MALOCA ADENTRO
Por Valter Krausche
Seleção e transcrição:
Matheus Trunk
Adoniran e os Demônios da Garoa, 1956 |
Muitos gestos
transportam aos perigos. Rápidos, fragmentos, aleatórios. Do outro lado da rua
brilham as novidades. O olho obriga-se aos detalhes. O novo, o moderno, num
piscar de olhos. As passagens, os automóveis, os ônibus, os caminhões. Motores,
buzinas. Os anos 20/30: Berlim, o centro do espetáculo, dos costumes, da
cultura, da política. Paris. Mas o Rio de Janeiro já estava “tornando-se
inabitável”. “Gonorréia? Injeção King” Fichas na caixa. O cafezinho tomado no
balcão, em pé. Não mais nas cômodas mesinhas. O horário comercial. Os andares
sobem ainda mais. Os joelhos à mostra, praias, maiôs. O crediário. O crack da Bolsa de Nova Iorque. O café em
baixa.
Em 1931, Com que Roupa?, samba de Noel Rosa,
vendia 15.000 discos. 5% da população do país possuíam vitrola. Crescimento e
crise: São Paulo começava a não poder parar. 1930: 34.922 construções. “Bairros
Jardins” versus antigas “vilas operárias” e novas periferias. O Mercado Central
com seus vitrais góticos (1933). O estádio do Pacaembu (1935/38). Os viadutos do
Chá, Major Quedinho, Martinho Prado, a Avenida 9 de Julho, a Biblioteca. Já
“não pode parar”: 1941, 3.000 ônibus, 500 bondes, 30.000 veículos a motor,
4.000 fábricas, 1.400.000 habitantes, milhares de nordestinos cansados.
Alargam-se os espaços e os perigos. Uma grande mistura, desigual e combinada.
Vozes diversas do mosaico cultural: 30% de estrangeiros e seus filhos.
Italianos, sírio-libaneses, orientais e outros que chegavam. A cidade se
multiplica, acolhendo/matando/renascendo seus novos filhos. Cresce para os
lados, manca, incontrolável, periférica.
O disco e o rádio
desenvolveram-se com a grande cidade. O rádio, que na década de 20 iniciava-se,
no Brasil, como amador e com uma programação erudita, mudava de conduta a
partir dos anos 30: a música chamada “folclórica”, tida como exótica, e ao
mesmo tempo inferior, passava a ser definida como popular e a ocupar um espaço
cada vez maior nas ondas do rádio.
No ano de 1932, com a
legislação da publicidade radiofônica, entrava-se na fase da profissionalização
e a popularização do rádio. No Rio de Janeiro despontavam a Rádio Sociedade, a
Rádio Clube do Brasil, a Mayrink Veiga, a Philips e a Educadora. Em pouco tempo
o rádio formaria com a imprensa uma certa composição amorosa, muitas vezes
extremamente íntima: em 1935, o Jornal do
Brasil criava a sua emissora; o jornal O
Globo controlava a Transmissora do Rio de Janeiro, através de um contrato
com a RCA Victor, antiga proprietária. Em 1936, era a vez da Editora A Noite:
três soadas de gongo e logo depois, pela primeira vez, ecoava a voz que ficaria
famosa: “Alô, alô Brasil!” – nascia a Nacional do Rio de Janeiro (PRE-8), que
em 1940 seria encampada pelo governo Getúlio Vargas (Estado Novo, 1937-1945).
Em São Paulo, foi a
Tupi (PRG-2) que surgiu “associada”. Assis Chateubriand fundava, em 1937, “A
Mais Poderosa”, unindo rádio e jornal (“Diários Associados”) e com o tempo
também inaugurando-a no Rio. Naquele momento, já se destacava como líder de
audiência da Record, a primeira a constituir um cast fixo no país, aquela que organizou a cadeia e emissoras
paulistas em defesa da Revolução de 1932. Nos anos 30, além da Record e da
Tupi, São Paulo contava com várias emissoras: América, Bandeirantes, Cruzeiro
do Sul, Cultura (“O Palácio do Rádio”, na Avenida São João), Difusora,
Educadora e São Paulo. Em 1941, quando Adoniran Barbosa estreava na Record, a
cidade comportava dez emissoras de rádio e setenta cinemas e teatros. Com
avenidas e viadutos sendo centro com suas periferias, favelas e malocas, sob
uma suposta e poética garoa londrina, era São Paulo, moderna.
