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segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Mojica early years, parte IX: 1966-1967: Boca do Lixo, Sucesso e Censura

 Capítulo 8: 1966-1967: Boca do Lixo, Sucesso e Censura

 


          Por André Barcinski e Ivan Finotti

         

          Enquanto Mojica terminava de filmar Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver na sinagoga do Brás, Á Meia-Noite Levarei Sua Alma estreava em cinco cinemas do Rio de Janeiro. Se até então a fama de Mojica havia ficado restrita a São Paulo, o lançamento do filme no Rio, principal centro da imprensa brasileira da época e berço da turma do Cinema Novo, tornaria-o famoso em todo o país.

          O distribuidor do filme no Rio foi Nelson Teixeira Mendes. Na primeira semana de junho, Mendes mandou vários fiscais de sua empresa ao Rio para vistoriar os borderôs de bilheteria. Entre esses fiscais estava Virgílio Roveda, o Gaúcho, assistente de cenografia de Esta Noite. Gaúcho foi designado para fiscalizar o cinema Roxy, em Copacabana. Certo dia, estava batendo um papo tranquilo com o gerente do cinema, quando ouviu uma gritaria danada dentro da sala. O lanterninha saiu desesperado:

          - Tem um maluco gritando lá dentro!

          Gaúcho e o gerente entraram no cinema e viram um sujeito de pé, na primeira fila, de cabelos desgrenhados e camisa aberta no peito, aos berros:

          - Gênio! Puta que pariu, esse cara é um gênio!

          Era Glauber Rocha.

          Não era a primeira vez que Glauber assistia ao filme. Meses antes, Rogério Sganzerla – então crítico de cinema do Jornal da Tarde – já o havia convidado para uma exibição de Á Meia-Noite Levarei Sua Alma, em São Paulo. Glauber foi sem esperar nada, e saiu deslumbrado. Viu em Zé do Caixão semelhanças com Antônio das Mortes, personagem que criara em Deus e o Diabo na Terra do Sol. Sganzerla depois o levou para visitar a sinagoga do Brás. Glauber pediu para ser apresentado a Mojica apenas como “um amigo”, sem ter seu nome revelado. Não queria ser tratado como alguém especial. Sua preocupação, no entanto, era infundada: não só Mojica era cordial com todos que o visitavam, como não tinha a menor ideia de quem era Glauber Rocha.

          Mojica recebeu-os com a simpatia costumeira e foi logo mostrando os cenários do inferno e da floresta. Quando disse que o buraco cavado no quintal seria um “lago”, o baiano não acreditou:

          - Mas você vai se afogar aí? Com os cadáveres? E vai remar um bote? Mas o bote é quase do tamanho do lago!

          Glauber e Sganzerla ficaram fascinados com a sinagoga. O lugar era uma mistura de clube social com estúdio de cinema, onde o pessoal não só trabalhava, mas também se reunia para jogar cartas ou bater papo. Mojica havia organizado uma verdadeira comuna de técnicos e artistas: num canto, alunos ensaiavam alguma cena, enquanto, em outra sala, um grupo construía um cenário. A sinagoga era a sua Vera Cruz – pobre e suburbana, porém cheia de entusiasmo. No fim da visita, Glauber pediu licença para usar o banheiro. Já ia entrando numa porta, quando Mojica gritou: “Não usa esse banheiro não, tem uma jiboia aí dentro!”.

          De volta ao Rio, Glauber organizou sessões especiais de Á Meia-Noite para seus amigos no Cinema Ópera, na praia de Botafogo. Sua lista de amigos na época era um tanto extensa, incluindo todos os cineastas e atores do Cinema Novo, gente como Nelson Pereira dos Santos, Luiz Carlos Lacerda, Gustavo Dahl, Cacá Diegues, Joaquim Pedro de Andrade, Paulo César Saraceni, Mário Carneiro, David Neves, Norma Bengell e muitos outros. Vários deles foram ao Ópera assistir aos filmes daquele paulista esquisito de quem Glauber tanto falava. Divertiram-se muito com os filmes, mas riram ainda mais do baiano que, sentado sempre na primeira fila, repetia a performance que dera no Roxy: “Gênio! Porra, esse cara é um gênio!”.

 

          Enquanto Glauber liderava a turma de admiradores de Mojica no Rio de Janeiro, em São Paulo seu maior incentivador era o amigo Luiz Sérgio Person. Apesar de conhecer Mojica desde o fim dos anos 1950, ele só começou a se interessar realmente por seu trabalho depois que assistiu a À Meia-Noite Levarei Sua Alma. “Se Buñuel tivesse visto as barbaridades de Zé do Caixão, arrancaria os cabelos de inveja”, costumava dizer a seus amigos. Person passou a frequentar a sinagoga e presenciou as filmagens de Esta Noite. Ficou fascinado com a cena do inferno, que lhe lembrou muito a Divina comédia de Dante. Quando comentou isso na sinagoga, Mojica respondeu:

          - Então me apresenta logo esse Dante, que estou louco para conhecê-lo!

          Person era professor da Escola Superior de Cinema São Luiz, comandada pelo padre Lopes, e recomendou a seus alunos que assistissem a Á Meia-Noite:

          - Vão e aprendam a fazer cinema!

          Eles foram. E odiaram. Na aula seguinte, malharam o décor, zombaram do amadorismo dos atores e ridicularizaram a canastrice de Mojica. Para tristeza de Person, foram poucos os que captaram a “beleza primitiva” que tanto o havia fascinado no filme. Analisada hoje, a reação dos alunos da São Luiz evidencia uma das maiores contradições da elite intelectual da época, uma elite que, por um lado, defendia um cinema ligado a temas populares e, por outro lado, rechaçava qualquer não-intelectual que ousasse fazer um cinema realmente popular. Os únicos cineastas famosos que vieram a público elogiar Mojica foram Glauber, Person e Roberto Santos (diretor de A Hora e a Vez de Augusto Matraga). Santos costumava lhe dizer: “Mojica, se alguém disser que você não tem cultura, não se chateie, porque é inveja pura. Falta de cultura não é problema. Você é um autodidata e dá um banho de cinema em todos nós!”.

          A maioria do pessoal de cinema preferiu tratar Mojica com a condescendência muda de quem finge admiração para não demonstrar preconceito, o que é pior e mais mesquinho do que a rejeição franca e explícita (não é de espantar que muitos desses “revoltados” logo esqueceriam suas ideias revolucionárias e passariam a viver das benesses do Estado/Embrafilme).

          Dentro da própria São Luiz, no entanto, havia um grupo de alunos que parecia sintonizar com o espírito do cinema de Mojica. Deste grupo faziam parte Carlos Reichenbach, João Callegaro, Carlos Alberto Ebert e dois outros que, embora não cursassem a Escola, tinham gosto semelhante: Jairo Ferreira e Rogério Sganzerla. Eram todos jovens de vinte anos, cultos e cinéfilos ardorosos. Curtiam a revista francesa Cahiers du Cinéma, o cinema B americano e a Nouvelle Vague de Godard, Truffaut, Chabrol e Rivette. Cultuavam Orson Welles, Samuel Fuller, Nicholas Ray e Howard Hawks. Reichenbach assistiu Á Meia-Noite Levarei Sua Alma três vezes. Jairo Ferreira, Callegaro e Ebert adoraram. Sganzerla não falava em outra coisa. Quando a turma da São Luiz começou a esculhambar o Mojica, Reichenbach e seus amigos receberam as críticas como ofensas pessoais (antes, já haviam quase saído no braço com os outros alunos, quando estes chamaram Naked Kiss de “filme de direita” e seu diretor, Samuel Fuller, de “reacionário”).

          - Esse pessoal não aceitou Samuel Fuller e vai aceitar o Mojica? – disse Reichenbach. – Deixa eles assistirem Vidas Secas pela milésima vez!

          Person ainda tinha esperanças de converter a turma e decidiu convidar Mojica para um debate na São Luiz. Antes fez uma preleção a seus alunos, alertando-os para a simplicidade e a falta de cultura de Mojica: “Vocês façam o favor de respeitar esse homem. Não quero ver ninguém zombando dele!”.

          É lógico que os alunos, acostumados a ouvir cineastas intelectualóides vomitando teses sobre a possibilidade de transformar o Brasil através do cinema e outras baboseiras, odiaram Mojica. Quando perguntaram sobre seus objetivos enquanto cineasta, ele respondeu que não tinha, fazia filmes porque gostava. A conversa descambou para a política e Mojica, que só diferencia direita de esquerda para pegar no garfo, ficou completamente perdido. No fim do debate, os alunos estavam rindo do seu português e fazendo comentários grosseiros sobre seus filmes. Reichenbach foi embora, possesso. Person, furibundo, soltou sua ira na turma: “Seus bunda-moles! Vocês não têm uma unha do talento deste homem!”.

          Não é coincidência o fato de que o pequeno grupo, de estudantes que idolatrava Mojica logo meteu as caras e foi fazer filmes, enquanto muitos de seus colegas de São Luiz tornaram-se burocratas do cinema ou abandonaram a profissão. Afinal, o que Reichenbach, Sganzerla e seus amigos mais admiravam em Mojica era sua rebeldia e independência. Inspirados por seu exemplo, eles foram para o único lugar em São Paulo onde era possível conseguir financiamento para filmes independentes: a Boca do Lixo.

 

          A Boca fica no bairro de Santa Ifigênia, centro de São Paulo. É uma área de quinze quarteirões, delimitada pelas avenidas Rio Branco e Duque de Caxias, bem próxima à Estação da Luz. Antes de ser a meca do cinema marginal brasileiro, a Boca já era “do lixo”, assim batizada pela crônica policial por causa das prostitutas e trombadinhas que frequentavam a região. O bairro atraiu também, desde os anos 20, as distribuidoras estrangeiras de cinema, pela proximidade da rodoviária (desativada em 1982) e da estação ferroviária da Luz, que facilitavam o transporte de filmes para o interior e outras capitais. Era o local perfeito para uma distribuidora de filmes: aluguel barato, localização central e facilidade de transporte das cópias. Nos anos 30 e 40, quase todos os estúdios americanos – RKO, Fox, Universal, Columbia, Paramount – tiveram filiais na região.

          O primeiro produtor a se estabelecer na Boca foi Osvaldo Massaini. Ele frequentava a região desde 1937, quando trabalhou como auxiliar de contabilidade numa distribuidora de filmes. Massaini fundou sua produtora, a Cinedistri, em 1949. Dois anos depois, transferiu seu escritório para a rua do Triunfo e começou a produzir comédias com astros do teatro como Ankito e Dercy Gonçalves. Mais tarde, obteria grande sucesso com filmes de Anselmo Duarte, como Absolutamente Certo (1957) e O Pagador de Promessas (1962), ganhador da Palma de Ouro em Cannes.

          Vários outros produtores seguiram o exemplo de Massaini e montaram suas firmas na Boca, como Antônio Polo Galante, Alfredo Palácios e Anselmo Duarte. Augusto Pereira e Nilza de Lima também fundaram uma produtora, a Ibéria, na rua do Triunfo, 134. No fim dos anos 50, já havia na região todo um comércio direcionado ao cinema, com lojas de equipamento de filmagem, oficinas de manutenção e empresas de aluguel de câmeras e refletores. Os profissionais de cinema, que até então costumavam se reunir no bar Costa do Sol, passaram a frequentar o bar Soberano, na rua do Triunfo, 155.

          Em 1967, um ex-caminhoneiro chamado Ozualdo Candeias fez na Boca um filme que deixou todos os críticos de cinema do país de quatro: A Margem, uma parábola surrealista sobre a miséria às margens do rio Tietê. O filme não fez sucesso de bilheteria, mas deu a Candeias o prêmio de melhor diretor do ano pelo Instituto Nacional de Cinema (INC) e, mais importante, foi o ponto de partida do movimento de cinema experimental brasileiro, também conhecido como cinema “udigrudi” ou marginal.

