Me disseram que iriam
me demitir porque eu não aceitava participar da novela. Aí aceitei um
papelzinho em outra novela só para quebrar o contrato. Uma coisa que nunca vou
esquecer é a Marluce ligando na minha casa para pechinchar a grana da minha
rescisão. Um papelão, um vexame. Uma pessoa que lidava com milhões.
A multa era alta?
Era um dinheirinho. Equivalente a uns 600 mil reais.
Logo em seguida eu contratei o Coppola e estruturei a empresa (a Zoetrope Brasil, filial da americana)
muito rápido. Do dia que ela me demitiu, sete meses depois a filial da Zoetrope
estava instalada com quadros, fibra óptica, tudo muito profissional. Eu já
estava atendendo atendendo um monte de filmes nacionais. Eu tinha um pró-labore
pequeno daquilo tudo e conseguia viver. Não tenho ambição de ser milionário. Prefiro
gastar.
Como o Coppola entrou no
projeto?
Só o roteiro é em parceria com o Coppola. Mas eles (a Zoetrope, produtora de Coppola) vieram
com um orçamento de 47 milhões de dólares na época para a produção do longa, e
eu fiquei muito assustado. Só tinha seis, que já era uma enorme quantia para
cá. O governo ameaçou tirar meus 6 milhões de reais. Primeiro tentaram tirar o
dinheiro, depois quiseram tirar o filme.
O Coppola veio ao Brasil
mais para se divertir do que para fazer negócio?
Ele veio me conhecer, mas também tratar do meu filme.
No último dia, antes dele ir embora, eu brinquei: “Olha, eu preciso te levar
num banco”. Ele me olhou meio bravo, mas botou um terno e foi comigo até o
banco. Mas ele estava como uma espécie de padrinho, abençoando nossos passos,
olhando com carinho para tudo isso. Ele tinha paixão pelo Brasil. E aí, de
repente, o brasileiro vem com grosseria para cima dele, dizendo que ele tinha
me vendido equipamento usado, uma blasfêmia...
Qual foi a melhor coisa de
ter ficado amigo do Coppola? Tomar vinhos dele?
Eu passei um Natal com a equipe dele. Gravei tudo o que
ele me disse. Entre outras dicas, no começo, uma que eu não segui: “Você não
pode produzir o filme que dirige, porque abre todas as concessões e perde
muito. Vai todo mundo olhar para você achando que é um saco de dinheiro”. E
aconteceu mesmo.
Quando você voltou para a TV
Globo, em 2001, disse que estava cansado e precisava trabalhar. Foi isso mesmo?
Eles me compraram, me deram um dinheiro grande para
fazer Estrela Guia e compraram o meu
filme. E eu fui com essa condição para lá. Mas disse para eles que achava
curioso eles terem me tirado das páginas policiais de O Globo para me colocar numa trama de príncipe e princesa, com
tanta rapidez e na maior facilidade.
Você sentiu uma certa
hostilidade na sua volta à Globo?
Vou te contar uma história. Uma vez eu fui para
Brasília acompanhar a posse do ministro Arthur Virgílio. Levei comigo o Walmor
Chagas e a Tônia Carrero. O Walmor virou para mim e disse: “Você está parecendo
o Frank Sinatra, uma coisa meio mafiosa”. Porra, eu não tinha aquela grana,
aquela voz. O ser humano tem um fetiche pelo crime. Achavam que eu tinha pegado
milhões.
Foi uma derrota pra você
voltar para a Globo?
Foi uma concessão. Uma derrota e uma vitória. Eu não
tinha que ter voltado. Eles tinham que ter pago o filme e eu ter concluído. Até
como uma maneira de eles corrigirem a imagem que o jornal deles fazia de mim. É
muito estranho uma empresa que cuida de sua imagem te detonar em paralelo.
Mesmo em nome da liberdade de imprensa. Quando eles quiseram promover a Giulia
Gam, fizeram um Globo Repórter para
ela. Mas eu tive uma compensação financeira e a compra do filme.
Qual é a tua relação com a
TV Globo hoje?
A única relação que tinha com eles era entregar o filme.
Adoraria voltar para lá, trabalhar, encontrar os amigos.
Seus próximos projetos no
cinema vão tratar de surfe, protestantismo e UPP (Unidade de Polícia Pacificadora). São coisas que dizem respeito à
sua vida?
UPP diz muito porque moro do lado da Rocinha, e sempre
me preocupei como seria aquela favela sem líder. O líder estava preso, aqueles
200 homens, a guerra entre eles, as famílias deles, como é que eles estão...
Você já chegou a passar por
algum aperto na favela?
Passei várias vezes bem no meio dos bandidos. E eles
com armas gigantescas no meio da rua, parecia que eu estava em Beirute.
Você tinha medo?
Eles sempre me respeitaram, eles conhecem o meu
personagem, o que é muito louco. Um dia entrei correndo na favela com o carro,
estava meio desligado, e entrou um bandido na minha frente com a arma, batendo
no capô do carro. E eu: “Caralho, morri!” Abri a janela rapidinho e, quando ele
me viu, falou: “Oh, chefinho, o que é isso...”
Ele ia te assaltar e viu que
era você?
Não, ele estava puto porque eu estava correndo muito
rápido dentro da favela. Hoje em dia a coisa melhorou muito com a UPP, não tem
mais aquela coisa dos caras no meio da rua, isso acabou. Não sei se eles estão
pelos becos, mas na rua principal não estão mais.
A cocaína chegou a fazer
parte da sua vida?
Nunca, jamais. Não há nada pior que uma ressaca de
cocaína.
Mas você já teve as suas
experiências?
Já. Mas nunca deixei isso tomar conta da minha vida.
Nunca comprei...
Teve alguma droga, ilegal ou
legal que chegou a te incomodar?
Uma vez eu tomei esse ecstasy, uma coisa horrorosa.
Primeiro que ele tinha o tamanho de um Cebion. Segundo que começou a me dar uma
tremedeira nas pernas, achei que fosse morrer mesmo naquele momento. Depois foi
legal, mas acho que mais por causa do álcool que eu tinha tomado. Mas aquilo
deu um revertério em mim que achei muito estranho, muito estranho.
Foi uma vez só?
Uma vez para nunca mais. E coisas como LSD, acidinho,
balinha, essas eu nunca fiz.
Nos momentos mais difíceis,
você não usou álcool e drogas para fugir dos problemas?
Nunca. Zero. Não me afoguei no álcool para curar as
mágoas. Bebo meu drinque, meu vinhozinho.
Mas o que você fez para
curar as mágoas?
Impublicável! (Risos.)
Publicado originalmente na revista “Playboy” em
dezembro de 2015
Um comentário:
Like
Postar um comentário