O rádio chamou e eles
vieram. O rádio selecionou: cantores de rua e circo, maestros estudados,
“maestros de assobio”, vendedores, atores, aventureiros, intelectuais. Primeiro
os estúdios, depois os programas de auditório, principalmente durante os anos
40 e início dos 50. E os grandes nomes da música popular e da comédia em
desfile. O humor daquela música muitas vezes próximo dos programas
humorísticos: Lamartine Babo, durante a década de 30, Jararaca e Ratinho,
Adoniran Barbosa.
Até aos anos 50, mais tardar até os 60, alguns programas humorísticos radiofônicos notabilizaram-se. No Rio de Janeiro, na Rádio Nacional, Tancredo e Tancrado, de Giuseppe Chiaroni, PRK-30, de Lauro Borges e Castro Barbosa, e Edifício Balança mais não Cai, de Max Nunes e Haroldo Barbosa, a partir der 1951 na Nacional, substituindo PRK-30, que havia sido transferido para a Mayrink Veiga. Em São Paulo destacaram-se Marmelândia, sátira política de Max Nunes e Haroldo Barbosa, e Rua do Sossego, na década de 50. E, sem dúvida, a partir de novembro de 1955. História das Malocas, na Record (PRB-9).
Com o humor, o rádio,
em sua época áurea, foi reproduzindo o discurso do cotidiano dos vários
segmentos sociais, humor que tinha tradição na música popular, no samba de
Sinhô, nas marchinhas de Lamartine Babo, em parte da obra de Noel Rosa, no
samba-de-breque, e que iria encontrar em Adoniran uma expressão muito própria.
A paródia, os trocadilhos, os anti-heróis são alguns de seus gatilhos mais constantes.
Tudo isso tornou-se possível pelo espaço que o rádio era obrigado a oferecer à
elaboração de uma linguagem onde os ouvintes de algum modo participavam com
suas falas, com sua realidade, nos programas de auditório, com o tempo pelo
telefone, etc. Nesse sentido, os seus artistas eram mais sensíveis as demandas
culturais das populações urbanas. Esse foi o momento em que o rádio aparecia
como líder dentro do sistema de comunicação de massa e operava com aquele humor
cuja origem estava, em grande parte, nos segmentos sociais mais pobres, no
outro lado da vitrine da grande cidade, componente da tensão que constitui o
moderno.
Nesse espaço
movimentou-se Adoniran Barbosa, constituindo a sua máscara de humorista e
sambista. Na realidade, por dentro do seu humor revelava-se uma dor. A cidade
que amava crescia, mudava acarretando a dissolução dos antigos laços de
solidariedade, a quebra dos tradicionais compromissos entre vizinhos e amigos e
a destruição de espaços urbanos que possibilitavam encontros e festas. Por essa
via, não podia desvencilhar-lhe de uma condição, aliás de uma contradição muito
rica que lhe deu asas para prosseguir em seu percurso: quanto mais se envolvia
com a cidade, mais ela escapava do seu controle. Daí a sua busca na tentativa
de reter em sua voz e em seus gestos os rostos e vozes da cidade, sabendo que a
dissolução das relações tradicionais era um fato irreversível. Adoniran sabia que
não havia outro jeito, a não ser caminhar contraditoriamente para o futuro,
como um errante traditoriamente para o futuro, como um errante na maré das
transformações que se processavam.
O resultado não poderia
deixar de ser tragicômico, do cômico contendo o trágico, o caráter anti-herói
dos personagens, a riqueza multifacética de sua voz, que com o tempo, foi-se
expressando no sotaque melódico de suas composições. Tal performance não seria
possível sem uma andança fundamental: Adoniran Barbosa, uma antena afinadíssima
entre a realidade cotidiana e o rádio. E nos programas humorísticos de que
participou, desde 1941/42, e através deles, criou tipos e instrumentalizou os
escritores do rádio para que pudessem desenvolvê-los.