          Reichenbach, Sganzerla, Antônio Lima, João Callegaro, Jairo Ferreira e alguns outros viram em A Margem e nos filmes de Mojica uma saída para a estagnação estética e criativa do cinema brasileiro. Se antes de 1967 esses jovens louvavam o Cinema Novo de Glauber e suas pretensões revolucionárias, com a explosão da contracultura eles assumiriam posições mais anarquistas e passariam a rechaçar o populismo cinemanovista, pregando um cinema mais radical, pessoal e experimental. O mundo vivia a época da contracultura, do LSD, de Jimi Hendrix, e os “marginais” queriam fazer um cinema representativo do período, um cinema anarquista, drogado e de transgressão, em oposição ao cinema político-populista do Cinema Novo.

          Reichenbach escreveu um roteiro e foi procurar Antônio Polo Galante. Quando Galante viu aquele hippie de cabelos compridos e sandálias de couro entram em seu escritório, expulsou-o aos berros: “Aqui não tem esmola não, seu maconheiro!”. Depois ficaram amigos e Galante acabou produzindo quatro de seus filmes.

          Logo esses jovens cineastas estavam dirigindo suas primeiras fitas: Reichenbach, Callegaro e Antônio Lima fundaram a Xanadu Filmes e fizeram As Libertinas; Carlos Alberto Ebert dirigiu República da Traição, e Sganzerla estreou no longa-metragem com O Bandido da Luz Vermelha, repleto de citações a filmes de Mojica (a cena em que o bandido tenta fugir da polícia escalando um muro é cópia de uma sequência de Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver). Nascia o “udigrudi”, filho de Ozualdo Candeias e José Mojica Marins.

 

          Em abril de 1966, uma carta de Sérgio Lima, diretor da Cinemateca Brasileira, chegou à casa de seu amigo Rubens Francisco Lucchetti, em Ribeirão Preto.  Lima havia sido apresentado a Mojica e, sabendo do interesse de Lucchetti pelo cinema de horror, sugeria marcar um encontro entre os dois: “Já falamos do senhor para Mojica e tenho certeza que seria delirante o vosso encontro”, dizia a carta. Mal sabia Lima que acabaria promovendo, com aquele convite casual, o encontro entre os artistas que, pouco depois, seriam reconhecidos como o rei do cinema de terror no Brasil e o maior escritor pulp do país. Seria o início de uma grande amizade e de uma parceria extraordinária.

          Quando conheceu Mojica, Lucchetti já era famoso entre os fãs de histórias policiais e de horror. Ele havia escrito livros nesses gêneros e, em 1961, apresentara na TV Tupi a série policial Quem Foi?, um programa ao vivo no qual o espectador tentava solucionar um mistério proposto.

          Lucchetti assistiu Á Meia-Noite Levarei Sua Alma no Cine São Jorge, em Ribeirão Preto (depois transformado, como tantos outros, em igreja evangélica). Voltou para casa zonzo. Nunca vira nada tão blasfemo, tão subversivo. Viu em Mojica um misto de ator shakespeareano com o canastrão mexicano, capaz de subir numa mesa e fazer um longo discurso com a voz empostada, tal qual os personagens do bardo inglês e, na cena seguinte, descambar para um melodrama indigno do mais mambembe teatrinho suburbano.

          Grande entusiasta do experimentalismo no cinema (Lucchetti foi um dos criadores do Centro Experimental de Cinema de Ribeirão Preto), ele admirou o estilo único do filme e a quebra do formalismo careta que tanto o irritava no cinema brasileiro. O que mais o impressionou, no entanto, foi a brasilidade do personagem. Mesmo quando usava clichês do gênero horror, como a bruxa, a floresta, o cemitério e as badaladas do sino, Mojica adaptava-os à realidade brasileira. O cemitério de Zé do Caixão não era arrumadinho como os dos filmes ingleses ou americanos, mas imundo; a bruxa de Mojica era maltrapilha, corcunda, e se parecia com qualquer mulher velha e feia que existisse pelos quatro cantos do Brasil.

          Lucchetti, que semanas antes havia vaticinado, em artigo no jornal ribeiropretando Diário da Manhã a impossibilidade de se criar um personagem de terror autenticamente brasileiro, pelo fato de o país não ter tradição alguma no gênero, teve de rever sua opinião. O horror já não era mais um “gênero exclusiva e genuinamente anglo-saxão”, como ele havia escrito. Agora havia Zé do Caixão, o primeiro personagem de horror criado na América Latina.

         

          Lucchetti estava, portanto, ansiosíssimo para conhecer Mojica. Há anos vinha tentando trabalhar em cinema, sem resultado. Ele havia mandado dezenas de roteiros para produtoras como Atlântida e Maristela, mas seu estilo e preferência por temas como horror e crime não pareciam bater com o gosto dos chefões do cinema nacional. Quem sabe com Mojica não teria uma chance?

          Sérgio Lima telefonou para Lucchetti e marcou o encontro numa elegante casa de chá na rua Barão de Itapetininga, no centro de São Paulo. As distintas senhoras que frequentavam o local quase engasgaram no chá com torradas quando viram Mojica, todo de preto e com aquelas unhas enormes, entrando no recinto. O bate-papo foi frio: Lucchetti falou de sua experiência em TV e dos livros que havia escrito. Mojica quase não abriu a boca. Deu o endereço de seu estúdio e disse: “Passa lá no sábado que vem!”.

          Lucchetti achou que daquele mato não saía coelho. Mojica já era um conhecido diretor de cinema, e ele não passava de um joão-ninguém do interior. Não teria chance de vencer em uma indústria dominada por panelinhas e favorecimentos. Mesmo assim, resolveu arriscar. No sábado marcado, foi até o endereço que Mojica havia lhe dado. Parou na frente do prédio, conferiu mais uma vez o número e achou que havia algo de errado. Era uma sinagoga! Mas uma plaquinha na porta – Cia. Cinematográfica Ibéria – indicava que o tal “estúdio” de Mojica era ali mesmo. Nunca vira lugar tão furreca: a porta não tinha fechadura, as janelas estavam todas quebradas e a pintura já tinha visto melhores dias. Ele subiu as escadas, tomando cuidado para não tropeçar nos degraus lascados. Chegou a uma pequena sala, onde uma secretária trabalhava numa escrivaninha que parecia ter sido achada no lixo. Era Nilce.

          Poucos minutos depois chegou Mojica, acompanhado por Augusto Pereira. Ele cumprimentou Lucchetti e o levou para ver os cenários de Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver. Lucchetti viu a floresta montada no quintal e o inferno de gelo. Ficou decepcionado com os cenários chinfrins (quando assistiu o filme, meses depois, não acreditou que aquelas cenas impactantes haviam sido rodadas em cenários tão vagabundos). Mojica apresentou-o a vários alunos como “nosso novo colaborador”.

          - Você veio em boa hora. Estou com financiamento para fazer um filme e quero que você escreva o roteiro!

          Lucchetti quase caiu de costas. Mojica continuou:

          - Vai ser um filme de três episódios, de meia hora cada, chamado O Estranho Mundo de Zé do Caixão.

          - O senhor tem o argumento escrito?

          - Não tenho não, mas vamos sentar ali um instantinho que eu te conto como são as histórias...

          Mojica levou-o para um canto e, em poucos minutos, fez um resumo do que queria:

          - O primeiro episódio é sobre um velho que constrói bonecas com olhos humanos. Nesta história põe uns playboys, uns motoqueiros, que esse pessoal tá na moda, né? O segundo é sobre um cara pobre que se apaixona por uma moça da alta sociedade. Só que ela morre e ele acaba transando com o cadáver dela no caixão. A terceira história é sobre um casal que ridiculariza Zé do Caixão num programa de TV. Daí ele leva o casal para sua mansão e tortura os dois, para provar que o instinto sempre supera a razão.

          - Só isso?

          - Só. Use essas ideias e me escreve um roteiro bem caprichado!

          Lucchetti não acreditou em sua sorte. Saía de casa certo de que o cinema era um sonho impossível e voltara empregado! Assim que chegou em casa, pôs papel na máquina de escrever e trabalhou furiosamente nas histórias. Nove dias depois, havia terminado o roteiro de O Estranho Mundo de Zé do Caixão.               

 

Enquanto isso, Mojica trabalhava na montagem de Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver. O filme ficou pronto em setembro de 1966. Augusto e Fracari queriam lança-lo imediatamente, para aproveitar a polêmica carioca em torno de Á Meia-Noite Levarei Sua Alma, mas os censores não deixaram.

          Naquela época, para conseguir um emprego de censor federal no Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP), não era preciso mais que um diploma superior. Qualquer um podia se candidatar. Os candidatos passavam por um teste, que consistia em assistir a um filme ou ler um livro e depois emitir um parecer sobre os trechos que julgavam dignos de proibição. Os autores dos pareceres mais satisfatórios tornavam-se censores oficiais – também chamados de “técnicos de censura” – e passavam a ser responsáveis pela escolha dos filmes, peças e livros que 90 milhões de brasileiros teriam o direito de desfrutar.                                                          

          A “Bíblia” dos censores era um manual de 26 páginas que continha as diretrizes para emissão de certificados de censura. O documento dizia que o objetivo da Censura era “proteger a saúde mental e física do jovem” e listava várias “situações proibidas” que deveriam ser cortadas de qualquer obra, como “vantagens auferidas pelo herói/heroína na prática de ações negativas”, “ausência de punição para o herói ou heroína que comete deslize”, e “elogios à atuação negativa de personagens centrais”. Depois de decorar o manual, os censores iniciavam seu trabalho: todo dia, trinta deles se revezavam para avaliar onze filmes, seis peças, quatro músicas, oito capítulos de telenovela e trinta capítulos de radionovela.

          A censura de cinema era realizada por grupos de três ou quatro censores. Eles assistiam aos filmes em uma pequena sala. Quando viam alguma cena que julgava inapropriada, apertavam a campainha e o projecionista colava um pedaço de papel no rolo do filme, indicando a posição da cena. Depois da sessão, os técnicos reviam as cenas selecionadas e decidiam se a fita poderia ser exibida ou não. Na maioria das vezes os filmes eram liberados com cortes, mas, em alguns casos, o número de cortes exigidos era tão grande que não se justificava, na opinião dos censores, a liberação da fita.

          A verdade é que os critérios usados pela Censura na avaliação das obras eram realmente subjetivos e sujeitos a interpretações das mais diversas. O manual dos censores pedia a proibição de qualquer cena que “ferisse o decoro público”, mas como ninguém nunca havia definido exatamente o que vinha a ser o tal “decoro público”, a decisão acabava sendo tomada com base na opinião pessoal de cada censor. Isso gerou alguns casos curiosos: o filme erótico Kate no Mundo do Nudismo foi liberado com alguns cortes, mas seu trailer, avaliado por outro grupo de censores, foi proibido. Já Viva Maria (1964), de Louis Malle, interditado por “incitamento à subversão”, acabou liberado por ordem do general Riograndino Kruel, diretor do Departamento de Polícia Federal, que disse ter dado boas gargalhadas com as “guerrilheiras” Brigitte Bardot e Jeanne Moreau.

          A Censura ainda tentou botar alguma ordem nas diretrizes de avaliação: o chefe do SCDP, Pedro José Chediak, baixou uma portaria proibindo o strip-tease nas telas do Brasil. Seu sucessor, Romero Lago, modificou a portaria: o strip-tease seria permitido, contanto que a câmera estivesse a pelo menos 5 metros do objetivo.

          Os argumentos para justificar certos cortes eram os mais estapafúrdios. O mesmo Chediak que proibira o strip-tease mandou cortar quatro cenas de O Silêncio (1963), de Ingmar Bergman, e explicou: “Como é que aquela gente do interior da Bahia vai entender ou suportar um filme como esse, se não for cortado?”. Curiosamente, Chediak podou as únicas cenas que poderiam interessar a alguém do interior da Bahia: duas sequencias de sexo, uma de masturbação e outra em que aparecia o seio de uma mulher. Não contente em retalhar o filme, o censor ainda espinafrou Bergman: “O Silêncio não tem mensagem nenhuma, é vazio. O Ingmar Bergman fez fama e deitou na cama”.

