Capítulo 2: Do inferno
branco à rua do Gasômetro
Por Celso de Campos
Júnior, Denis Moreira, Giancarlo Lepiani e Mark Rene Lima
O jornalista Jean Mellé com pose de estadista
A visão de cadáveres
jogados ao mar e mulheres dando à luz no emporcalhado convés do Conte Biancamano
era uma das lembranças menos traumáticas na vida do romeno Itic Mellé. Quando
desembarcou na Baixada Santista, em 1959, pensava já ter comido sua cota do pão
que o diabo amassou. Mas bastaram três anos no Brasil para começar a acreditar
que o tinhoso estava lhe preparando uma nova fornada. Afinal, a empatia entre
Jango e os comunistas ameaçava reabrir as mesmas feridas que, a todo custo,
buscava cicatrizar em terras tropicais. Por isso, resolveu procurar o deputado Herbert
Levy, outro que temia, embora por motivos diferentes, uma aproximação entre
Brasil, União Soviética e China. Deu certo: Mellé serviu como a luva perfeita
para as trêmulas mãos da elite conservadora, atormentada pela ameaça vermelha.
Mais por sua própria história de vida do que por sua inegável capacidade
profissional.
Itic Mellé nascera em 3
de junho de 1910, no seio de uma pobre família judia da cidade de Iasi, a 100
quilômetros dos Cárpatos. Mudou-se para a capital, Bucareste, logo após
concluir seus estudos básicos. Pouco tempo depois, mudou seu prenome para Jean.
Como desde cedo mostrava gosto pelo jornalismo, procurou o redator-chefe de um
grande jornal da cidade e foi logo pedindo um emprego de repórter. Para sua
sorte, o editor gostou da demonstração de ousadia juvenil e o admitiu em sua
empresa. Paralelamente a isso, ingressara na faculdade de Direito, ampliando,
assim, seu rol de amizades.
Bem relacionado no mundo
político – especialmente no Palácio Real, onde imperava o rei Carol II - ,
Mellé viu sua popularidade crescer com o passar dos anos na sociedade romena.
Maduro, resolveu montar seu próprio jornal, batizado de Momentul (O
Momento) e subtitulado “Diário Popular de Informação”. Em menos de uma
década, fez dele o periódico mais vendido do país, sempre usando e abusando de
seu apurado e destemido senso crítico. Mal sabia ele, porém, que essa
franqueza, tempos mais tarde, acabaria lhe custando caro. Muito caro.
No final de 1947, o
exército soviético que já estava na Romênia desde março de 1944, cercou o
Palácio Real de Bucareste, forçou a abdicação do rei Michael I e finalmente
consolidou o controle sobre o país, declarando-o como mais uma república
popular. O ataque era parte do plano do líder georgiano Iosif Vissarionovich
Dzhugashvili – ou simplesmente Joseph Stálin – que pretendia vestir todo o
globo com o manto comunista. Mellé considerava que os soviéticos já havia
explorado demais os romenos – as regiões da Bessarábia, Hertza e a parte
setentrional de Bukovina, por exemplo, tinham sido tomadas pelos stalinistas em
1940 -, e não se conformava com as falsas ajudas que os camaradas alardeavam em
prol da Romênia. Algum tempo depois, o jornalista não resistiu e soltou o Momentul
com a seguinte manchete: RUSSOS ROUBARAM O PÃO DO POVO. A fera vermelha fora
cutucada com uma vara tão curta quanto o pavio de Mellé.
No dia seguinte, quando
se preparava para entrar em sua Mercedes-Benz e rumar ao Momentul, o
jornalista foi abordado por dois oficiais comunistas. Os homens o imobilizaram
e aplicaram uma injeção de sedativo em suas costas. Quando acordou, Mellé já
estava bem longe de sua terra. Havia sido posto em um trem e literalmente
descarregado na congelante Sibéria, onde se juntou a outros milhares de presos
políticos confinados em campos de trabalhos forçados nas minas de carvão. O
inferno branco seria a casa de Mellé por dez longos anos.
