Capítulo 1: Um estrategista à solta em São Paulo
Herbert Levy e Jean Mellé: um casamento inusitado |
Por Celso de Campos
Júnior, Denis Moreira, Giancarlo Lepiani e Mark Rene Lima
No bairro do Brás,
ninguém jamais ouvira um sotaque como aquele. Imigrantes não faltavam naquela
região, babel de italianos, portugueses, espanhóis, turcos e libaneses. Mas
como aquele sotaque, nunca. Pelas vielas do bairro, os moradores acompanhavam
os passos da intimidadora figura de 1,90 metro que parecia crescer em
progressão geométrica à medida que se aproximava do interlocutor. Nenhum deles
achou por bem perguntar ao sisudo indivíduo a origem de tão estranha mistura de
sons: era melhor apenas ajuda-lo a encontrar o endereço que procurava. Afinal,
o ano de 1963 estava só começando, e não valia a pena correr o risco de não
viver para ver as pernas de Claudia Cardinale, prestes a entrar em cartaz nos
cinemas paulistanos com o filme O Leopardo. Assim, de indicação em indicação, o
grandalhão finalmente chegou ao sobrado de número 425 da rua do Gasômetro, sede
da Gazeta Mercantil. Na recepção, anunciou sua intenção de falar com o
proprietário, Herbert Levy, que também acumulava a presidência da União
Democrática Nacional (UDN) e uma cadeira na Câmara de Deputados.
A visita, porém, seria
breve. Nem bem entrou, o misterioso homem foi obrigado a dar meia-volta e
volver. Naquele momento, a secretária de plantão tinha mais chances de marcar
uma audiência com o papa do que com o parlamentar paulista. A agenda do
empresário e político mal tinha espaço para apontamentos com companheiros
udenistas de palanque como Carlos Lacerda e Tenório Cavalcanti; o que dizer
então de horários para um sujeito que parecia ter cabulado as aulas de
português? Mesmo assim, o visitante fez questão de se apresentar e deixar um
recado. Chamava-se Jean Mellé, era jornalista e precisava fazer com urgência
com Levy. Não quis adiantar o assunto: preferiu apenas ressaltar a importância
de um encontro entre os dois. Era questão de segurança nacional, acrescentou,
com o olhar fixo na secretária.
Despediu-se da atônita
senhora, pegou sua pasta e desceu com firmeza as escadas. Em pouco tempo, Mellé
já alcançava a calçada do Cine Glória, a alguns metros dali. Estava consciente
que teria de ter um pouco da paciência e uma boa dose de cara-de-pau para
conseguir uma reunião com Levy. Queria oferecer o projeto de criação de um
jornal popular ao político, mas só poderia revelar o assunto pessoalmente. Não
que o plano fosse ultra-secreto ou coisa parecida. Nada disso. Sabia apenas que
jamais conseguiria agendar uma reunião se o dono da Gazeta Mercantil
tivesse o conhecimento de que o tema da discussão seria o financiamento de um
novo produto editorial. Por maior que fosse a alma de empresário embutida no
corpo esguio do paulistano, Mellé não poderia contar com o instinto capitalista
de Levy na ocasião. Afinal, toda a UDN estava arrepiada com o suposto noivado
entre o presidente João “Jango” Goulart e as lideranças comunistas. Caso o
casamento se consumasse, de nada adiantaria ter dinheiro no Brasil.
O jornalista, porém,
estava confiante. Precisava somente de uma oportunidade para convencer o
experiente político de que sua publicação vinha a calhar naquele momento.
Apostava tanto no projeto que, alguns meses depois, havia pedido demissão do
Última Hora para dedicar-se exclusivamente à nova cria. Seu trunfo seria provar
a Herbert Levy que o jornal poderia tornar-se um grande aliado na guerra
política, uma arma importante contra a ameaça vermelha que tanto procuravam combater.
E tinha certeza que o veterano político, com a experiência de ter comandado
mais de 5.800 homens na Revolução Constitucionalista de 1932, jamais recusaria
essa estratégia de combate. Afinal, o tempo estava correndo contra ao
conservadores.