          Quando Augusto Pereira submeteu Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver à Censura, os censores nem pestanejaram: votaram pela proibição. Os pareceres dão uma boa ideia da revolta que o filme causou. O censor Manoel Felipe de Souza Leão escreveu:

 

O filme ora examinado focalizado as facetas de um autêntico débil mental que não acreditava na reencarnação (...) O filme é de um mau gosto terrível. Os produtores tentam levar ao público um trabalho do gênero terror, usando e abusando de pancadaria, torturas, sexo e violência extremada. As sequencias são desordenadas, indicando a instabilidade de toda a equipe técnica (...) O desempenho do cast deixa muito a desejar, pois se assemelha a um verdadeiro teatro filmado, sem aquela naturalidade existente nos elencos de primeira categoria que encontramos no próprio cinema nacional.

          O hino sacro “Aleluia”, de Handel, e cenas tiradas (ao que sentimos) da Divina comédia de Dante são “misturas” aplicadas ao filme com o fim de agradar. Não observamos qualquer mensagem na obra apresentada. O homem sádico não sofre a mínima SANÇÃO (sic) pelas torturas e assassinatos que praticou contra vítimas indefesas.

          Ao ser perseguido (no fim do filme), o produtor limita-se a apresenta-lo caído, gritando aos quatro ventos que a vida eterna não existe simplesmente (...)

          Trata-se, enfim, de uma obra primária em matéria de arte cinematográfica que vem prejudicar a própria evolução do moderno cinema nacional. Somos, pois, de opinião que o filme examinado não tem condições de ser liberado, salvo melhor juízo da douta chefia do SCDP (...)

 

          O censor Constâncio Montebello, aparentemente sofrendo um flashback para a época da Inquisição, ficou escandalizado com a blasfêmia de Zé do Caixão:

         

          História de um agente funerário (...) que demonstra ser portador de doença mental complexas: é contra Deus e as religiões, embora acredite no Diabo e no inferno; é um assassino sádico com todos os requintes de perversidade; sua conduta é completamente amoral, visto desconhecer os limites da imoral e da moral. O filme deseja, e consegue, impressionar por suas cenas de terror, de sadismo sexual, de asco etc. inclusive finalizando com a morte do agente funerário negando a existência de Deus e da religião que procurava, por intermédio de um padre católico, salvar sua alma (...) Pelo exposto acima, não vejo condições para a liberação do filme.

 

          A reação mais extremada, no entanto, foi da censora Jacira Oliveira:

         

          Se não fugisse à minha alçada, seria o caso de sugerir a prisão do produtor.

         

          Com o filme interditado, Augusto teve de iniciar um longo e tedioso processo de negociação com a Censura. O procedimento normal num caso desses era fazer alguns cortes nas cenas mais pesadas e submeter novamente o filme aos censores, até que se chegasse a uma versão satisfatória. Mojica e Augusto cortaram trechos de uma cena violentíssima, na qual Zé do Caixão queimava uma mulher viva (interpretada por Paula Ramos). Mas não foi o suficiente para aplacar a ira dos carolas, que novamente votaram pela interdição.

          O filme foi enviado a Brasília três vezes e, cada vez, voltava mais retalhado. Os censores primeiro exigiram cortes nas cenas das cobras e aranhas; depois ordenaram que fosse excluída toda a sequência da mulher sendo queimada (curiosamente, um pequeno trecho desta cena pode ser visto nos créditos de abertura do filme). A cena que mais enfureceu os censores, no entanto, foi mesmo a da morte de Zé do Caixão. Nesta sequência, o personagem leva vários tiros, cai num lago e, antes de morrer, confirma sua descrença em Deus. Um padre implora a Zé do Caixão para que ele peça perdão a Deus por seus pecados, mas Zé grita: “Eu não creio! Não creio!”, enquanto afunda nas águas pestilentas do lago. Augusto Pereira foi avisado de que a cena precisaria ser modificada.

          Ele procurou um dos chefes da Secretaria da Censura, Augusto da Costa – ex-zagueiro do Vasco e capitão da Seleção Brasileira na Copa de 50 -, para tentar um acordo. Costa disse que não liberaria o filme enquanto o final não fosse mudado para algo “mais positivo”. Ele sugeriu dublar a cena final, trocando o “Eu não creio!” de Zé do Caixão por alguma declaração de arrependimento e fé no Senhor. Augusto Pereira concordou. Era isso ou nada. Além de exigir a redublagem da cena, o censor vascaíno teve o descaramento de escrever o texto que deveria ser dito por Zé do Caixão. Ele chamou outro censor, Coriolano de Loyola Fagundes (que, anos depois, se tornaria chefe da Censura) e juntos bolaram a seguinte pérola:

 

Deus, Deus...Sim, Deus é a verdade! Eu creio em tua força! Salvai-me! A cruz, a cruz, padre! A cruz, o símbolo do filho...

         

          Mojica teve de voltar ao estúdio de sonorização, reconvocar o dublador Laercio Laurelli e gravar novamente a fala, transformando Zé do Caixão num sujeito crédulo e arrependido. Como se não bastasse tamanha humilhação, foi obrigado também a adicionar um ridículo texto sobreposto à imagem final:

         

          O homem só encontrará a verdade quando ele realmente quiser a verdade.

         

          No Correio da Manhã, Salvyano Cavalcanti de Paiva esbravejou:

 

          E o diretor da Censura, que pelo visto é um catolicão aspirina, embora ciente de que no Brasil o Estado está separado da Igreja, deseja impor seu ponto de vista à maioria. Tanto que declara que a Censura, para liberar o filme de José Mojica Marins, Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver, obrigou o realizador a mudar o caráter do personagem central. Este, na versão original, negava Deus (ou Zeus, ou Maomé, ou Buda, ou Confúcio, ou Brama, ou Jeová, ou Cristo, ou Oxóssi) até a hora da morte. A Censura impôs que o personagem, na hora final, reconhecesse que estava errado e que Deus existe. Isto é o que a Censura chama de “mensagem positiva”. É um acinte ao direto do artista, ao direito do pensador. É um abuso. É, sobretudo, mistura de burrice e subversão, além de corrupção notória, a corrupção do medo, a troca de favores. A chantagem mais deslavada... Quem será mais cretino? O diretor, que cedeu? O censor que o obrigou a “modificar” a mensagem, sob pena de ser comercialmente prejudicado?

         

          Mojica, que até então não havia aberto a boca para reclamar da Censura, logo percebeu a publicidade que isso poderia gerar para seu filme. Em 13 de março de 1967, quando Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver finalmente estreou, em catorze cinemas de São Paulo, ele começou a cutucar a Censura em suas entrevistas. Daí em diante, nunca mais perderia uma oportunidade de se dizer perseguido e injustiçado. Adjetivos como “revoltado”, “maldito” e “incompreendido” começaram a pipocar em todos os artigos escritos sobre ele:

         

          Quando Mojica mostrou seu filme para a Censura, todos ficaram horrorizados. “Inicialmente queriam queimar o filme e me prenderam”, disse.

          Notícias Populares, 10 de março de 1967.

 

Sempre fui perseguido, e até hoje não sei o motivo.

          Jornal da Tarde, 13 de março de 1967.

         

          Pena que a Censura – sempre tão obtusa – tenha prendido o filme por tanto tempo, privando o público de um espetáculo que ele esperou com paciência para aplaudir, sabendo que não teria decepções com este ótimo filme.

          Jornal da Tarde, 14 de março de 1967.

         

          Um strip-tease feito pela artista (Paula Ramos) foi cortado pela Censura, deixando Paula triste.

Folha de S. Paulo, 21 de março de 1967.

 

Mojica diz: “Acho bom o pessoal assistir logo à fita, antes que a Igreja ou a Censura comece a fazer onda”.

Correio Braziliense, 26 de março de 1967.

 

Foi nessa época que Mojica começou a demonstrar seu incrível talento para a autopromoção. Antes de ser “descoberto” por Sganzerla, os artigos sobre seus filmes limitavam-se a jornais sensacionalistas de São Paulo e a pequenos folhetins de bairro. Agora, com o sucesso de Á Meia-Noite e Esta Noite e com os elogios de alguns cineastas e críticos famosos, os jornais mais importantes do país também começaram a se interessar por ele.

As oportunidades de divulgação se ampliaram: Mojica descobriu que jornais eram, no fim de contar, apenas espaço em branco esperando para ser preenchido. Ele passou a visitar regularmente as redações, fez amizade com vários colunistas e começou a bolar diversas formas de manter seu nome sempre na mídia. A primeira de suas engenhosas estratégias de marketing foi marcar a sessão de pré-estreia da Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver para uma sexta-feira à meia-noite, e enviar um engraçado convite em forma de caixão. Só isso valeu notas nos jornais Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, Notícias Populares, Última Hora, Jornal da Tarde, Diário Popular, Gazeta Esportiva e Diário da Noite. No dia seguinte à estreia de Esta Noite, Mojica passou a distribuir notas diárias à imprensa, com informações sobre a “extraordinária performance de bilheteria de seu filme”. Vários colunistas morderam a isca:

 

O filme de Mojica Marins, Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver, bateu todos os recordes de bilheteria do Art-Palácio em seu lançamento. Uma hora antes da primeira sessão já havia fila dando volta no quarteirão da Conselheiro Crispiniano. Deve ter rendido, num único dia, quase 20 milhões, quantia que a maioria dos filmes brasileiros não consegue faturar em uma semana. Mojica, que não sai da porta do Art-Palácio, garante que chegará em São Paulo aos 500 milhões.

Notícias Populares, coluna de Moracy do Val, 15 de março de 1967

 

          No dia seguinte, o mesmo Moracy do Val daria mais uma forcinha para Mojica:

         

          O diretor José Mojica Marins, em visita ao NP, afirma que 60% do público de Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver é feminino. Comprovação da tese de Nelson Rodrigues (...).

 

          Prova da eficiência do marketing de Mojica é que os jornais Folha de S. Paulo, Diário da Noite e Diário Popular publicaram reportagem simultâneas e praticamente idênticas sobre o sucesso de Esta Noite. Os três jornais informavam que mais de 40 mil pessoas já haviam assistido ao filme nos três primeiros dias de exibição e que, até o fim de semana seguinte, calculava-se que o público total chegara aos 100 mil. Quem “calculava” era, naturalmente, Mojica.

          Ele continuava com suas magistrais jogadas de marketing pessoal: no meio de abril, conseguiu agendar a exibição de outros três de seus filmes e convenceu os jornais que estava batendo um recorde brasileiro de exibição simultânea, com quatro filmes em cartaz ao mesmo: Meu Destino em Tuas Mãos no Cine Joia, A Sina do Aventureiro no Apolo, Á Meia-Noite Levarei Sua Alma nos cines Coral e Éden e Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver com catorze cinemas da capital.

          Mojica não fazia distinção entre jornais pequenos e grandes. Para ele, qualquer publicidade era lucro. Tanto quer promoveu uma noite de autógrafos com as atrizes Nádia Tell e Paula Ramos num cinema do Ipiranga e depois levou suas “estrelas” para uma boca-livre numa pizzaria local. O jornal Folha do Ipiranga, co-patrocinador da festança, descreveu assim o evento: “Em seguida, a comitiva foi à Grelha Don Zanella, onde o proprietário recebeu-os fidalgamente e proporcionou variadíssimas pizzas. Durante o ágape, que decorreu em ambiente bastante animado e perante numerosos autógrafos, terminando, assim, uma noitada em que o cinema nacional conquistou completamente as simpatias dum dos bairros mais tradicionais da nossa grande capital”.

          Nem todas as reportagens, no entanto, foram positivas. O jornal Amanhã viu na filosofia da “busca do filho perfeito” de Zé do Caixão semelhanças com o nazismo e estampou um virulento título em letras garrafais: “nazismo vai encarnar no teu cadáver”. O cineasta Roberto Santos já havia alertado Mojica para a possibilidade de acusações como essas e o instruiu sobre como deveria responder às reclamações. Quando o repórter do Amanhã procurou Mojica para esclarecer a história, ele respondeu na bucha: “Falaram por aí que minhas ideias eram parecidas com as de Hitler. Então fui ler o Mein Kampf, não sei se você conhece. Lá o Hitler explica o que é a raça superior. É diferente do que eu penso. Para ele a raça é problema físico, para mim é mental”.