Durante esse período, o
romeno não foi um hóspede propriamente afável para os anfitriões russos. Sua
rebeldia causou muita dor de cabeça aos carcereiros: várias insurreições foram
por ele encabeçadas, o que o forçava a errar de um campo para outro, em
constantes remoções. Claro que essas atitudes voltavam-se contra o próprio
jornalista, que era obrigado a sofrer os pesados castigos dos stalinistas. Um
deles era manter o prisioneiro nu em buracos cavados no gelo durante 24 ou até
mesmo 48 horas. Mellé tornou-se habitué dessas masmorras, mas nem por isso
aprendeu a lição. Os soviéticos também esmeravam-se na arte da tortura: inventaram
uma espécie de cama onde o prisioneiro deitava-se de bruços com os pés e mãos
amarrados, e o instrumento automaticamente se encarregava de fazer um U com o
corpo do torturado – em alguns casos, a máquina era capaz de desenhar até mesmo
em um O.
Alheios a tudo isso, a
esposa romena de Mellé, Renne Marcovici, e seu filho pequeno, Radu Henry,
receberam da Cruz Vermelha a informação de que Jean Mellé fora dado como morto.
A família mudou-se então para a França, onde Renee começou uma nova vida,
casando-se pela segunda vez. Apenas a mãe do jornalista, Fanny Huna, ainda
acreditava no retorno do filho. Os anos foram passando, e os castigos,
aumentando. Mellé, indomável, começou a usar um novo expediente para protestar
contra sua situação: greves de fome. Contra isso, a única arma dos soviéticos
era uma mangueira colocada goela abaixo dos rebeldes, que despejava caldo de
repolho na tentativa de alimentá-los. Na maioria das vezes, todavia, o romeno
vomitava o líquido.
Em 1958, debilitado ao
extremo, ele completava dez anos na Sibéria e incríveis seis meses de greve de
fome. Caso seguisse nessa toada, não duraria muito, e se juntaria às 20 milhões
de vítimas do longo massacre conduzido pelo antigo líder russo. Para a sorte de
Jean Mellé, Nikita Kruschev, o novo chefe soviético, cedeu aos apelos do então
presidente americano, Dwight, Eisenhower, e libertou mais de 10 milhões de
presos políticos que estavam confinados desde o governo de Stalin, terminado em
1953. O jornalista saiu em uma das primeiras levas e voou até a Áustria.
A tão esperada liberdade,
contudo, ainda não iria chegar. Oficiais da Romênia – então comandada pelo
líder comunista Gheorghe Gheorgiu – Dej – abordaram Mellé no desembarque e
levaram-no para uma prisão em Bucareste. Quando finalmente pôs os pés na
capital, provocou ataques de incredulidade: todos julgavam estar vendo o
espectro do jornalista. Lá, ficou confinado mais um ano. Ao ser libertado,
considerou que aquele já não era mais um lugar seguro para viver. Sabendo que
sua mulher havia constituído nova família, partiu para Nápoles, na Itália, para
dar início à segunda parte de sua vida.
A experiência siberiana,
como não poderia deixar de ser, marcaria para sempre a vida de Mellé. O
fantasma do sequestro jamais o abandonou. De Nápoles, o jornalista, temendo ser
preso novamente, viajou para a cosmopolita e democrática Paris, onde tinha
amigos e colegas que poderiam ajuda-lo a esquecer o passado. Não adiantou. O
continente europeu já não oferecia a segurança da qual precisava para seguir em
frente. Assim, voltou a Nápoles, mas apenas para descansar. Já havia decidido o
próximo passo: embarcar para o Brasil, país onde seu irmão Victor estava
estabelecido. A viagem foi marcada para 13 de julho de 1959.
Não se sabe ao certo se
Mellé veio para a América Sul apenas para escapar temporariamente das
insistentes lembranças da Sibéria ou se já tinha a ideia de mudar-se em
definitivo para os trópicos. O fato é que daqui nunca mais saiu. Assim,
dezesseis dias depois, em Santos, no litoral de São Paulo, o antes rico e
famoso jornalista desembarcava no navio Conte Biancamano com uma pequena maleta
na mão e 15 dólares no bolso. O irmão o esperava no porto; juntos, iriam
dividir um apartamento na rua dos Gusmões, no coração da capital paulista.