No início da década de
60, o Brasil era um barril de pólvora prestes a explodir. O pacto de classes do
populismo, que legitimava o controle político do Estado por meio de uma relação
paternalista com as camadas populares urbanas, estava seriamente ameaçado pela
desaceleração da economia. A industrialização iniciada no Plano e Metas de
Juscelino Kubitscheck, a partir de 1956, havia se encerrado, e um de seus
resultados mais evidentes fora a diferenciação social nas cidades – que,
inevitavelmente, trazia consigo um conflito de interesses e a iminência de um
enfrentamento de classes.
Com a crise econômica, os
setores populares da sociedade, semi-integrados no processo político a partir
da Consolidação das Leis do Trabalho, realizada em 1943 por Getúlio Vargas, tornavam-se
uma ameaça às camadas dominantes. As reivindicações operárias colocavam em
xeque o já agonizante esquema populista, exigindo reformas que certamente
romperiam o tênue equilíbrio da época. Para a burguesia industrial tradicional,
nada poderia ser mais atemorizante do que um redirecionamento político dos
operários, uma classe fundamental como mercado consumidor e mão-de-obra porém
perigosa em termos de alianças no jogo de poder.
A partir de 1961, a
situação agravou-se: os salários reais passaram a cair, a inflação disparara,
as greves dos trabalhadores eram cada vez mais frequentes. Para piorar, o
ressurgimento da questão agrária, introduzida a partir de 1962 com as ligas
camponesas, destruía outro alicerce do pacto populista, recolocando os trabalhadores
do campo na vida política brasileira. Além disso, a renúncia de Jânio Quadros,
em agosto de 1961, e a conturbada posse de João Goulart, realizada com grande
apoio da população, deixaram os conservadores de cabelo em pé: o fantasma das
massas voltava a assombrar os palacetes da elite nacional.
Era difícil saber o
destino do enorme contingente popular no complexo momento político brasileiro
da época. O certo era que os trabalhadores era o curinga da ocasião: quem
conseguisse seu apoio comandaria a partida. Aqueles que conspiravam contra
Jango sabiam que dificilmente poderia executar e manter o tão sonhado golpe de
Estado sem uma cobertura popular. Um olho na sardinha, outro no gato: a direita
não podia voltar-se contra os populares, mas também tinha de ficar atenta para
não perde-los de vista.
A essa cautela somava-se
a pressão de uma traumática luta contra o relógio. O namoro entre Jango e os
comunistas, pior pesadelo para a elite, estava rapidamente tomando formas de
realidade. Para os mais conservadores – leia-se União Democrática Nacional -,
era a hora de agir. A campanha contra o governo deveria intensificar-se,
procurando, ao mesmo tempo, estancar o processo de participação política das
massas.
Mas ao contrário do que
acontecera nos anos 50 contra Getúlio Vargas, a ofensiva não se limitaria ao
ataque por meio das camadas médias para acabar com os agentes de politização
populares. Desta feita, os cobras udenistas dariam o bote no próprio terreno do
adversário, reciclando a velha técnica populista que tanto repudiavam. A
burguesia industrial conservadora tinha consciência de que sua comunicação com
a população das camadas inferiores da sociedade era inexistente, mesmo porque
não havia a menor harmonia entre os pensamentos dos dois grupos sociais. Jamais
os empresários haviam bebido na fonte popular, e vice-versa. Mais do que nunca,
os conservadores sentiram a necessidade de comunicação.
As chamadas Caravanas da
Liberdade foram o pontapé inicial dessa pragmática aproximação com as massas.
Inauguradas por Juracy Magalhães em 1958, consistiam em uma série de comícios
pelo interior do País, buscando popularizar a imagem do partido nos mais
distantes rincões nacionais. Era a UDN com ar de povo, cheirando a buchada de
bode. Dentre os escalados para comandar o show, estavam medalhões da retórica
como Carlos “O Corvo” Lacerda – que admitiu posteriormente o caráter demagógico
da empreitada -, Amaral Neto, Tenório Cavalcanti e o próprio Herbert Levy.