         

          Os críticos continuavam a se engalfinhar em discussões sobre Mojica: enquanto alguns viam em Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver a mão de um gênio do primitivismo, outros nem levavam o filme a sério. No Estadão, Alfredo Sternheim, respeitado crítico e assistente de direção de Walter Hugo Khouri em Noite Vazia (1964), escreveu:

         

          Se, por um lado, sempre há filmes que enobrecem a sétima arte no Brasil, sugerindo melhores perspectivas para a indústria cinematográfica (Amor, Desamor, para nos atermos a um caso recente) (N. dos A.: dirigido por Gerson Tavares), por outro lado há películas totalmente desabonadoras e que só servem para desprestigiar o nosso cinema perante o público. É o que se verifica agora em Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver  (...) Sequencia de Á Meia-Noite Levarei Sua Alma, o atual cartaz do Cine Art-Palácio não consegue ser nem uma boa continuação mais aprimorada, nem uma realização autônoma assistível. A canhestrice, a vulgaridade, o grotesco se fazem presentes, tanto na história como na direção, cenografia e nos inúmeros efeitos sanguinolentos, conforme se verifica naquela sequencia que é a melhor atesta o mau gosto, bem como nos momentos eróticos, que resultam pornográficos diante das marcações impostas (...)

          O lamentável não é tanto a película (...) mas sim o fato de a mesma estar sendo levada a sério em camadas de nossa intelectualidade, numa atitude talvez irônica, e que parece inspirada na mordacidade inoperante e desenxabida com que muitas vezes se manifestam os críticos franceses adeptos da Godard. Há nisso um infantilismo que serve apenas para desprestigiar a crítica na sua formação analítica, desvalorizando-a aos olhos do público e comprometendo o diálogo entre ambos.

         

          O crítico do jornal Shopping News, Rubens Francisco Stopa, também esculhambou Mojica:

         

          Ninguém poderá tomar em consideração a filosofia de almanaque do sr. Marins, ou deixar de achar risível sua cenografia de fundo de quintal, desde que possua inteligência pelo menos em grau médio. Além disso, o mau gosto e o primarismo imperam na fita toda. Veja-se, por exemplo, a cena do inferno, que invariavelmente provoca gargalhadas na plateia (...) Em suma: uma fita com a qual ninguém deve perder seu tempo, a não ser que seja crítico e, como nós, precise assisti-la por obrigação. Cotação: Péssimo.

 

          Um dos poucos críticos a ver qualidades no filme foi Paulo Ramos, da Folha de S. Paulo, que destacou o “espírito nietzscheano” de Zé do Caixão (“misto de Belzebu e Zaratustra”) e encantou-se com a sequência do inferno:

         

          Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver poderia ser acusado de totalitário e fascista se tivesse um pingo de conteúdo político. Mas nem filme de suspense é, pois Mojica não recorre ao golpe baixo do susto atrás da cortina, ou à falta de imaginação de vampirinhos coloridos. Trata-se, isto sim, de um filme fantástico, satânico, onde visões potentes se juntam à falta do convencional “bom gosto”, onde a vida é abandonada pelos motivos mais primitivos e aos impulsos mais irreais, onde os conflitos interiores de um homem nos revelam um mundo nada realista, um mundo de “imagens imaginadas”, um mundo no qual a noite dissolve todas as formas...

          (...) O inferno de Zé do Caixão, o melhor episódio do filme, é um verdadeiro pesadelo de olhos abertos – digno dos pincéis de um Bosch, de um Brueghel, da pena de um Edgar Allan Poe. Mas é no apelo a uma simbologia nitidamente primitiva que ele se revela. São as correntes de ferro, os sonhos exprimindo as tendências mais secretas, a hipervirilidade do inimigo, os crânios nus, as aranhas negras, as serpentes como imagem de agressão sexual contra as mulheres. A história é velha: Eva e a cobra; a morte de Cleópatra etc...Esperemos que Mojica continue filmando na sua velha sinagoga do Brás, truculento e primitivo como sempre. Pois o dia em que adquirir lucidez crítica, ou se deixar envolver por meia dúzia de “snobs” que já começam a elogiá-lo, será um cineasta liquidado.

         

          No Correio da Manhã, Salvyano Cavalcanti de Paiva – sempre ele – saiu em defesa de Mojica, comparando-o inclusive a Humberto Mauro, outro cineasta que, em sua opinião, teria sido vítima do mesmo tipo de preconceito por parte da crítica brasileira:

 

          Muito bem, estamos todos de acordo: os que deram bola preta e que deram constelação de estrelas a Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver. Esteticamente, é primário, inferior a Á Meia-Noite Levarei Sua Alma. Mas seus valores psicológicos merecem estudo: definem a personalidade do diretor através de seu personagem central, mítico e fascinante em suas contradições. Um neurótico, José Mojica Marins? Menos, talvez, do que os que o perseguem ou dele debocham, porque não o entendem.

          Por que aceitamos seus filmes, ainda que os consideremos esteticamente primários? O cinema de José Mojica, no ciclo inaugurado com o aparecimento de Zé do Caixão, é “primitivo” – e só como tal pode e deve ser examinado. Nesse primitivismo, entretanto, serão importantes os seus filmes pela autenticidade, que muitos fingem não ver. Arriscamo-nos a proclamar o que, no futuro, estamos certos, analistas desapaixonados irão constatar, reconhecer: a eclosão do cinema de Marins representa fato novo, da dimensão do que hoje se tem como pacífico a respeito de Humberto Mauro, cineasta também puro, intuitivo, genuíno em sua brasilidade e na abordagem formal – e durante tantos anos subestimado pela crítica, esta sim a “velha crítica”, então preocupada em discutir as teorias alienígenas ainda não sistematizadas, enquanto descriam e esnobavam, seus expoentes, dos homens e das coisas brasileiras.

 

          Em outubro de 1967, Rogério Sganzerla publicaria no jornal Artes uma das mais belas crônicas já escritas sobre o cinema de Mojica, um texto que capta com perfeição a essência de sua arte primitiva e que vê em seus filmes, inclusive, uma solução para a busca de ume estética própria ao cinema latino-americano:

         

          O NATURAL É TÃO FALSO. SOMENTE O ARQUIFALSO É REALMENTE REAL. Estou falando de José Mojica Marins, cineasta do excesso e do crime (...) Dificilmente alguém no Brasil conseguirá o que ele está conseguindo, longe de todos, sem cultura nem dinheiro.

          Antigamente eu respeitava os cineastas brasileiros porque conseguiam fazer seus filmes. Hoje eu reconheço os que fazem o seu cinema. Á Meia-Noite Levarei Sua Alma pertence à classe dos filmes especiais: não interessa se é bom ou ruim: o filme é forte. De boa-fé, troco vinte anos de cinema paulista pelos 20 segundos em que Zé do Caixão, fugindo na floresta de papelão, abre os braços e grita: “A quem pertence a Terra? A Deus? Ao Demônio? Ou aos espíritos desencarnados?”.

          Se fosse imaginar um filme invertido, em negativo – ou “diferente” como eu pedia no meu Documentário (N. dos A.: curta-metragem que Sganzerla dirigiu em 1966), seria Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver. Ainda não sei bem o que é, só sei que Mojica arrisca-se – como bem observou Carlos Von Schmidt – entre o tudo e o nada. “Do nada faz o tudo, ao contrário daqueles que em cinema têm tudo e não fazem nada!”

          Ele começa do nada, no Brás, e faz tudo – ao contrário da maioria, porque sendo simples e inculto, não tem prevenções em filmar um sonho, um plano-sequência de nove minutos ou misturar sadismo com piadinhas infames. Daí a mistura alucinante de todos – mas todos mesmo – gêneros: em Á Meia-Noite Levarei Sua Alma as referências vão do capa-e-espada à science-fiction, passando pelo desenho animado e o circo.

          Divertindo ou apavorando, batendo ou apanhando fazendo sexo ou comendo pastel, Mojica promete filmes cada vez mais estranhos e fortes, cumprindo-os com a violência dos grandes solitários. Seu cinema vai por aí e ninguém sabe o que pode acontecer. Em Mojica, o esplendor e a glória da mise-en-scène brasileira. Para ser sincero ela deve confessar-se espontânea e mentirosa. E tudo é uma mesma coisa ingênua e sanguinária (...)

          Se anteriormente eu detestava Fellini, depois de conhecer Mojica e de ir ao Festival de Marília começo a ter minhas dúvidas. Situando o cinema brasileiro no nível do cinema brasileiro, Mojica surge como um dos nossos paradoxos desses últimos anos. A um passo da demência e da genialidade, ele defende-se de suas neuroses com filmes.

          Além de ser um personagem, Mojica descobriu um caminho: quanto mais realista a atmosfera em que emerge o absurdo, mais absurdo será o resultado. Como todos sabem, o cinema latino-americano tem de ser um cinema radicalmente voltado nesse sentido, aceitando-se enquanto miséria e o delírio provocado pela miséria. No final das contas, Mojica também é um desmistificador (não preciso, nem quero, falar aqui em Murnau e Buñuel. Não tenho nada com a literatura cinematográfica, não guardo arquivos em casa). Poderia, por outro lado, dizer que Mojica tem um pouco daquilo que mais amo em Ray, Hawks, Weeles, Fuller e certos Godards. Isso, a minha declaração de princípios: FINALMENTE HÁ DUAS RAÇAS DE CINEASTAS. EM PRIMEIRO LUGAR, OS QUE CONSEGUEM ESFRIAR E AO MESMO TEMPO SUPER-EXCITAR A NARRATIVA E, DEPOIS, OS OUTROS.

         

          Enquanto isso, Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver continuava a lotar os cinemas. Augusto Pereira fez 25 cópias do filme, contratou uma equipe de fiscais – chefiada por Gaúcho – e começou a distribuição do filme na Grande São Paulo.

          Se fazer um filme no Brasil já era tarefa dificílima, receber o dinheiro da bilheteria era muito mais complicado. Numa época em que não existiam ingressos padronizados, nem fiscalização pública nas salas, as empresas distribuidoras tinham que usar fiscais próprios para vistoriar as bilheterias e dividir a renda com os donos dos cinemas.

          A coisa toda funcionava num esquema muito mambembe: as distribuidoras acertavam com os exibidores as datas de exibição do filme e mandavam um fiscal para o cinema, levando a cópia do filme debaixo do braço. Este fiscal tinha que contar o número de ingressos vendidos e depois dividir o dinheiro com o dono do cinema. A divisão, na teoria, deveria ser feita da seguinte forma: 10% da bilheteria ficava com a prefeitura, como imposto. Os outros 90% eram divididos, meio a meio, entre o exibidor e o distribuidor. Da sua parte, o distribuidor ficava com 20% nos municípios e com mais de 2 milhões de habitantes e 30% nos de menos de 2 milhões, e repassava o resto ao produtor do filme. Tirando o dinheiro da prefeitura, do exibidor e do distribuidor, o produtor, no final das contas, ficava com minguados 30% da bilheteria.

          O problema é que nem sempre os donos dos cinemas aceitavam o combinado e invariavelmente tentavam enganar os fiscais, vendendo mais ingressos do que afirmavam em seus borderôs. As táticas usadas para ludibriar os fiscais eram as mais criativas possíveis: alguns cinemas tinham duas entradas, com guichês diferentes. Ao preencher o borderô, o dono do cinema só incluía os ingressos vendidos em um dos guichês. Outros cinemas vendiam ingressos separados para o térreo e o balcão, registrando apenas uma das seções no borderô. O mais comum, no entanto, era que os exibidores partissem mesmo para a ameaça física. Não eram raros os casos de fiscais obrigados a assinar recibos sob a mira de revólveres ou sob ameaça de surras e linchamentos. Ser fiscal de cinema em 1967 era tarefa para cabra macho.