Não foi à toa que a
revista It, em 1946, chamou Adoniran
de “O Milionário Criador de Tipos Radiofônicos” e Oswaldo Moles de “O
Milionário Criador de Programas”. Naquele ano, Adonis, como era apelidado na
Record, notabilizava-se em São Paulo com suas 16 interpretações. “Zé Cunversa”,
que ficou no ar até 1954, no programa A Casa da Sogra, destacou-se como um dos
seus tipos mais famosos:
“Neca,
seu branco, né tristeza não; eu tô é ofendido. Num posso cum esses peste desses
brancos...Achá que nóis os preto devia de arranjá um outro logá pra passeá nos
domingo...eles vão querê me enganá que a Rua Direita é deles! Né não – a rua é
livre – eu sô preto, sô brasileiro e passei na Rua Direita quando quisé – me
batê, ninguém vai”.
Não ficava atrás
“Barbosinha Mal-educado da Silva”, o moleque da “Escola Risonha e Franca”:
“Tô
inocente, não fiz nada”.
“Giuseppe Pernafina,
motorista de táxi do Largo do Paissandu, também corria pelas ondas da Record:
“Eh
vae mar. Vae mar a vida, vae mar...te digo eu que a vida vae mar, porque vae
mar mesmo. Porque quando vae mar, vai mar é porque vae mar mesmo...Estou aqui
no ponto desde cinco de la matina, e ainda num virei a chave – e tenho uma dor
no amolar esquerdo, que não sei se abestraio ele ou se faço uma anistia
gerar...por isso te digo que vae mar...”
Ou o “Dr. Sinésio
Trombone, o gostosão da Vila
Matilde”:
“Sua
excelência chegou num momento intramuscular propedêutico impróprio, porque
dentro das congeminências hiperbólicas, posso afirmar que ele não se encontra
neste ambiente filarmônico e holocáustico. Tenho dito!”.
Ou o “Prof. Richard
Morris” e seu irmão gêmeo “Richard Morris” (por parte de mãe), tipos criados a
partir de Adoniran e escritor por Armando Rosas, apresentados em parceria com
Ivo de Freitas:
“Chesterfield
Sereneide chata nooga, chu chu – end may reveri six chevrolet laite and pauver.
O
yes – a traduçon deste fraze que eu disse é a seguinte – Tromba de elefante não
serve para regar flores do jardim”.
Ou “Moisés
Rabinovicht”:
“Eu
vende barrato parra senhor...eu vende à vista e a pestaçon”.
Ou “Oswaldo Luiz das
Gardênias Lilases”, o cronista “delicheuse” do Jardim América, ou “Don Segundo
Sombra”, “el mayor radio-teatrólogo del mundo, del teatro Pisca-Pisca, rápido
como um rayo de luna”, ou “Jean Rubinet”, “ator do cinema francês”, e outros.
Deste modo percorre os
programas e os anos. Para se ter uma ideia do envolvimento do nosso ator com o
rádio, citamos aqui as informações da revista Rádio-Teatro (Revista Semanal das Grandes Novelas do Rádio),
publicada no Rio de Janeiro em abril de 1953. Segundo a revista, Adoniran
trabalhava todos os dias da semana: na segunda-feira, 21 horas, em Solteiro é Melhor, onde representava um
humilde marido, Confúcio das Dores; na terça, ás 21h30, em Convite ao Samba; na quarta em Show
Castelo e em Vale Quanto Pesa; na
quinta 21 horas, em A Presença do Trio;
na sexta em O Crime não Compensa; no
sábado, em Sítio do Bicho de Pé; no
domingo, 21 horas, em A Grande Filmagem,
ao lado de Anselmo Duarte, Ilka Soares, Alberto Ruschel e do grande cast da Record, além de duas orquestras,
regionais, cantores, sob a direção de Blota Júnior. Além de tudo isso,
apresentava-se todos os dias em Charuto e
Fumaça, ironizando o esporte. Em 1954, ei-lo no Sítio dos Tangarás, de
Agostinho Aguiar Leitão, todos os sábados, das 19h05 ás 19h25, onde fazia de
tudo: caipira, viajante, vilão, cantor de modinhas, dependendo do programa, que
contava com outros radioatores e atrações musicais como Elisete Cardoso, Carlos
Garlindo, o sanfoneito Luís Gaucho e outros.
