sexta-feira, 15 de julho de 2022

Mojica early years, parte I: Prólogo

 


         Por André Barcinski e Ivan Finotti

        

         As coisas não iam bem para José Mojica Marins naquele mês de junho de 1964. Ele havia terminado o seu primeiro longa de terror, Á Meia Noite Levarei Sua Alma, mas os sacrifícios que teve de enfrentar para fazer o filme sugaram toda a sua energia e disposição, para não mencionar sua poupança. A filmagem havia sido um pesadelo, marcada por acidentes, brigas e falta de dinheiro.

         Tudo parecia conspirar contra ele: numa hora eram os atores, que se recusavam a contracenar com aranhas caranguejeiras; noutra eram os técnicos, que diziam ser impossível construir o cenário de uma floresta num estúdio tão pequeno. Credores batiam na porta a cada dez minutos e, quando não eram os credores, era a polícia, atendendo a reclamações da vizinhança. Para terminar o filme, Mojica não teve outra alternativa senão vender tudo que tinha: roupas, mobília, quadros, talheres...Seus pais, sempre dispostos a sacrifícios para ajudá-lo, venderam até o carro da família.

         Era muito sacrifício. “E para quê?”, perguntavam os amigos. Às vezes, o próprio Mojica se perguntava se valia a pena trocar sua casa por um filme. Pois, no final de contas, era isso que ele tinha debaixo do braço, um filme. Mais especificamente, 81 minutos de um filme em preto-e-branco, um filme de terror, e estrelado por ele próprio. Teria valido a pena sacrificar sua família por este filme? E se o público não gostasse de Zé do Caixão, o personagem mórbido que ele havia criado? Mojica tentava afugentar essas dúvidas com sua confiança na fita, mas a lembrança dos 6 de milhões de cruzeiros (6 mil dólares) que ele e sua família haviam juntado para terminar a produção o atormentava. Como pensar no cinema quando faltava comida na mesa dos pais?

         Quando Ilídio Simões Marins, um jovem corretor imobiliário, propôs a Mojica comprar a sua parte no filme, ele ainda titubeou, mas não pôde resistir. A oferta era baixa, apenas 2 milhões de cruzeiros, mas sua situação doméstica exigia providências urgentes. Mojica estava endividado e não tinha onde morar. Sua mulher teve de submeter-se à humilhação de pedir abrigo na casa dos pais.

         Mojica aceitou a oferta de Ilídio, com a condição de que o pagamento fosse feito à vista. O encontro foi marcado para uma manhã de segunda-feira, na frente da Estação da Luz. De lá, Mojica embarcaria um trem para o Paraná, onde atuaria – e acabaria dirigindo – o faroeste Diabo de Vila Velha, um dos biscates que aceitou para tentar sair do sufoco.

         Quando Mojica chegou á estação da Luz, Ilídio já estava lá, esperando dentro de um fusca. Depois de um cumprimento rápido, Ilídio tirou do carro uma máquina de escrever portátil, sentou no banco do passageiro e bateu o contrato:

         - Eu, José Mojica Marins, brasileiro, casado...transfiro todos os direitos sobre o filme Á Meia-Noite Levarei Sua Alma para Ilídio Simões Martins, brasileiro...

         O encontro não demorou mais de cinco minutos. Mojica assinou o contrato, recebeu um cheque e agradeceu. Ilídio entrou no fusca e sumiu na esquina.

         Assim que viu o fusca desparecer na curva, Mojica se deu conta de que havia vendido uma parte de sua vida. Um calafrio percorreu sua espinha. Teria essa a decisão correta? Seu filme seria lançado, é verdade, com seu nome no cartaz e tudo, mas ele não veria um centavo da bilheteria. Consolou-se com a certeza de ao menos ter dinheiro para dar de comer à família e saldar algumas dívidas. Ainda zonzo pela rapidez dos acontecimentos, embarcou para o Paraná.

 

         Em 9 novembro, estreia de Á Meia-Noite Levarei Sua Alma em São Paulo, Mojica foi ao Cine Art-Palácio, na avenida São João, para sentir a reação do público. Ficou chocado com o que viu: a fila dava a volta no quarteirão! Ele resolveu almoçar por ali mesmo e escolheu um boteco em frente ao cinema, de onde poderia ver a bilheteria.  Seu coração disparava de felicidade cada vez que alguém comprava um ingresso. E foram muitos “alguéns:”: cinco sessões lotadas! O mesmo aconteceu no dia seguinte. E no outro. Uma semana de casa cheia no Art-Palácio.

         Os distribuidores e exibidores fizeram sua fortuna com Á Meia-Noite Levarei Sua Alma. O único que perdeu dinheiro nessa história toda foi Mojica. Ao mesmo tempo em que saboreava o reconhecimento do público, doía-lhe na alma saber que não estava ganhando sequer um vintém. Ao longo de sua vida, Mojica se veria diversas vezes em situações semelhantes, prejudicado por sua impulsividade e obsessão em fazer cinema. Mas fazer o quê? O cinema sempre veio em primeiro lugar para José Mojica Marins...

 

Publicado originalmente em BARCINSKI, André & FINOTTI, Ivan. Maldito: a vida e o cinema de José Mojica Marins, o Zé do Caixão. São Paulo: Editora 34, 1998.

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