          A situação era tão feia que o próprio Instituto Nacional do Cinema (INC), órgão criado no ano anterior pelo presidente Castello Branco para coordenar a atividade cinematográfica no país, chegou a sugerir que distribuidores e exibidores – especialmente os do subúrbio e interior – acertassem um “preço fixo” por cada filme, para evitar fraudes. Os exibidores, obviamente, não aceitaram a sugestão.

          Em 1964, outro órgão do governo, o Grupo Executivo da Indústria Cinematográfica (GEICINE), antecessor do INC, calculara que, dos 350 milhões de ingressos vendidos no Brasil durante aquele ano, apenas metade havia sido declarada. O resto desaparecera misteriosamente nos cálculos fictícios de exibidores e fiscais.

          Havia ainda o problema da intensa movimentação das cópias dos filmes, que dificultava sobremaneira o trabalho de contagem de bilheteria. Em 1967, a maioria dos cinemas de São Paulo eram salas de bairro no subúrbio. Como não havia muitos aparelhos de TV na época (o grande boom da televisão no Brasil ocorreria durante a década de 70, quando o número de aparelhos subiu de 5 milhões para quase 20 milhões), estes cinemas eram a única fonte de filmes para os moradores. Os cinemas, por isso, não podiam exibir o mesmo filme por muito tempo, limitando-se a dois ou três dias, apenas o tempo necessário para que todos os moradores do bairro pudessem assisti-lo.

          Por causa dessa mobilidade das cópias, os fiscais eram obrigados a fazer verdadeiras excursões com o filme debaixo do braço. Um roteiro típico: dois dias num cinema, em Cidade Ademar, zona sul da cidade; depois mais dois dias no Jardim Ângela, seguido por um dia em São Caetano do Sul. De lá, o fiscal dava uma parada em Cangaíba, na zona leste, seguida de outra escala no Tremembé, zona norte. Um pinga-pinga infernal.

          Organizar esses roteiros era complicadíssimo. No escritório de Augusto, Gaúcho mantinha um mapa de São Paulo, com alfinetes coloridos indicando a posição de casa fiscal e de cada cópia. Tratava-se de uma verdadeira operação de guerra. Às vezes, a operação falhava: certa vez Gaúcho mandou um fiscal para um cinema em Cosmópolis, perto de Campinas. Na rodoviária, o sujeito se atrapalhou com o nome da cidade e foi para em Carlópolis, no oeste do Paraná.

          O trabalho de fiscalização de borderôs era lento e cansativo, mas os resultados de bilheteria de Esta Noite compensavam qualquer esforço. O filme ia muito bem nos cinemas do centro da cidade e no interior. Naquela época, o público humilde dos subúrbios e do interior era mais propenso a assistir filmes brasileiros, por causa do alto número de analfabetos e semi-analfabetos, que tinham dificuldade para ler legendas dos filmes em inglês. As estatísticas não mentiam: nos cinemas de bairro e interior, os filmes nacionais atraíam o mesmo público que as fitas importadas. Já nos cinemas do centro da cidade, os filmes estrangeiros atraíam três vezes mais espectadores.

          No caso de Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver, não houve diferença: a fita explodiu no centro como no subúrbio. Hoje é impossível saber com exatidão o público do filme, já que as empresas distribuidoras não guardaram os borderôs e 70% dos cinemas que o exibiram não existem mais. É possível, no entanto, fazer um cálculo aproximado, levando-se em consideração os números de bilheteria em São Paulo. Um dos chefes da fiscalização do filme, Virgílio Roveda, o Gaúcho, garante que Esta Noite foi exibido em 186 cinemas no estado de São Paulo, para um público de 1,5 milhão de espectadores. Dados do INC mostram que São Paulo representava entre 25% e 30% do total de público do país. Sabendo que o filme de Mojica foi um sucesso em todo o Brasil, lotando salas em Caruaru (PE), Vacaria (RS), Goiânia (GO) e Manaus (AM), pode-se calcular – de forma aproximada, claro – que Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver foi assistido por um público de 5 a 6 milhões de brasileiros.

          Também é impossível fazer um ranking confiável das bilheterias de filmes nacionais, já que não existem dados oficiais sobre o público das primeiras fitas de Mazzaropi ou das chanchadas de Oscarito e Grande Otelo. Em 1984, no entanto, a Embrafilme publicaria uma lista dos filmes brasileiros de maior público lançados desde 1970. Se Esta Noite fosse incluído nesta lista, ficaria entre os cinco primeiros, atrás de Dona Flor e Seus Dois Maridos (10,7 milhões) e A Dama do Lotação (6,5 milhões) e empatado com O Trapalhão nas Minas do Rei Salomão (5,7 milhões) e Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia (5,4 milhões).

          O filme rendeu uma fortuna, mas nenhum centavo foi para o bolso de Mojica. Dias antes do lançamento, não acreditando muito no sucesso da fita, ele abriu mão de sua parte para saldar uma dívida com o produtor Augusto Pereira. Augusto, por sua vez, conseguiu ficar dono do filme sem botar um níquel na produção. Depois de terminar a filmagem com o dinheiro de Antônio Fracari, ele conseguiu um empréstimo de um agiota e comprou também a parte de Fracari. Ficou rico, enquanto seu amigo, Mojica, mesmo tendo dirigido dois filmes campeões de bilheteria, continuava na pindaíba.

 

Publicado originalmente em BARCINSKI, André & FINOTTI, Ivan. Maldito: a vida e o cinema de José Mojica Marins, o Zé do Caixão. São Paulo: Editora 34, 1998.

sexta-feira, 2 de setembro de 2022

Mojica early years, parte VI: 1963-1964: Nasce Zé do Caixão

         Capítulo 5: 1963-1964: Nasce Zé do Caixão

        


              Por André Barcinski e Ivan Finotti

 

         O fracasso de Meu Destino em Tuas Mãos foi uma lição amarga. Mojica decidiu que nunca mais faria um filme apenas para agradar aos outros.

         - De que adianta agradar aos padres e fazer um filme que ninguém quer ver? – disse a seus alunos. – Temos que fazer os filmes que o povão quer ver! E o povão quer é ação e sexo! Ninguém quer pagar para ver coisas chata!

         Mojica sugeriu filmarem Geração Maldita, um roteiro policial que ele tinha guardado há quase dez anos. Augusto Pereira, ainda abalado financeiramente pelo prejuízo e Meu Destino em Tuas Mãos, não quis nem saber de produzir o novo filme. A única solução para Mojica seria convencer seus alunos a comprar cotas da fita.

         Ele reuniu a turma e contou a trama em detalhes, caprichando na dramaticidade. Prometeu um filme cheio de ação e aventura, com muitas reviravoltas na história e um final apoteótico, em que bandidos e polícia se enfrentariam num tiroteio até a morte. Seu poder de persuasão era realmente extraordinário, e os alunos ficaram extasiados. Eles já se viam filmando arriscadas cenas de perseguição, tiroteios sangrentos e pancadarias mil. Ficou combinado que o filme seria rodado em 35 milímetros e financiado novamente pelo nebuloso sistema de cotas. Mojica não perdeu tempo e ordenou a turma que começasse imediatamente a arrecadação da verba:

         - Vale qualquer coisa: façam pedágio nos bairros, arrumem patrocínios com lojas, vendam cotas...Se for preciso, implorem para seus pais! Dinheiro é dinheiro, não me importa de onde venha!

         Enquanto seus devotos tratavam de conseguir a verba para o filme, Mojica passou os dias seguintes pensando no roteiro. Ele gostava da história, mas sentia que estava faltando um ingrediente crucial: sexo.

         - Temos bastante ação e violência, mas precisamos de algumas cenas mais quentes ! – disse Mário Lima. – Não tem nenhuma sacanagem nesse filme!

         Mojica foi para casa, prometendo pensar em sequencias da pesada. No dia seguinte, já entrou no estúdio aos gritos:

         - Venham todos! Tive uma ideia!

         A turma reuniu-se em volta de Mojica. Ele fechou os olhos e levantou os braços para o céu, como se estivesse tendo uma visão. Depois começou a narrar:

         - A câmera passeia por uma igreja lotada. Está acontecendo um casamento. Não é um casamento qualquer...O noivo é um dos bandidos mais perigosos da cidade. É o chefe de uma quadrilha de assassinos...Todos os comparsas estão na igreja...O padre diz: “Se alguém tiver alguma coisa contra esse casamento, que fale agora ou cale-se para sempre...” Daí um membro de uma gangue rival entra na igreja e diz: “Pera lá, seu padre, que eu tenho uma coisa aqui que pertence à noiva”, e tira do bolso uma calcinha. Ele diz: “Essa vagabunda esqueceu isso ontem lá no hotel!”. O noivo fica revoltado, puxa um 38 e começa um tiroteio do cacete dentro da igreja!

         Os alunos ficaram perplexos:

         - É boa a cena, mestre, mas não tem muito a ver com a trama, né? – perguntou um deles.

         - Não se preocupe, depois a gente inventa alguma cena de ligação.

         - Mas não vai ficar meio pesado? Esse troço de calcinha no hotel já não é direito, e ainda mais dentro da igreja!

         - Que nada, o público quer é isso mesmo! Não viu o que aconteceu quando a gente foi confiar na opinião dos outros? Agora temos que botar para quebrar! Nesse filme vai ter sexo e tiro de sobra!

         O próximo passo seria selecionar os atores. Para isso, Mojica usou uma tática tão esdrúxula quanto oportunista: em vez de dividir o elenco baseado no talento de casa aluno, distribuiu os papéis de acordo com a quantia que cada um havia desembolsado para ajudar a produção.

         - Se alguém se sacrificou pelo filme, merece um bom papel. Quanto mais grana, mais destaque!

         Mas a época era de vacas magras. Por mais que os alunos se esforçassem, não estavam conseguindo arrecadar o suficiente. Era, afinal, uma produção cara, com diversas locações, perseguições de automóvel, tiroteios, e um elenco numeroso. Os alunos eram uns pobretões, e os trocados que haviam juntado de parentes e amigos não seriam suficientes para rodar nem um terço da fita. Mojica pressentiu que não conseguiria a verba para o filme. Mais um fracasso, mais um projeto inacabado. Ou, pior, sequer iniciado! Seu nervosismo e insegurança voltaram com força redobrada. Voltou para casa deprimido. Naquela noite, demorou horas para pegar no sono...

 

         Era uma noite fria e Mojica estava deitado de costas no chão, ao relento. Por mais que tentasse, não conseguiria mover seu corpo. Estava paralisado. De olhos abertos para o céu, via as estrelas e, no canto dos olhos, alguns galhos de árvores. Julgou estar num jardim. Sentiu a aproximação de alguém. Viu o vulto de um homem. A imagem estava turva. Na escuridão, distinguia apenas uma silhueta.

         A figura começou a se delinear com mais claridade. Era um sujeito baixo, magro, vestido de negro da cabeça aos pés. Havia, no entanto, algo de muito peculiar naquela figura: o rosto. Sim, o rosto era familiar. O queixo pontudo, as sobrancelhas espessas, a barba rala...Ele lhe lembrava alguém...A imagem fez-se mais clara, e Mojica pôde ver o rosto da figura...Não, não era possível! Não podia ser! Olhou fixamente para o homem e confirmou o que temia...Era ele próprio! Mas como podia ser? Existiram dois Mojica?

         Sem dizer nada, o clone o pegou pelos braços e começou a arrastá-lo pelo terreno acidentado. Não era um jardim, mas um cemitério! Mojica foi arrastado por entre sepulturas, gritando em desespero. O clone parou em frente a uma cova aberta. Mojica levantou os olhos e leu a inscrição na lápide: JOSÉ MOJICA MARINS – 1936 -...

         Num reflexo, fechou os olhos, para não ler a data da morte. O clone começou a empurrá-lo para a cova aberta...

         - Não! Socorro! Pelo amor de Deus, me ajuda!

 

         Acordou empapado de suor. Rosita o abraçava.

         - O que foi, José? Meu Deus, como você gritou!

         - Foi um pesadelo horrível, Rosita! Nossa Senhora, se eu contar você nem acredita!