De todo esse percurso,
de mascate a artista de rádio, acabou aportando na “Maloca”, vestindo a pele de
“Charutinho”, que como dissemos no capítulo anterior, foi aquele que mais se
assemelhou à voz de seu intérprete. Chegamos, enfim, às Histórias das Malocas,
escritas como “radiocontos” por Oswaldo Moles. O mascate transformava-se no
desocupado-malandro do “Morro do Piolho”, moderno lado avesso do moderno,
desaguar de quem respirou, através da busca, a cotidiana geografia
sócio-cultural de sua cidade e perseguiu os rostos e os rastros da humanidade
diluída na multidão da rua.
“E
a Rádio Record – estação PRB-9 de São Paulo – passa a transmitir, neste
momento, como em todas as sextas-feiras, às 21 horas...Histórias das Malocas”.
Essa “viagem costeira
pela vida dos humildes”, como se definia o próprio programa, tinha antecedentes
na Record e no rádio brasileiro, no que tange ao seu aspecto de crítica social.
Além de vários exemplos que podem ser lembrados, podemos evocar um trecho do
famoso PRK-30 da Rádio Nacional do Rio de Janeiro, uma paródia da valsa Saudades do Matão:
“Nós
antigamente tinha carne
Nós
antigamente tinha pão
Nós
antigamente tinha feijão
Carestia
A
manteiga, a farinha de trigo sumiu outra vez
Nós
antigamente não tinha as fila
Hoje
tem fila pra tudo
E
a maior fila que tem é a fila do ladrão”.
Porém, a paródia
frisava algo que em Histórias das Malocas quase
sempre aparecia reticente, ambíguo, contraditório e, portanto, mais rico e
expressivo. A paródia de Saudades do
Matão sublinhava um “antigamente” idílico onde se tinha tudo, sendo que o
fato de se sentir “saudades do matão” sugeriria um passado onde a
industrialização e a modernização ainda não haviam provocado a “carestia”. No
humor de Adoniran e Moles, o passado não era representado como tão antigamente
assim; ele estava vivo, recente no movimento do presente. No samba Saudosa
Maloca, de 1951, que teria inspirado o programa, já se manifestava a tentativa
de fazer do passado algo que estivesse vivo, doído, na pele dos personagens, de
trazê-los à consciência do ouvinte como uma denúncia. Adoniran conseguia captar
a cidade em seu movimento, a sua rápida e brusca mudança. Embora chegasse a
enfatizar num dado momento “os dia feliz de nossas vida”, sabia que era
impossível voltar a eles. Daí a sua pouca ênfase na valorização de um passado
“bom” contrastando com um presente degradado. É só prestar atenção à letra:
“Si
o sinhô num tá lembrado
Da
licença de conta
É
que aonde agora está
Esse
edifício arto
Era
uma casa véia
Um
palacete assobradado
Foi
aqui seu moço
Que
eu, Matogrosso e o Joca
Construímo
a nossa maloca
Mais
um dia, nós nem pode se alembrá
Veio
os home cas ferramenta
Que
o dono mandô derrubá
Peguemo
toda as nossas coisa
E
fumo pru meio da rua
Apreciá
a demolição
Que
tristeza que nóis sentia
Cada
tauba que caía
Doía
no coração
Matogrosso
quis gritá
Mas
em cima eu fazei
‘Os
home tá ca razão
Nóis
arranja outro lugá’
Só
se conformemo
Quando
o Joca falou
‘Deus
dá o frio conforme cobertô’
E
hoje nós pega paia
Nas
grama do jardim
E
pra esquecê
Nós
cantemo assim:
Saudosa
maloca
Maloca
querida
Din-din-donde
Nós
passemo
Os
dia feliz
De
nossa vida”.
Diante do olhar distraído e do andar brusco e apressado do homem que passa, o cantor arriscava-se a mostrar-lhe um “edifício arto”, que se o homem não fosse “lembrado” continuaria a ser apenas um “edifício arto”. O homem era chamado a reter o seu olhar no acontecimento que lhe continuaria despercebido se não fosse o samba tentando chama-lo para um novo ritmo, para uma nova sensibilidade em relação aos objetos urbanos que o cercavam e o envolviam. O samba, ao interromper aqueles passos, tendia a ser um antiandar ou um novo andar proporcionando novos ângulos de visão da cidade. Mas para onde nos levaria?
