segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Grandes matérias esportivas do Jornal da República: “A festa de dona Marlene” (29/9/1979)

FIGUEIREDO/CORINTHIANS

 

A festa de Dona Marlene

A primeira dama do Corinthians roubou o banquete ludo-político


RICARDO KOTSCHO

 

Estavam presentes o presidente da República, três ministros de Estado, os comandantes militares em São Paulo, o governador, o prefeito e demais altas autoridades civis e militares. Mas o dono da festa foi uma mulher, Marlene Matheus, a primeira dama do Corinthians. Vestida num longo alvinegro, dona Marlene não cabia em si de contente e desbancou o governador Paulo Maluf na tarefa de puxar o presidente Figueiredo pelo braço. Tão feliz estava a primeira dama corintiana, nesta gloriosa festa dos 69 anos do Sport Club Corinthians Paulista, que ela já fazia planos para o futuro, anunciando que daqui a um mês, quando o presidente da República voltar a São Paulo para o lançamento da pedra fundamental do novo estádio do clube, “nós vamos colocar dois milhões de corintianos na rua”. Dona Marlene até ganhou um troféu junto com os campões paulistas de 77.

Logo na entrada do ginásio, palco do banquete para duas mil pessoas (posta de peixe grelhada com salada “wadorf”, camarão com molho remolhado, supremo de frango com risoto e champingnons à provençal, maçã glacê), um imenso painel com as cores do Brasil e do Corinthians e as efigies de Figueiredo e Matheus; bandeirinhas alvinegras de graça para todos. Quando o presidente entrou, a banda da PM tascou o hino do Corinthians (Matheus queria o Hino Nacional, mas o Palácio do Planalto vetou), todos acenaram as bandeirinhas e Figueiredo logo recebeu uma de dona Marlene, para acenar também.

Há muito não se via uma festa tão autenticamente tropical. Políticos, cartolas, jogadores e treinadores, conselheiros do clube e suas digníssimas, todos confraternizavam no imenso tablado decorado com cravos brancos e vermelhos. Havia até representantes das torcidas organizadas – Atômico, Estopim, Mosqueteiros do Timão, etc – devidamente acomodados no seu lugar de sempre: nas arquibancadas. Um coro de 270 sócias-atletas do Corinthians, fantasiadas, começou a gritar Figueiredo, Matheus/Figueiredo, Matheus. Figueiredo abriu uma exceção e se dispôs a falar à imprensa. Em sua única declaração em São Paulo revelou que era corintiano desde os seis anos de idade. A veteraníssima repórter Clarice Amaral, emocionadíssima, parecia uma principiante ao microfone: “Conseguimos captar algumas palavras do presidente”. E, ao contínuo, Matheus lascou lá seu pronunciamento, da lavra de seu eterno ghost-writer Mário Campos: “Corinthians, senhor presidente, é um potencial de desenvolvimento patrimonial e esportivo, que, quando plenamente atingido, o situará como verdadeira linha auxiliar do poder público (...)”.

O centroavante Palhinha também tentou puxar o banquete mas para o lado, por assim dizer, político-sindical, mas não foi feliz. Ao topar com o ministro do Trabalho, Murillo Macedo, falou-lhe das agruras dos jogadores e do protesto que entregou ao presidente da Federação Paulista de Futebol contra o maluco calendário do campeonato. Inútil. O inefável Macedo respondeu com outra pergunta, mais mansa: “Você é mineiro de onde?”. De Belo Horizonte, respondeu Palhinha. “Pois eu sou de Sete Lagoas”, retrucou o ministro do Trabalho. E todos atacaram as atrações do banquete, que estava muito gostoso, segundo comentários ouvidos pela reportagem.

 

A “Fiel” ficou de fora. Como sempre

Mas Elisa, torcedora-símbolo, disse: “Meu Curíntia é meu país!”

TONICO DUARTE

O deputado Biro-Biro chegou esbaforido. Terno cinza de colete e tudo, novinho, comprado em crediário de loja popular. Queria saber se teria de “falar com o hôme”. Antes de mais nada, é bom esclarecer que o “homê” era o general Figueiredo, que ontem, tentou ser mais João do que nunca, ao comparecer ao banquete de aniversário do Sport Club Corinthians Paulista, também conhecido como “Timão”. Biro-Biro, que na última eleição recebeu mais votos do que muito parlamentar, deveria ter perguntado a seu colega Nabi Abi Chedid, que passava ao largo, pouco antes da chegada presidencial: “Acho que vou ficar apavorado se ele me perguntar sobre aqueles votos que tive”, confessava Biro-Biro. “Já pensou se ele me pergunta? O que é que eu vou dizer?”.

Mas o “home” chegou e não houve nada de apocalíptico – a não ser a parafernália de sempre: batedores com sirenes a toda chega-pra-lá de agentes de segurança (delicadamente, como mandam os tempos de abertura), gritinhos dos que ficaram fora da festa, etc. Estava armada a grande festa-modelo “glamour patropi” para receber o presidente da República. De um lado, solícito e elegante, o outro mandachuva do evento, Vicente Matheus: “Só o Corinthians consegue trazer um presidente da República, clube nenhum mais pode. Por isso estou orgulhoso e emocionado”.

Lá fora, o povão sofria espasmos de satisfação. O presidente chegou de terno cinza escuro, e muitos lembravam que ele trazia estampado um ar mais saudável do que Geisel, presente ao Corinthians no ano passado. Só uma decepção, de Tuim, um velho torcedor: “Nossa, como ele é baixinho! É quase da altura do Matheus. Sabe como é, a gente vê aquelas fotos dele fazendo ginástica e imagina que seja do tamanho do Jairo (o goleiro do Corinthians de quase 2 metros de altura)”.

Dona Marlene Matheus esteve vigilante para que tudo corresse bem de acordo com o figurino. Já de manhã, ela saiu de casa e foi direto comprar uma grava para Geraldão, o centroavante. Geraldão não tinha gravata para a grande festa.

De noite, do lado de fora do ginásio, a segurança se encarregava de barras qualquer pretensão da “Fiel” de ver o João de perto. Só Elisa, a torcedora-símbolo, teve a sua chance. Peruca caju enroladinha, vestido soirée preto de rendas e catim, ela olhou para o João, abria o sorriso desdentado e não se conteve: “Ah, esse meu Curíntia é um país!”.

 

Publicado originalmente no Jornal da República em 29 de setembro de 1979, edição 30

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