         Eram quatro da manhã quando acordou. Estava suando frio e seu coração batia a mil por hora. Que medo sentiu! Que pânico! Teria sido um sinal? O que significava aquele pesadelo? Estaria ele se matando pouco a pouco? Sim, deve ser isso, pensou, “Eu estou me matando, estou me arruinando!”. Sua vida estava em frangalhos, sua carreira também, e ele próprio era o culpado. Mojica não conseguiu mais pregar o olho. Decidiu levantar. Rosita havia voltado a dormir. Ele se vestiu e foi para a cozinha. Preparou um café, sentou-se à mesa, e começou a recordar o pesadelo...

         Já estava mais calmo. Os primeiros raios de sol entravam pela janela da cozinha. O bairro continuava em silêncio. Sozinho com seus pensamentos, pôde analisar o sonho com mais frieza...Que cena! Que dramaticidade! Se conseguisse passar para um filme um décimo da força daquela cena, faria um filme genial!

         Até que não era má ideia...

         O sonho foi como uma fagulha que incendiou sua imaginação: começou a lembrar dos filmes de Boris Karloff e Bela Lugosi que assistira no Santo Estevão. Como gostava de Drácula! E Frankenstein! Ninguém conseguia tirar os olhos da tela! Lembrou-se de Torre de Londres, com Karloff, e do Drácula de Lugosi...

         É isso! Um filme de terror! Por que não havia pensado nisso antes?

         Mojica correu para o quarto, despediu-se da sonolenta Rosita com um beijo displicente e saiu de casa. Andou apressado pelas ruas de terra. A Casa Verde estava acordando. Operários começavam a deixar suas casas rumo ao trabalho; padarias abriam as portas para receber os primeiros fregueses. Absorto em seus pensamentos, ele andava como um sonâmbulo, sem olhar para os lados, sem falar com ninguém. Parecia estar vagando por outra dimensão. Andou por quase uma hora e chegou ao estúdio na Frederico Abranches. Mas não subiu. Antes, tocou a campainha num apartamento no mesmo prédio.

         - Quem é? – gritou uma voz sonolenta.

         - Sou eu, o Mojica! Previso falar com você!

         - Mas tão cedo assim?

         - É uma emergência!

         Mojica ouviu o barulho do movimento dentro da casa. Depois de alguns minutos, uma moça abriu a porta. Era exatamente a pessoa que ele estava procurando: sua aluna e secretaria da Apolo, uma moça simpática e muito prestativa cujo nome em nada refletia sua eficiência e boa vontade. Chamava-se Neutra.

         - Desculpe acordar você numa hora dessas, Neutra, mas preciso da sua ajuda. Você tem que ir comigo pra escola, já!

         Quando os alunos começaram a chegar para a aula, lá pelas quatro da tarde, viram Mojica andando de um lado para outro do escritório, ditando cenas em voz alta para Neutra, que batia tudo à máquina. A moça, exausta, se esforçava para acompanhar o ritmo frenético da imaginação de Mojica:

         - Mais devagar, mestre, que eu não sou datilógrafa profissional!

         Algum tempo depois, Mojica finalmente disse “Fim”, para felicidade da moça, que estava prestes a desmaiar de fome e cansaço. Ele mandou reunir os alunos e, erguendo numa das mãos um calhamaço de papel datilografado, como um pastor exibindo a Bíblia, disse:

         - Vocês sabem o que é isso aqui? É a nossa salvação!

         Tratava-se de um filme de terro, explicou Mojica. Chamava-se Á Meia-Noite Levarei a Sua Alma e era a história de um coveiro chamado Zé do Caixão, que aterrorizava uma cidade, matava um monte de gente e no final era morto pelos espíritos de todas as pessoas que ele havia assassinado. Os alunos acharam aquilo uma tremenda palhaçada.

         - Mas mestre, e o filme de bandido?

         - É, nós gostamos tanto daquele filme!- reclamou outro.

         Mojica explicou que Geração Maldita seria muito caro e que já havia outros filmes policiais sendo feitos. Terror, não, ninguém fazia filmes de terror no Brasil. Eles seriam os primeiros. Seus discípulos não gostaram nada da ideia de desistir do filme policial, mas Mojica estava obcecado, e eles sabiam que, quando o mestre punha alguma coisa na cabeça, era impossível fazê-lo mudar de ideia. Ele contou seu pesadelo, disse que aquilo era um aviso do Além, e que eles se arrependeriam se contrariassem uma mensagem dos céus. A maioria se convenceu. Alguns, no entanto, desistiram de colaborar com dinheiro para o novo filme.

         Cerca de quarenta alunos toparam arriscar seu dinheiro na empreitada. Mojica estipulou um preço por cota – 100 mil cruzeiros, o equivalente na época a 100 dólares – e começou a vende-las. Mário Lima comprou três cotas; Arildo de Lima comprou logo quinze de uma vez. Até os pais de Mojica colaboraram, com três cotas. Em duas semanas, Mojica havia vendido oitenta cotas e arrecadado 8 milhões de cruzeiros (cerca de 8 mil dólares).

         Sem Augusto para organizar as coisas, o esquema das cotas virou uma bagunça: ninguém sabia a porcentagem que cada um representava sobre o orçamento total do filme, e a única prova que tinham de seu investimento eram pequenos pedaços de papel que Mojica recortou, escrevendo em cada um “vale uma cota”. Nem ele próprio tinha ideia do que estava fazendo. A única coisa que lhe interessava era que agora tinha algum dinheiro para começar o filme. Fez alguns cálculos rápidos e concluiu que ainda precisaria de pelo menos 6 milhões de cruzeiros.

         - Vou conseguir esse dinheiro nem que tenha de vender minha casa!

 

         Mojica organizou uma coleta entre parentes e tomou dinheiro emprestado de amigos. Seus pais, sempre dispostos a sacrifícios para ajudá-lo, venderam o velho Mercury Sedan 1947 e investiram tudo na fita. Mas ainda não era suficiente. Mojica começou a pressentir outro fracasso e entrou em depressão. Rosita estava preocupada. Nunca vira seu marido tão nervoso e irritado. Os dias passavam e o desespero de Mojica só aumentava. Ele chegava a chorar na mesa de tanta tristeza. A mulher tentava acalmá-lo:

         - Calma, José que as coisas vão se ajeitar!

         - Mas como, Rosa? Eu não tenho mais a quem pedir dinheiro! Minha carreira está acabada! Se eu não conseguir fazer esse filme, vou fazer uma maluquice!

         - Ah, é? Que maluquice?

         - Vou me matar!

         - Deixa de drama, homem!

         - Não é drama não! Juro que me mato!

         Mojica aproveitou a cena altamente dramática para dizer o que vinha ensaiando há dias:

         - Rosita, só tem uma solução: vamos sair de casa! Assim dá pra economizar o dinheiro do aluguel!

         - E morar onde, José? Debaixo da ponte?

         - Não, Rosa, você pode ficar um tempo com seus pais enquanto eu filmo, e logo depois que eu terminar a gente aluga outra casinha. É o único jeito!

         - Ainda não entendi como é que sair de casa vai economizar tanto dinheiro assim!

         - Não é só sair de casa, não, Rosa, tem mais...Nós precisamos vender os móveis também...

         - Você está maluco, José?! Vender a mobília? Você deve estar com um parafuso a menos!

         Mas José implorou. Agarrou os joelhos de Rosita e chorou como uma criança. Era a única solução, disse. Prometeu que era só por um tempo, que logo ele conseguiria recuperar o dinheiro e comprar uma mobília nova.

         - Eu juro por Deus, Rosa! Eu preciso fazer esse filme! Rosita, me ajuda! Esse filme vai ser um sucesso e quando eu recuperar o dinheiro, prometo que compro tudo novinho!

         Rosita sabia que era inútil brigar com o marido. Quando o assunto era cinema, ele não enxergava mais nada. Mojica acabaria vendendo toda a mobília, mesmo que ela se amarrasse à comida. Furiosa, Rosita fez as malas e foi para a casa dos pais, na via Anchieta, em São João Clímaco. Seu pai, que já não ia com a cara do genro, passou a abominá-lo: “Bem que falei pra você não se casar com aquele débil mental!”.

         Mojica disse para Rosita que passaria os meses seguintes morando num hotelzinho no centro, mas na verdade foi correndo para o apartamento de Maria, no Brás. A separação “provisória” entre ele e Rosita duraria para sempre. Os dois nunca mais morariam sob o mesmo teto.

         Depois de despachar a esposa, Mojica chamou o dono de uma loja de móveis de segunda mão para avaliar a mobília. O sujeito ofereceu uma mixaria e levou tudo: cama, estantes, armários, mesa de jantar, poltronas, sofá, até a geladeira. Mojica aproveitou o embalo e vendeu também suas roupas. Ficou só com duas camisas, uma calça e um par de sapatos, mas havia conseguido juntar quase 6 milhões.

        

         A história de Á Meia-Noite Levarei a Sua Alma se passa numa cidade interiorana não-identificada. O personagem principal é Josefel Zanatas, o coveiro e agente funerário local, apelidado de Zé do Caixão. Ele é um sujeito enigmático, que zomba das crendices dos caipiras locais e se diz superior a eles. Zé blasfema e falam mal dos carolas da cidade. Em plena Sexta-Feira Santa, ele come carne de carneiro e ri da procissão que passa embaixo da sua janela. Zombeteiro, Zé mostra o osso de carneiro para os padres, que se benzem quando o veem.

         Zé tem uma obsessão: encontrar uma mulher que lhe dará o “filho perfeito”. Ele é casado com Lenita, mas decide matá-la porque ela não consegue engravidar (“A mulher que não consegue ter filhos não precisa de cuidados”, diz o personagem, num rompante machista curiosamente parecido com o que o próprio Mojica usara para criticar sua esposa Rosita durante os seis anos em que ela tentara, sem sucesso, engravidar). Zé amarra Lenita e solta uma aranha caranguejeira em cima de seu corpo.

         Livre da esposa, o coveiro volta suas atenções para Terezinha, noiva de seu amigo Antônio. Zé acompanha o casal até a casa de uma vidente cigana, e esta prevê desgraças para os noivos. A previsão não demora a se concretizar: o coveiro afoga Antônio numa banheira e depois estupra Terezinha (“você me dará o filho que eu tanto quero!”). Humilhada, Terezinha se enforca. Zé encontra novamente a cigana e ela prevê que, no Dia dos Mortos, à meia-noite, os espíritos das pessoas que ele matou voltarão para vingar-se. Mas Zé ignora a previsão da bruxa e continua a matança. Ela fura os olhos e depois queima vivo o dr. Rodolfo, um médico que suspeita que ele seja o causador das mortes que vêm acontecendo na cidade. No Dia dos Mortos, a previsão da cigana se faz realidade e os espíritos voltam do Além para assombrar Zé do Caixão, colimando numa perseguição dentro do cemitério.

        

         A princípio Mojica pensava apenas em dirigir o filme. Chegou a oferecer o papel de Zé do Caixão para Dráusio de Oliveira, um ator e dublador profissional. A secretária Neutra, que usava o nome artístico de Magda Mei, foi escolhida para interpretar Terezinha. Nivaldo Lima seria Antônio e Valéria Vasques faria Lenita. Mojica resolveu dar o papel do dr. Rodolfo para Ilídio Simões Martins, um corretor imobiliário sem nenhuma experiência artística, mas que havia comprado dez cotas do filme.

         Faltava agora encontrar um local para a filmagem. Um aluno descobriu um estúdio vazio na rua Sebastião Pereira, onde costumava ficar a Rádio Nacional. Era um prédio grande, com pé direito de 5 metros de altura e muito espaço livre, desocupado desde a mudança da sede da rádio. Mojica gostou do lugar e alugou-o por uma mixaria. Em seguida, o diretor de produção da Apolo, Nelson Gaspari, foi ao bar Costa do Sul, na rua Sete de Abril, à procura de uma equipe técnica para o filme. O Costa do Sol era o mais tradicional ponto de encontro do pessoal de cinema da época, onde os contratos eram fechados com um aperto de mão e celebrados com um chope gelado. Lá, Gaspari encontrou o eletricista Miro Reis, veterano dos filmes de Mazzaropi.