Pouco tempo após sua
chegada, durante um passeio na avenida São Luiz, o jornalista foi abordado por
uma soturna voz. “Mellé”, bradou o homem misterioso. Um tremelique percorreu os
quase dois metros do romeno, arrepiando cada fio de seus cabelos crespos. Tinha
medo dos comunistas, era sabido, e naquele instante a ameaça voltava com força
total. Atemorizado, virou-se e deparou com um rapaz que havia trabalhado na
seção esportiva do Momentul, chamado Joseph Halfin. Mais tranquilo,
lembrou-se de que Halfin, cerca de dez anos antes, havia pedido a ele que o
demitisse do jornal, porque precisava do dinheiro da rescisão para tentar a
sorte no Brasil. O chefe, mesmo sem entender muito a ideia, concordara. E assim
estavam os dois, frente a frente, a mais de 10 mil quilômetros de Bucareste,
debaixo da garoa que caía no centro de São Paulo.
Mellé ouviu a história do
jovem, que estava trabalhando no Última Hora – posteriormente, Halfin se
tornaria diretor da Air France. Levado pelo antigo repórter esportivo, o romeno
foi apresentado a Samuel Wainer. Para muitos, era o encontro de três
conterrâneos: segundo acusações levantadas por Carlos Lacerda em sua Tribuna
da Imprensa, Wainer também nascera na Romênia (as insinuações jamais foram
comprovadas). Independentemente disso, começava aí a segunda parte da carreira
jornalística de Mellé. Encantado com o estilo moderno do Última Hora,
aceitou o convite de Wainer e entregou-se de corpo e alma ao novo emprego.
Ali, o ex-editor do Momentul
encontrava uma nova casa. Com a fama de ter sido amante de uma ex-miss Romênia
e da atriz francesa Jeanne Moreau, um dos maiores símbolos sexuais da época –
relações jamais confirmadas ou negadas pelo romeno -, tornou-se o principal
colunista internacional do jornal. Publicava diariamente a colune “Jean Mellé
Informa” com notas de bastidores do mundo da política. Além disso, ficava nas
oficinas até alta madrugada, conversando com os operários e matando a saudade
de ver os jornais saindo para as bancas, um hábito perdido havia mais de uma
década.
Assim, ia ganhando a
confiança de todos na redação, localizada, naquela época, próxima ao viaduto
Santa Ifigênia. Passou a ser carinhosamente chamado de João de Melo, ou “o
francês”, ao que Mellé, em seu português draculesco – mistura de romeno,
alemão, inglês e francês – repetia, feliz:” “Eu sou françuso, hahaha”.
Embora estivesse bem no jornal de Wainer, não esquecia dos tempos em que era o
dono de sua própria publicação, e confidenciava a amigos seu grande sonho de
voltar a ser o comandante de uma redação.
No final de 1962, a ideia
já estava madura. A instabilidade política do País, na ótica de Mellé,
obrigava-o a entrar em ação. O jornalista deixou o Última Hora – que, em
sua opinião, pendia perigosamente para o lado comunista – para dedicar-se
integralmente à elaboração de seu projeto de jornal popular, aos moldes do
antigo Momentul. Foram alguns meses de preparação e outras tantas horas
de lábia para convencer Levy da importância da publicação. Como um alarme, avisou:
se nada mudasse em seis meses, os russos viriam buscar os liberais para
coloca-los em calabouços na Sibéria.
Diante dessa sombria
perspectiva, indicada com tamanho conhecimento de causa pelo romeno, não foi
difícil para as partes chegarem a um acordo. Um brinde entre Jean Mellé e
Herbert Levy, em 1963, selou o final do período de gestação do jornal. Sem
olhar para trás, Mellé partia de mala e cuia para capitanear o Notícias
Populares.
Não era à toa que Herbert
Levy precisava de um comandante para seu periódico popular: para ele, esporte
era polo aquático, tênis e natação. Paulistano da Vila Buarque, nascido em 2 de
novembro de 1911, era o nono filho de dezena de herdeiros do britânico
naturalizado brasileiro Alberto Eduardo Levy, professor e consul honorário da
Grã-Bretanha em São Paulo durante quase duas décadas. Formado em Ciências
Políticas e Sociais em 1937, pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo,
tinha longa experiência em jornalismo: trabalhara no São Paulo Jornal, Diário
da Noite e Diário Nacional. Como se não bastasse, também era crítico
de ópera, fluente em cinco idiomas e havia feito dezenas de viagens
internacionais.
