Por André Barcinski e Ivan Finotti
As coisas não iam bem para José Mojica
Marins naquele mês de junho de 1964. Ele havia terminado o seu primeiro longa
de terror, Á Meia Noite Levarei Sua Alma, mas os sacrifícios que teve de
enfrentar para fazer o filme sugaram toda a sua energia e disposição, para não
mencionar sua poupança. A filmagem havia sido um pesadelo, marcada por
acidentes, brigas e falta de dinheiro.
Tudo parecia conspirar contra ele: numa
hora eram os atores, que se recusavam a contracenar com aranhas caranguejeiras;
noutra eram os técnicos, que diziam ser impossível construir o cenário de uma
floresta num estúdio tão pequeno. Credores batiam na porta a cada dez minutos
e, quando não eram os credores, era a polícia, atendendo a reclamações da
vizinhança. Para terminar o filme, Mojica não teve outra alternativa senão
vender tudo que tinha: roupas, mobília, quadros, talheres...Seus pais, sempre
dispostos a sacrifícios para ajudá-lo, venderam até o carro da família.
Era muito sacrifício. “E para quê?”,
perguntavam os amigos. Às vezes, o próprio Mojica se perguntava se valia a pena
trocar sua casa por um filme. Pois, no final de contas, era isso que ele tinha
debaixo do braço, um filme. Mais especificamente, 81 minutos de um filme em
preto-e-branco, um filme de terror, e estrelado por ele próprio. Teria valido a
pena sacrificar sua família por este filme? E se o público não gostasse de Zé
do Caixão, o personagem mórbido que ele havia criado? Mojica tentava afugentar
essas dúvidas com sua confiança na fita, mas a lembrança dos 6 de milhões de
cruzeiros (6 mil dólares) que ele e sua família haviam juntado para terminar a
produção o atormentava. Como pensar no cinema quando faltava comida na mesa dos
pais?
Quando Ilídio Simões Marins, um jovem
corretor imobiliário, propôs a Mojica comprar a sua parte no filme, ele ainda
titubeou, mas não pôde resistir. A oferta era baixa, apenas 2 milhões de
cruzeiros, mas sua situação doméstica exigia providências urgentes. Mojica
estava endividado e não tinha onde morar. Sua mulher teve de submeter-se à
humilhação de pedir abrigo na casa dos pais.
Mojica aceitou a oferta de Ilídio, com
a condição de que o pagamento fosse feito à vista. O encontro foi marcado para
uma manhã de segunda-feira, na frente da Estação da Luz. De lá, Mojica
embarcaria um trem para o Paraná, onde atuaria – e acabaria dirigindo – o faroeste
Diabo de Vila Velha, um dos biscates que aceitou para tentar sair do sufoco.
Quando Mojica chegou á estação da Luz,
Ilídio já estava lá, esperando dentro de um fusca. Depois de um cumprimento
rápido, Ilídio tirou do carro uma máquina de escrever portátil, sentou no banco
do passageiro e bateu o contrato:
- Eu, José Mojica Marins, brasileiro,
casado...transfiro todos os direitos sobre o filme Á Meia-Noite Levarei Sua
Alma para Ilídio Simões Martins, brasileiro...
O encontro não demorou mais de cinco minutos.
Mojica assinou o contrato, recebeu um cheque e agradeceu. Ilídio entrou no fusca
e sumiu na esquina.
Assim que viu o fusca desparecer na
curva, Mojica se deu conta de que havia vendido uma parte de sua vida. Um calafrio
percorreu sua espinha. Teria essa a decisão correta? Seu filme seria lançado, é
verdade, com seu nome no cartaz e tudo, mas ele não veria um centavo da bilheteria.
Consolou-se com a certeza de ao menos ter dinheiro para dar de comer à família
e saldar algumas dívidas. Ainda zonzo pela rapidez dos acontecimentos, embarcou
para o Paraná.
Em 9 novembro, estreia de Á Meia-Noite
Levarei Sua Alma em São Paulo, Mojica foi ao Cine Art-Palácio, na avenida
São João, para sentir a reação do público. Ficou chocado com o que viu: a fila
dava a volta no quarteirão! Ele resolveu almoçar por ali mesmo e escolheu um
boteco em frente ao cinema, de onde poderia ver a bilheteria. Seu coração disparava de felicidade cada vez
que alguém comprava um ingresso. E foram muitos “alguéns:”: cinco sessões lotadas!
O mesmo aconteceu no dia seguinte. E no outro. Uma semana de casa cheia no Art-Palácio.
Os distribuidores e exibidores fizeram
sua fortuna com Á Meia-Noite Levarei Sua Alma. O único que perdeu dinheiro
nessa história toda foi Mojica. Ao mesmo tempo em que saboreava o
reconhecimento do público, doía-lhe na alma saber que não estava ganhando
sequer um vintém. Ao longo de sua vida, Mojica se veria diversas vezes em
situações semelhantes, prejudicado por sua impulsividade e obsessão em fazer
cinema. Mas fazer o quê? O cinema sempre veio em primeiro lugar para José
Mojica Marins...
Publicado originalmente em BARCINSKI, André & FINOTTI, Ivan. Maldito: a vida e o cinema de José Mojica Marins, o Zé do Caixão. São Paulo: Editora 34, 1998.
Nenhum comentário:
Postar um comentário