Contudo, por mais que se
esforçassem no corpo-a-corpo com a população, as velhas raposas ainda sentiam
falta de um canal mais incisivo para dialogar com as massas. Na verdade, sabiam
que precisavam de um instrumento de penetração nas camadas populares que
fizesse frente à arma similar do governo. Arma essa, aliás, que era um
instrumento mais poderoso que todo um exército de mercenários: o jornal Última
Hora.
Lançado no Rio de Janeiro
em 1951 por Samuel Wainer, com apoio do então presidente Getúlio Vargas, o Última
Hora tinha uma intenção clara: propagar a mensagem getulista, solidificando
o ideário do populismo no cotidiano dos trabalhadores. Campanhas nacionalistas,
de reinvindicação social, de defesa do salário, de luta pela democracia e
liberdade eram misturadas aos temas que sempre interessaram ao povo: o esporte
– especialmente futebol -, as notícias policiais e outros assuntos de fácil
assimilação pelas massas. Essa fórmula produziu um sucesso imediato:
rapidamente, o jornal alastra-se por uma cadeia de cidades no Brasil,
permanecendo como mais importantes edições do Rio de Janeiro e de São Paulo. De
quebra, conseguira chegar ao topo do mercado editorial brasileiro da época,
seguido de longe pelo O Estado de S. Paulo e pelas Folhas.
Para os conservadores, o Última
Hora se identificava com a esquerda. Não que a razão de viver de Wainer
fosse comunista ou socialista, mas acompanhava a guinada do populismo
getulista, em contrapartida à posição direitista da UDN. Essa caricatura
vermelha acentuou-se no início dos anos 60, com a polarização de forças na
sociedade – para os conservadores, todas as esquerdas estavam reunidas para
conspirar contra a nova democracia liberal prestes a surgir no País. O jornal
passou a ser um inimigo em potencial dos udenistas e companhia limitada, pois
conduzia um grande contingente de trabalhadores e uma participação política
ativa – contrária, obviamente, às posições da elite. Com uma tiragem diária de
aproximadamente 200 mil exemplares, era uma grande e, não seria exagero dizer,
a única fonte formadora de opinião passa as massas: os liberais sabiam disso.
Foi então que Herbert
Levy, entre suas idas e vindas para a recém-inaugurada Brasília, recebeu a
estranha mensagem da secretária de Gazeta Mercantil. Não se animou a
descobrir mais sobre o autor, mesmo porque tinha mais o que fazer do brincar de
adivinhas a distância. Alguns dias antes do Carnaval de 1963, entretanto, o
político aterrissava para um período de descanso na capital paulista. Frente à
insistência da secretária – o homem não parava de cobrar a reunião -, Levy
autorizou a funcionária a marcar em sua agenda um horário com o misterioso
jornalista.
Ao finalmente
encontrar-se com Mellé, o político percebeu que tirara a sorte grande. Afinal,
antes mesmo de imaginar os benefícios que uma publicação como essa poderia
trazer aos conservadores, Levy recebera o projeto pronto e acabado das mãos de
um especialista. Mais precisamente, de um experiente jornalista romeno que
havia passado temporadas na Sibéria, França e Itália – o que ajudava a explicar
o sotaque às vezes incompreensível aos brasileiros. De um mestre do jornalismo
popular, com a visão mais popular do jornalismo que se poderia ter notícia.
Levy não teve dúvida: Jean Mellé, anticomunista ferrenho, era o timoneiro ideal
para conduzir essa publicação. Assim, em um encontro às escuras, nascia o
jornal Notícias Populares.
Publicado originalmente em JÚNIOR, Celso de Campos, MOREIRA, Denis, LEPIANI, Giancarlo, LIMA, Maik Rene. Nada mais que a verdade: a extraordinária história do jornal Notícias Populares. São Paulo: Carrenho Editorial, 2002.
Nenhum comentário:
Postar um comentário