A interrupção através
desse ritmo nos leva a uma dimensão da realidade oculta pelo andamento “normal”
da cidade em mudança: a expulsão do cantor, de Matogrosso e de Joca. O que
acontece nessa expulsão? Diante da
destruição realizada pelos “home cas ferramentas”, inicialmente eles foram “pru
meio da rua/apreciá a demolição”. Mas aí ocorre um momento importante dentro do
samba: “Matogrosso quis gritá”, mas o cantor tenta acomodar as coisas, “nois
arranja outro lugá”. Tudo bem? Parecia que os anti-heróis se conformavam.
Contudo, de ouvirmos a frase seguinte, sentimos que a situação não se definia
tão bem assim: “Só se conformemo/ quando o Joca falou/ Deus dá o frio conforme
o coberto” vem expressas que ainda era difícil aceitar a expulsão. Aí o
ouvinte, ou respira aliviado, ou mostra-se derrotado, pois, enfim, o cantor,
Matogrosso e Joca se conformaram. Ou não? Por mais que o conformismo se
manifeste, a dor causada não se apaga, pois os três expulsos continuam a
sofrer, a pegar “paia/nas grama do jardim”. Trata-se, portanto, de um
conformismo que carrega, dentro de si, a denúncia. E mais: quando se tenta
“esquecê”, nada mais se faz do que lembrar:
“Saudosa
maloca
Maloca
querida
din-din-donde
Nóis
passemo
Os
dias feliz
De
nossas vida”.
Ou seja, a referência
do passado feliz acaba por representar a atualização do drama cantado, por
transformar-se num meio de sentir o passado no movimento do presente. Ouvimos
assim o samba dos paradoxos: ao retornar ao que já se foi, se é impelido para o
que se está vivendo; ao conformar-se com a violência e com a expulsão,
transporta sua denúncia; ao apresentar-se como algo que pode ser cantado
alegremente, habita-lhe uma nódoa que o ouvinte é chamado a sentir com
intensidade. Quanto a este último aspecto, estamos diante do engraçado, e o
engraçado não se reduz ao imediatamente alegre. É assim o samba de quem usou
como estratégia de criação o seu andar-compor, quem usou a linguagem vivida nas
ruas, identificando-se com ela, e, ao mesmo tempo, tentando superá-la. Mas
exatamente qual linguagem? A daqueles que, por falta de soluções concretas e
por sua imediata sabedoria, são obrigados a dizer “os home tá ca razão/nóis
arranja outro lugá”. E como o cantor consegue superá-la? Através do andar que o
mantém preso às ruas da cidade mas que o distancia dos dramas por que passa.
Tal distanciamento é o que lhes permite tratar e sentir a realidade com a qual
se envolve como objeto de seu canto, como algo que carrega e que pode transformar
em e pelo samba.
O programa que se
seguiu, Histórias das Malocas, trouxe
aquelas características encontradas no samba de Adoniran, apesar de imprimir
uma certa idealização das “malocas” através do “lirismo” imposto pelo seu
produtor Oswaldo Moles. Apesar disso, a “maloca” não surgia com um “belo”
passado e um presente degradado. Ela estava ali no seu presente:
“Esta é a minha maloca,
manja? Mais esburacada que tamborim de escola de samba em quarta-feira de
cinza. Onde a gente enfia a mão no armário e encontra o céu. Onde o chuveiro é
o buraco de goteira. Não tem água de zinco. Ás veis a gente toma banho em bacia
e se enxuga com a toalha de vento. E quando não tem água a gente se enxuga
antes de toma banho”.