         - Miro, estamos precisando de um eletricista.

         - Que filme?

         - Á Meia-Noite Levarei a Sua Alma.

         - Onde?

         - Na rua Sebastião Pereira, no estúdio da Rádio Nacional.

         - Quem é o diretor?

         - José Mojica Marins.

         - Que restaurante vai dar a boia?

         - Não, a comida vai pro estúdio. Tem um restaurante em frente, que via trazer a comida.

         -  O quê?

         - Arroz, feijão, bife e salada.

         - Topo!

         Em apenas dois dias, Mojica e Gaspari escolheram toda a equipe do filme: Giorgio Attili seria o fotógrafo; Osvaldo de Oliveira seria seu assistente de câmera e Luiz Elias, conhecido montador de filmes publicitários, ficaria encarregado da montagem. Os cenários ficariam a cargo do diretor e cenógrafo José Vedovato e o maquiador seria o argentino Gilberto Marques, conhecido pelas suas cantadas pitorescas que costumava passar nas mulheres que maquiava (“Soy maquiador pero no soy bicha!”). Mojica combinou os salários, fez os cálculos e concluiu que só teria dinheiro para pagar dezoito dias de filmagem. Ninguém mais receberia um tostão. Nem ele e tampouco os atores. Teriam de confiar na bilheteria para recuperar o dinheiro investido.

         Depois de gastar com aluguel de equipamento e de separar a verba para edição e dublagem, só sobrou dinheiro para comprar quinze latas de negativo de mil pés cada, o que equivalia a 150 minutos de filme. Para se ter uma ideia de como isso é pouco, basta dizer que a maior parte dos filmes são rodados numa proporção de no mínimo seis para um, ou seja, seis minutos de negativo para cada minuto aproveitado de filme. E Mojica teria de fazer um longa-metragem de 80 minutos usando apenas 150 minutos de negativo.

         - É impossível, Mojica! – disse Mário Lima. – Ninguém vai poder errar! Não vai dar para fazer segundo take de nenhuma cena!

         Mojica disse que não havia problema. Eles ensaiariam bastante de cada tomada e, como todos os diálogos seriam dublados depois, já que ele não usava som direto, não importava se os atores errassem suas falas na hora da filmagem.

         - Na hora de dublar dá pra repetir quantas vezes quiser! Você vai ser, Mário, como dá pra filmar tudo com quinze latas!

         E deu mesmo. Aliás, com treze, já que duas latas foram surrupiadas logo nos primeiros dias de filmagem.

 

         Para economizar no transporte da equipe, Mojica decidiu não rodar muitas externa e mandou construir todos os cenários do filme – um cemitério, uma floresta, um bar, a casa de Zé do Caixão e a casa da cigana – dentro do estúdio. O cenógrafo José Vedovato fez verdadeiros milagres com o pouco dinheiro de que dispunha para a cenografia: construiu túmulos de papelão e cartolina, usou serragem para fazer a terra do cemitério e pintou paredes de madeira para que parecessem de pedra. Todos colaboraram: um aluno pediu um esqueleto emprestado a uma faculdade de medicina para ornamentar a casa da bruxa. Mojica tirou quadros e móveis da casa dos pais e comprou um caixão para completar o cenário. Este esquife, o modelo mais ordinário à venda, está com ele até hoje.

         O maior desafio de Vedovato seria montar a floresta no estúdio. Ele precisaria construir suportes de madeira para sustentar as árvores e teria de usar blocos de isopor pintados de cinza para fazer as pedras. Vedovato sugeriu filmarem numa floresta de verdade, mas Mojica disse que não haveria dinheiro para custear as externas. A mata seria erguida ali mesmo, dentro de um estúdio, no centro de São Paulo. Mojica mandou alguns alunos sair com uma caminhonete para conseguir árvores e galhos:

         - Vão lá pros lados do Butantã, que tem matão bom!

         - Mas, mestre, como é que a gente vai cortar as árvores?

         - Sei lá, leva um machado!

         - Mas eu nunca derrubei uma árvore!

         Mojica perdeu a calma:

         - Porra, então leva um serrote, qualquer coisa! Será que eu preciso ensinar a serrar uma árvore também? Puta que pariu, vocês não sabem fazer merda nenhuma!

         Os alunos eram meio preguiçosos e decidiram que, árvore por árvore, era tudo igual. Não precisariam se despencar até o Butantã: arrumariam algumas ali pelo centro mesmo. Eles esperaram até de madrugada, foram ao largo do Arouche, um dos locais mais movimentados da cidade, e começaram a serrar as árvores, sob os olhares estarrecidos das prostitutas e travestis que frequentavam as redondezas. Derrubaram seis árvores e uma dúzia de arbustos. De manhã, quando Mojica chegou ao estúdio, o lugar parecia a floresta amazônica.

         - Que beleza! Bom trabalho! Isso sim é uma floresta!

         Aproximando-se das árvores, percebeu que uma delas tinha um anúncio de auto-escola colado no tronco.

         - Onde é que vocês arrumaram essas árvores?

         - Pegamos ali no Arouche – respondeu um dos alunos, orgulhoso.

         - O quê? No Arouche!? Vocês são malucos? A polícia não pegou vocês?

         - Não, mestre, não tinha polícia nenhuma por lá, só umas putas...

 

         A filmagem se aproximara e tudo corria bem. Mojica havia convencido a veterana atriz de teatro Eucaris de Morais a interpretar a cigana. A princípio ela havia recusado o papel, alegando outros compromissos, mas Mojica prometeu filmar todas as suas cenas numa tarde só. Eucaris seria a única atriz profissional do elenco. Todos os outros eram alunos ou professores da escola de arte dramática de Mojica. O resto do elenco foi definido: Mário Lima faria um policial, Genésio Carvalho interpretaria um homem que briga com Zé do Caixão no bar e Arildo de Lima faria Aurélio, outro coitado que ousa desafiar Zé e acaba se estrepando. Mojica escalou seus pais para pequenos papéis: Antônio interpretaria o dono do bar e Carmen a mãe de uma das vítimas de Zé do Caixão.

         Quando faltavam apenas dois dias para o início das filmagens, Dráusio de Oliveira desistiu de interpretar Zé do Caixão. A decisão foi tomada assim que ele descobriu que teria de pegar numa caranguejeira de verdade. A notícia pegou Mojica de surpresa: ele teria apenas 48 horas para encontrar um substituto. Furioso, mandou convocar uma reunião de urgência com os alunos e disse que precisava de um novo Zé do Caixão. Os testes começariam imediatamente.

         Foram mais de seis horas de testes. Um por um, os alunos desfilaram em frente de Mojica. Eles gritavam, rogavam pragas, faziam caretas pavorosas e invocavam as forças do mal, mas nenhum foi capaz de interpretar um vilão convincente. Pareciam constrangidos. Suas falas saíam sôfregas; suas pragas vacilantes. Zé do Caixão parecia mais frouxo do que um enviado de Belzebu. “Esse Zé do Caixão de vocês não assusta nem barata!”, reclamou Mojica. A cada teste fracassado, aumentava seu nervosismo. Chegou a dar chutes na parede de raiva. Depois de um teste particularmente ruim, perdeu a paciência:

         - Chega de testes! Querem saber de uma coisa? Eu mesmo vou fazer o papel!

         Era a melhor solução. Já que ninguém conseguia interpretar o personagem de forma convincente, ele mesmo faria. Era melhor não depender de ninguém. Resolveu também fazer de Zé do Caixão o bandido mais diabólico que já se viu. “Vai ser pior que o Diabo!” Antes pecar pelo excesso que pela covardia, pensou. Lembrou-se de como havia freado seus instintos em Meu Destino em Tuas Mãos, e do resultado constrangedor. Não, não cometeria o mesmo erro. Nem que Á Meia-Noite Levarei Sua Alma fosse um fracasso, pelo menos faria tudo à sua maneira.

         Mojica decidiu incrementar o visual de Zé do Caixão: achou que o personagem ficaria bem usando uma capa preta, como Drácula. Não adiantaram os argumentos dos alunos de que coveiro não usava capa. “Não importa, Zé não é um coveiro normal”, disse, antes de pedir à sua sogra que costurasse uma capa preta. Depois, inspirado pelo logotipo do cigarro que fumava, o Clássico, que tinha duas bengalas cruzadas sobre uma cartolina, mandou comprar uma cartola preta. Para finalizar, pediu ao maquiador Gilberto Marques que conseguisse longas unhas postiças para suas mãos.

         Marques levou-o ao famoso salão Antoine, no centro, onde a manicure fez as unhas especialmente para ele. O dono do salão gostou tanto do trabalho que pediu a Mojica para exibir as unhas no programa Clube do Lar, apresentado por Walter Forster e patrocinado pelo próprio Antoine, que ia ao ar toda tarde no Canal 5, das Organizações Vitor Costa. Mojica, louco por uma publicidadezinha grátis, vestiu-se de Zé do Caixão e correu para a emissora. Seria a primeira aparição pública de Zé do Caixão.

         Walter Forster apresentou Mojica como “um jovem diretor, que está fazendo um filme de terror brasileiro”. Assim que ele apareceu, de capa preta, cartola e com aquelas unhas enormes, algumas senhoras do auditório soltaram gritos de espanto. Forster acalmou as donas de casa e começou a entrevista. Primeiro perguntou se ele se considerava discípulo de Drácula.

         - Não, meu personagem não é o Drácula – respondeu Mojica – Meu personagem é brasileiro mesmo, um coveiro chamado Zé do Caixão.

         - Mas um agente funerário com capa?

         Mojica respondeu com uma frase que se tornaria sua marca registrada:

         - Você sabe como é, Walter, quem não aparece, desaparece!

         O público se descontraiu e dali em diante a entrevista foi um sucesso: Mojica mostrou suas longas unhas, fez propaganda do salão Antoine e falou do filme que estava prestes a rodar. No encerramento, Forster perguntou como Zé do Caixão reagiria se alguém lhe rogasse uma praga. Mojica respondeu:

         - É simples, eu rogaria outra praga de volta! Que tal essa: Que a maldição se volte contra você e que você vague pela eternidade sentindo as dores de um leitão assado!

         O auditório quase desabou de aplausos e gargalhadas. Zé do Caixão era um sucesso, antes mesmo de seu primeiro filme.

         No dia seguinte, ainda embalado pelo triunfo na TV, Mojica foi ao estúdio da Odil Fono Brasil contratar dubladores para o filme. Naquela época eram poucos os diretores que usavam som direto. No caso de Á Meia-Noite, todos os atores teriam de ser dublados, inclusive ele. Seu maior problema não era exatamente a voz, mas sua pronúncia sofrível e seu português horroroso. Mojica travava duras batalhas com o plural e desde pequeno sofria para pronunciar o “L”. “Problema” virava “pobrema”; “alvará” era “arvarau”...Na Odil lhe mostraram vários filmes, para que escolhesse um dublador. Mojica ficou particularmente impressionado com a voz usada para dublar o ator Mario Carotenuto:

         - Essa é a voz que eu queria ter!

         O dono da tal voz era Laercio Laurelli, diretor de dublagem da Odil. Laercio acabou se tornando a “voz oficial” de Zé do Caixão.

        

         As filmagens começaram no dia 17 de outubro de 1963. O ritmo de trabalho era insano, e ninguém trabalhou mais que Mojica: ele filmava das duas da tarde às três da manhã, e às oito já estava de volta ao estúdio, ajudando a preparar os cenários. Passou várias noites sem dormir, emendando dos ensaios para as filmagens. Longe de ser um atleta – fumava três maços de cigarro por dia e alimentava-se basicamente de torresmo, mocotó e codorna -, Mojica emagreceu e ficou abatido. Felizmente não bebia. Ainda.