Com a justificável fama
de bom moço, foi, em sua juventude, campeão paulista e brasileiro de natação.
Jogando como goleiro, venceu o campeonato paulista de polo aquático – só não
defendeu a Seleção Brasileira nas Olimpíadas de Los Angeles, em 1932, por falta
de horário na concorrida agenda. Em 1928, foi o primeiro nadador bandeirante a
vencer a disputa de braçada clássica brasileira. Conquistou mais de cem
medalhas, cuja maioria – incluindo oito de outo – doou à campanha “Ouro para
o bem de São Paulo”, por ocasião da Revolução Constitucionalista de 1932. A
participação de Herbert no levante, entretanto, ultrapassou e muito esse gesto
benemérito.
Como voluntário, entrou
para o Primeiro Batalhão da Milícia Civil Paulista em 9 de julho de 1932.
Graças ao recuo das outras forças comprometidas com o movimento, no Rio Grande
do Sul e em Minas Gerais, em pouco tempo já liderava o 2º Pelotão da Segunda
Companhia do 6º Batalhão da Força Pública, como segundo-tenente. Ao final da
revolução, estava no comando da Coluna Romão Gomes, na frente de Campinas, a
essa altura com 5.800 homens – a última a render-se na batalha. Aos 20 anos,
havia sido promovido a capitão com funções de general-de-brigada. Sem dúvida,
fora um dos civis com maiores responsabilidades militares no combate.
Suas habilidades
destacam-se no campo dos negócios. Havia criado com os irmãos o Boletim
Comercial Levy (1929) e a Revista Financeira Levy (1933), que em
1934 se juntariam com a recém-adquirida Gazeta Mercantil Comercial e
Industrial. Sob o título Gazeta Mercantil, anos mais tarde, a
publicação se tornaria o principal veículo de informação econômica do País.
Isso porque Herbert Levy, mais que qualquer outro jornalista, tinha grande
experiência na prática: no ano de 1943, fundara, como auxílio do irmão Haroldo
e do filho mais velho, Luiz Carlos, o Banco da América – em 1969, uma fusão com
o Itaú daria lugar a uma nova instituição, o Banco Itaú-América S.A., da qual
Herbert foi eleito presidente do conselho de administração. Também tinha fortes
ligações com o capital agrícola.
Na vida pública desde
1927, o empresário participara do Partido Constitucionalista e da União
Democrática Brasileira, ao lado de Antônio Carlos de Abreu Sodré, Armando
Salles de Oliveira e Waldemar Martins Ferreira. (Além de mentor político de
Levy, o professor Waldemar Ferreira se tornaria mais tarde também seu sogro, já
que em 1934 Herbert se casou com Wally Martins Ferreira, filha do mestre.) Em
1945, presenciou o nascimento da União Democrática Nacional (UDN). No período
de 1937 a 1945, aliás, Levy exerceu oposição ferrenha ao governo Getúlio Vargas
– tendo sido preso seis vezes a primeira logo após a formatura na Escola de
Sociologia e Política, no qual, como orador da turma, fez severas críticas ao Estado
Novo.
Em 1947, ingressou na
Câmara dos Deputados, de onde sairia apenas quarenta anos depois, após dez
mandatos consecutivos. Um dos principais articuladores da candidatura do então
governador de São Paulo, Jânio Quadros, à Presidência da República, em 1959, o
parlamentar foi eleito presidente nacional da UDN em 1961, na convenção do
Recife. Teve como principal tarefa justamente evitar o racha que ameaçou o
partido com a ruptura entre Carlos Lacerda e Jânio Quadros, no mesmo ano. Após
a renúncia de Jânio, Levy, apenas de ser conduzido inicialmente a UDN ao apoio
do sistema parlamentarista, com Jango no poder, logo tornou-se líder da
oposição ao governo do gaúcho. Como se vê, as credenciais do empresário são autoexplicativas.
Queria distância da esquerda, assim como o diabo corre da cruz.
Publicado originalmente
em JÚNIOR, Celso de Campos, MOREIRA, Denis, LEPIANI, Giancarlo, LIMA, Maik
Rene. Nada mais que a verdade: a extraordinária história do jornal Notícias
Populares. São Paulo: Carrenho Editorial, 2002.
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