Contudo, em outros
momentos, ela surgia engraçadamente amarga, na voz de “Charutinho”, o grande
Adoniran Barbosa:
“Resedença!...Uma
maloca que se entrá um burro fica cô rabo de fora...” (21.8.1959)
Mas, afinal, o que são
as “malocas”? O leitor deve lembrar do capítulo anterior: o conjunto nada
“residencial” do Morro do Piolho. Ali amontoam-se os barracos como o de
“Terezoca” (interpretada por maria Tereza), como o de “Dija” (Djalma Amaral), e
por ali perambula o negrinho alérgico ao trabalho, o malandro sempre
comicamente mal-sucedido, “Charutinho”. Por vezes, as “malocas” tendem a se
definir enquanto uma “comunidade”, apresentada inclusive um modo de falar
característico, o “errado”, cujo procedimento permite ao programa realçar a
ambiguidade das palavras, garantindo significações que traduzem críticas à
sociedade mais abrangente. Nas “Malocas”, as expressões são deformadas,
ampliando-se a sua significação:
“Venanço:
- Charutinho! Ocê sabe que eu sô candidato?
Charutinho-
Catedrático! Ocê é catedrático a quê?”.
Deste modo, a
ignorância de “Charutinho” transforma-se “sem querer” em crítica ao sistema
político-eleitoral. “Catedrático” sugeriria um cargo vitalício, indicando a
ausência de renovação do sistema e a impossibilidade da maioria das pessoas de
participar dele. A ignorância transporta a sua sabedoria, a sua crítica,
movimento que esteve presente nas composições mais importantes de Adoniran.
Pela linguagem e pela ótica das “Malocas” critica-se a sociedade abrangente.
Mas não se trata aí de uma oposição da “comunidade” à sociedade: o Morro do
Piolho é parte e quer fazer parte do processo de industrialização e de
urbanização que o gerou, quer usufruir das facilidades do moderno, porque
representa um dos seus lados, mesmo sendo o seu lado avesso.
No programa de
2.5.1959, cujo título é “Rico só conhece pobre em dia de eleição”, o Piolho
quer participar da política. E “Charutinho”, após aceitar fazer campanha de
dois “catedráticos” concorrentes do próprio Morro, “Venanço” e “Gerarda”, acaba
por assumir a candidatura do primeiro, diante da compra de votos realizada por
“Gerarda”. Mas para isso usa um expediente muito conhecido na sociedade
brasileira: o roubo de urna, em que é descoberto. Utilizando meios comuns a
sociedade, as “Malocas” contribuem para a sua reprodução assim como do sistema político-eleitoral.
Contudo, o instrumento nada democrático, o roubo da urna, é aqui praticado por
alguém desprovido do poder de manipulação do sistema, obtendo-se um resultado
bem diferente daquele alcançado por pessoas bem “assessoradas” ou estrategicamente
bem localizadas. Por essa via, as “Malocas” são “Histórias” onde a utilização
dos comportamentos dominantes na sociedade serve para expô-los criticamente, de
uma forma indireta mas contundente. “Malocas” não são o rural contra o urbano,
o tradicional contra o moderno; são feridas no movimento do presente. Sua
linguagem aparentemente “errada” e ultrapassada é a linguagem do rádio.
Num outro dia
(25.1.1963), eles vão em busca de trabalho. E só encontram um. Para ocupar a
vaga “elegem” o mais vadio, o mais preguiçoso, o malandro “Charutinho”, para
trabalhar na fábrica. Por ser necessitado e para receber uma “lição”,
“Charutinho” é encaminhado ao departamento pessoal da fábrica, para ali
retornar várias vezes trazendo atestados, documentos e vacinas. São tantas as
suas idas e vindas, tão difícil, comicamente difícil, atender às exigências
burocráticas, que o anti-herói tenta escapar:
“Eu
tenho que tirá tanta coisa pra trabaiá, que eu vô boquejá pa turma do Morro pa
vê se por motível das dificurdádias...”.
Sempre ajudado pelo
pessoal do Morro do Piolho, “Charutinho” é obrigado a vencer as dificuldades e
tomar posse. Quando chega o dia, uma “comissão” do Morro se apruma: eis a hora
de levar “Charutinho” ao seu emprego, o momento da festa, da solenidade. E na portaria
da fábrica, a confusão: a “comissão” proibida de entrar e “Charutinho”, que se
revolta contra a proibição, demitido. O que o Morro do Piolho reivindicava?
Trabalho com festa. O que o sistema de trabalho impõe? Que haja ordem,
hierarquia, disciplina. Assim, a festa do trabalho fica proibida pelo sistema
industrial do trabalho, suporte da modernização. Reproduz-se o “Charutiho” como
se encontrava no início da “História”:
“-
Trabaio é boca? Trabaio num é boca. É sepurtura, é tumo”.