         Ignorando o fato de que o estúdio não tinha quartos nem chuveiro, Mojica sugeriu a seus alunos dormirem por ali mesmo, evitando assim o desgaste de longas viagens até suas casas. Muitos acataram a sugestão, trazendo colchonetes e sacos de dormir, improvisando um acampamento. Banho, só de vez em quando, num hotel furreca que havia próximo ao estúdio. Mário Lima quase morreu do coração ao entrar no set de filmagens certa manhã e ver um corpo saindo de um caixão. Era um figurante que, sem ter onde dormir, achou por bem tirar um ronco dentro do esquife. Mário esbravejou e achou aquilo tudo coisa de maluco. Dez dias depois, estava ele próprio disputando um lugar no caixão.

         Apesar dos problemas logísticos e da falta de dinheiro, o filme começou a tomar forma. Mojica e Giorgio Attili se entendiam bem e dividiram o gosto pela experimentação. O fotógrafo, que sempre reclamara do estilo conservador e pouco ousado dos filmes da Vera Cruz, via no trabalho com Mojica a chance de fazer algo diferente. Eles não tinham verba, é verdade, mas dinheiro nunca substituiu talento. E Attili estava em sua fase mais criativa: ele bolou intrincados travellings, experimentou filmar de ângulos inusitados e coreografou complicadas cenas com câmera em movimento, que Osvaldo de Oliveira executava com perfeição.

         Mojica também estava possuído. Ideias brotavam de sua cabeça sem parar. Ele corria de um lado para o outro do estúdio, a adrenalina a mil, imaginando novas cenas e delirando com cada take. Seu entusiasmo era contagiante. Alguns técnicos, no entanto, continuaram fazendo pouco caso dele. Attili foi um dos poucos a perceber que, por trás de todo o esculacho de Mojica, havia um diretor que sabia muito bem o que estava fazendo.

         A verdade é que o estilo de Mojica pegou os técnicos de surpresa. Eles estavam acostumados com o padrão Vera Cruz, com sets de filmagem limpinhos e bem-equipados, com cenários bem-iluminados e regras pré-estabelecidas, e de repente surgia um louco que jogava pela janela todas as fórmulas. Mojica fazia coisas que, naquela época, eram consideradas heresia: atuava olhando para a câmera, rodava cenas propositalmente escuras e filmava com a câmera na mão, em contraposição à imagem estática das produções nacionais. Em suma, ele reinventava o cinema à sua maneira. E os técnicos não estavam preparados para isso. A ousadia de Mojica passou a ser considerada maluquice. Boatos maldosos começaram a circular pelos meios cinematográficos de São Paulo: diziam que havia um maluco à solta, fazendo um filme louco e ajudado por um bando de birutas. No bar Costa do Sol, Mojica era o alvo predileto das gozações: “Ainda bem que o pai dele tem um cinema...Pelo menos lá esse filme passa!”.

         Enquanto isso, Mojica continuava a burlar cenas diferentes de tudo que já se havia feito no Brasil. Ele elaborou uma cena impactante e blasfema, na qual Zé do Caixão comia uma perna de carneiro enquanto assistia, da janela de casa, à procissão de Sexta-Feira Santa. Mojica queria fazer a cena sem cortes, numa única tomada. Para isso, precisava pensar numa maneira de filmar, ao mesmo tempo, o interior de sua casa e a rua, onde passava a procissão.

         Ele mandou um carpinteiro construir uma plataforma de 3 metros de altura, onde fincou o tripé da câmera. Na borda da plataforma, erguei um compensado de madeira com uma moldura de janela. Depois, postou-se numa cadeira, entre a câmera e a janela, debruçado no parapeito. Attili apontou a câmera diagonalmente para baixo, num ângulo em que enquadrava Mojica olhando pela janela e, lá embaixo, emouldurada pela janela, a procissão. A janela passou a funcionar como uma moldura, criando uma “cena dentro da cena”. O fotógrafo fez uma iluminação fantasmagórica que realçou o impacto da imagem, sem dúvida uma das mais lindas e inventivas de toda a carreira de Mojica.

 

         Seis de novembro, último dia de filmagem.

         Mojica acordou às cinco da manhã, preocupado. Só havia uma sequência a ser rodada naquele dia, justamente a cena que abria o filme, um funeral. Mas o dia amanhecera cinzento, ameaçando chuva. Os técnicos acharam melhor cancelar a filmagem. Mojica recusou, dizendo que não tinha dinheiro para pagar nenhum dia extra.      

         - Se a gente não filmar hoje, vocês aceitam não receber seus salários por um dia?

         Os técnicos não toparam. A cena teria mesmo de ser rodada naquele dia, com chuva ou sol. Havia outro problema: ninguém sabia onde iriam filmar. Em qualquer filme “normal”, as locações teriam sido definidas antes de iniciadas as filmagens. Mojica, no entanto, não conhecia o conceito de pré-produção e não havia sequer procurado uma locação para a cena. Sua ideia era simples: se precisavam de um cemitério, rodariam por toda a cidade até encontrar um onde pudessem filmar. Ele reuniu a equipe, dividiu a turma em três peruas e saíram por São Paulo à procura de um cemitério.

         Acabaram no cemitério da Goiabeira, na Lapa. Um rapaz do elenco conhecia o coveiro local e garantiu que era só pagar uma cervejinha que o papa-defunto liberaria a filmagem. Mojica conversou com o coveiro e pagou a cerveja. O sujeito não só permitiu a filmagem, como ainda levou a equipe para uma sepultura aberta, pronta para receber um morto que estava sendo velado naquele mesmo instante.

         - É melhor que vocês se apressarem – disse o coveiro. – O corpo vai sair da capela daqui a quinze minutos!

         Mojica mandou todos tomarem suas decisões. Enquanto ele vestia a indumentária de Zé do Caixão, os técnicos montaram o equipamento e os atores – incluindo sua mãe, Carmen, que interpretava a mãe do falecido – tomaram suas posições em volta da cova. Attili reclamou do tempo nublado, mas Mojica disse que era exatamente o clima que queria para a cena:

         - É isso mesmo que eu quero, Attili, uma luz bem pesada, quero uma cena bem escura, marcada...

         Foi uma tomada só. Quando Mojica gritou “corta”, eles já viam, a 50 metros, o cortejo do enterro verdadeiro de aproximando.

        

         Naquela mesma noite, a equipe comprou um barril de vinha e fez uma festa no estúdio para celebrar o fim das filmagens. Mojica estava tão feliz que decidiu experimentar um vinhozinho. Acabou tomando dez canecas e caiu duro em cima de uma mesa. O pessoal, de pirraça, colocou-o dentro de um caixão, onde dormiu por 24 horar seguidas. Se até então ele nunca havia tocado numa gota de álcool, depois desse primeiro porre tornaria-se um pinguço imbatível.

         A alegria pela conclusão do filme logo deu lugar à preocupação: Mojica tinha agora a difícil tarefa de convencer alguém a distribuir seu filme. Assim que Luiz Elias terminou de montar a fita, ele começou a correr as distribuidoras cidade, mas invariavelmente recebido com sarcasmo e comentários irônicos. Ninguém parecia interessado num filme de terror. As semanas passavam e a situação tornava-se cada vez mais desesperadora: Mojica estava sem um tostão e cheio de dívidas com a revelação e copiagem do filme.

         Para abalar ainda mais suas finanças, seu filho com Rosita, Derian, nasceu em 15 de janeiro de 1964. Carmen e Antônio comemoraram o nascimento do “primeiro” neto, sem saber da existência de Crounel. Rosita ainda achava que o marido estava morando num hotelzinho qualquer e implorou para que voltassem a ficar juntos, mas Mojica – que continuava dormindo na casa da amante, Maria – disse que precisava esperar pelo lançamento do filme, quando ganharia um bom dinheiro e teria condições de alugar uma casa. O que ele não sabia é que Maria já estava grávida novamente. Oito meses depois, ela teria uma filha, Mariliz (alguns dos nomes na lista de Mojica: Marilua, Marilua, Mariluz, Marisol e Marimar) e após dois anos, outra menina, Merisol (nomes propostos: Merilua, Meriluz, Merimar e Sorôngela).

         No meio dessa confusão toda, Mojica continuava em busca de um distribuidor. Numa de suas andanças pelo centro, encontrou o baiano Milton Silva, dono de uma distribuidora que controlava boa parte dos cinemas do Nordeste, e pediu que ele assistisse a seu filme. Milton respondeu que não poderia, já que tinha um voo para Salvador dali a algumas horas, mas Mojica insistiu tanto que ele concordou em ir até a cabine do laboratório Polygram e ver os primeiros dez minutos do filme.

         - Só tenho tempo para dez minutos, tá bom, Mojica? Senão perco meu avião!

         No caminho para a cabine, o sujeito notou que Mojica estava abatido e com uma aparência doentia. Perguntou por sua saúde e ficou chocando quando ele respondeu que não comia nada há dois dias. “Então vamos tomar um lanche”, sugeriu o baiano, comovido. “Pode pedir o que quiser, é por minha conta”. Mojica devorou dois sanduíches de peito de peru e tomou uma Caracu com ovo.

         O projecionista da Polygram estava de saída e ficou furioso quando soube que teria de exibir o filme. Milton prometeu pagar uma boa gorjeta e disse que só iria assistir ao primeiro rolo. A sessão começou. O baiano olhava compenetrado para a tela, sem fazer qualquer comentário. Dez minutos depois, as luzes se acenderam:

         - Ué, acabou o primeiro rolo – respondeu o projecionista. – O senhor não pediu pra ver só os primeiros dez minutos?

         - Volta lá e passa o filme inteiro! E do começo! Não se preocupe com sua hora-extra, que eu pago!

         Viram o filme todo. Quando terminou, Milton disse para Mojica:

         - Meu amigo, você merece um Oscar! Esse filme vai explodir na Bahia!

         Apesar do otimismo baiano, Mojica continuava tendo dificuldades para encontrar alguém disposto a exibir seu filme em São Paulo, e já pensava até mesmo em vender sua parte. Nesse meio-tempo, a notícia da sessão da cabine da Polygram se espalhou. Ilídio Simões Martins, o corretor imobiliário que havia comprado dez cotas da fita, percebeu que Á Meia-Noite era uma mina de ouro e, sem muito alarde, começou a comprar as cotas dos outros alunos. Em seguida, adquiriu também a parte de Mojica, naquela estranha transação em frente à estação da Luz.

         Ilídio passou a ter mais de 70% do filme. Algumas semanas depois, ele repassou sua parte para o produtor Nelson Teixeira Mendes, pelo triplo do preço que havia pago a Mojica. Mendes havia produzido o sucesso O Cabelereira e agora decidira comprar os direitos de exibição de Á Meia-Noite Levarei Sua Alma. Só havia um problema: o sistema de cotas inventado por Mojica era uma bagunça tão grande que ninguém sabia quem era dono do que. Mendes fez os cálculos e concluiu que Mojica havia vendido 300% do filme. Ele pagou todos os cotistas e ficou sendo o único dono da fita.

        

         Mojica foi ao Paraná atuar em O Diabo de Vila Velha e voltou a tempo de assistir à estreia de Á Meia-Noite Levarei Sua Alma, no Art Palácio. Assim que viu as filas dando voltas no quarteirão, percebeu a burrada que havia feito ao vender sua parte para Ilídio. Durante a sessão, fez um esforço tremendo para não chorar. Ali estava sua obra – totalmente concebida, produzida e dirigida por ele próprio – e sobre a qual já não tinha direito a um centavo. O filme foi um estouro de bilheteria. O então colunista Jô Soares chegou a comentar o sucesso de Zé do Caixão em sua coluna “Show & Gente”, no jornal Última Hora: “José Mojica Marins diz: ‘À meia-noite buscarei sua alma, e às 2, 4, 6, 8 e 10, buscarei seu dinheiro”. Mojica passou os seguintes dias enchendo a cara num botequim em frente ao Art-Palácio. De vez em quando saía do bar, cambaleando de bêbado e andava pela fila do cinema contando os espectadores, um por um. Dizia para os amigos: “Estou contando meu prejuízo!”.

        

Publicado originalmente em BARCINSKI, André & FINOTTI, Ivan. Maldito: a vida e o cinema de José Mojica Marins, o Zé do Caixão. São Paulo: Editora 34, 1998.