Portanto, a crítica
presente em Histórias das Malocas e
na fala do malandro “Charutinho” não se dirige simplesmente contra o trabalho
em si. Ataca, sim, o caráter sombrio e pesado que o trabalho adquire em um
sistema industrial como o nosso; contra a forma pela qual o trabalho é
manipulado e explorado:
“-
É como dizia anedota: muita gente trabaia...e os outro vive”.
Ou como diz o velho
ditado:
“O diabo só dá cachimbo pra quem sofre de asma”. (Programa de 24.7.1963).
Foram essas “Malocas”
que Adoniran carregou nos seus sambas. A intimidade foi tão grande que eles
também fizeram parte do texto daquelas “Histórias”, a partir do compositor do
Morro, de “Charutinho”. Em alguns programas, questões referentes à composição e
aos direitos autorais ocuparam um espaço central. Se o samba “mora na
filosofia”, como as “Malocas” “filosofaram” o seu samba? É só ouvir um
pouquinho de uma discussão maloqueira a respeito:
“Charutinho- Ocê num tem uma dô escondida?
Dija:
- Tenho. Ô tenho um calo que eu fiz na primeira veiz que usei sapato de coro
que é como dente de caipira: dóoooooi.
Charutinho:
- Mais calo num dá samba.
Dija:
- Pruque é que ocê num faiz alguma coisa sobre a cachaça? Num é uma boa pidida?
Charutinho:
- A pidida de cachaça é uma boa pidida. Mais uca, em samba, já encheu”. (31.1.1964).
Quer dizer, o samba
deve nascer cantando algo que não seja lugar-comum, e algo que não esteja tão a
mostra, mas que deve ser procurado, novo.
Movido pela procura,
eis que “Charutinho” vai chegando a algumas descobertas: “Quebrô um vidro em casa
do individro”, “O samba do maiorá do samba”...Nenhum serve. A “maloca” vai
reprovando. Segundo “Simprício” (interpretado por Simplício) a terceira
tentativa, “O ferrero rasgo a carça do afanadô de penosa” é um samba “peço”:
“Eu
já falei que nem num é ruim, nem num é sufrive, nem num é mau. É peço”.
Assim, a procura
continua. Para isso o Morro do Piolho colabora: três garrafas de pinga, cinco
caixas de “fosqui”, pedaço de “calne seca com ovo”, ou seja, o inxová pa fazê
samba”, e lá vai “Charutinho” se esconder no mato. Quando volta, traz consigo a
composição contra a “puliça”. Eis o “estribio”:
“Mas
no Morro a gente é livre pa cachorro
Pode
mata, esculacha e ofendê
Porque
aqui num se usa artuarmente
A
RP
A
RP
A
RP”.
“Dija” gostou. Todos
gostaram. O samba está pronto. Apesar de ter sido composto em isolamento
(mato), só passa a valer como música quando conta com a apreciação positiva do
grupo, da “comunidade” do morro. O samba deve ser algo novo, mas ao mesmo tempo
fruto do consenso. Deste modo, fica difícil compô-lo, como tenta nos dizer o
programa citado. Há que se andar. Muito.
Contudo, aparece quem
não gosta da canção de “Charutinho”: a “puliça” na figura de “Chico Tira”.
Novamente o anti-herói vai para a cadeia:
“Mais
a liberdade de palavra? Samba é palavra feito melodia”.
Com essa frase de revolta, “Charutinho” nos deixa a última pasta, o último ingrediente para compreendermos a sua receita. A liberdade de expressão só deve depender do modo de compor, da combinação das palavras já contendo a melodia. Enfim, possibilita-nos captar algo essencial na música popular: o tenso caminho entre a liberdade individual e as exigências do público, o que pode ser percorrido se o autor identificar-se com e, ao mesmo tempo, distanciar-se das pessoas e coisas de sua cidade, de seu mundo. Só lhe cabe, como dissemos, andar.
Publicado originalmente por KRAUSCHE, Valter. Adoniran Barbosa. São Paulo:
Brasiliense, 1985.
Um comentário:
A vida e o repertório de Adoniran rende história,várias histórias.
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