Capítulo 4: Circo do romeno pega fogo
Edição do Notícias Populares em 1964 |
Por Celso de Campos
Júnior, Denis Moreira, Giancarlo Lepiani e Mark Rene Lima
Para quem já havia
superado uma década em condições subumanas na Sibéria, não foi nada difícil
driblar um empreendimento (mal) organizado pela burocracia. Em pouco tempo,
Jean Mellé conseguiu tirar leite de pedra, transformando a precária estrutural
do NP em uma organização respeitável para os padrões jornalísticos. Em uma
época em que a boemia e o jornalismo dançavam de rosto colado, o romeno tinha
uma visão da engenharia de um jornal que somente vinte ou trinta anos depois
seria implantada pelos grandes veículos. Claro que muitos achavam que o chefe
estava pirado quando dizia, por exemplo, que os jornais do futuro sairiam em
três edições diárias, com quatro páginas no máximo, para reproduzir com mais
agilidade as notícias do dia. Mellé só não contava com a Internet, que sepultou
sua previsão de um jornal em papel com três edições. Mas não seria a rede de
computadores exatamente a concretização dessa ideia em outro meio?
Independentemente disso,
quando o romeno arregaçava as mangas, ninguém ousava contrariá-lo. Nem mesmo o
dono, já que Mellé gozava de autonomia em todos os sentidos – o próprio Luiz
Fernando Levy admite que suas reuniões com o jornalista serviam apenas para
cumprir tabela, pois jamais ousara interferir nas decisões do veterano editor.
A principal cobrança do chefe para a redação dizia respeito ao horário de
fechamento. Normalmente, as páginas deveriam começar às 20 ou 21 horas, mas
Mellé costumava antecipar o deadline (fechamento) para as 19 horas. O
motivo? Atingir aquele trabalhador que voltava passa casa tarde da noite e não
teria tempo, no dia seguinte, para parar em uma banca. De quebra, arrebanhava o
público que se esbaldava nas boates do Centro até altas horas da madrugada. Na
década de 1990, essa estratégia passaria a ser praxe no jornalismo – com
direito a exagero de grandes veículos, que chegam a colocar a edição de domingo
nas bancas no sábado à tarde.
Claro que Mellé também
escorregava nessa pressa de fechar seu NP. Certa vez, Vital Battaglia, que
finalizava a edição de esportes, foi abordado pelo romeno. “Jornalo
fecha cedo hoje. Acho que não vai dar para esperar para fazer o jogo da noite”,
disse o editor. “Bom, seu Mellé, se não der, tudo bem. A gente dá no segundo
clichê”, respondeu Battaglia. A tréplica foi digna de Dadá Maravilha, o rei das
pérolas futebolísticas. “No, acho que nem em segundo clichê, no compensa
trocar. Será que no dá para colocar o resultado só do meio tempo do
jogo?” Evidentemente, explicaram ao romeno que, nesse caso, seria melhor não
colocar nada.
A verdade é que Mellé
estava se acostumando novamente a ser chefe. E não só na redação. Não se sabe
como, mas, ainda na fase inicial do Notícias Populares, o romeno havia
convencido os Levy a desembolsar uma nota preta em uma nova frota de
distribuição. Do sobrado do Gasômetro, certa vez, Mellé mostrou a um incrédulo
Tão Gomes Pinto um comboio de lustrosos caminhões e caminhonetes Ford, que
chegavam com pneus pretinhos e o reluzente logotipo do NP estampado nas portas.
“Este estar segredo do jornalo: distrubuiçon”, disse ele. Para
completar o esquema de entrega, os jornaleiros à moda antiga levavam o NP na
boca da Boca, cobrindo os principais pontos da badalação noturna paulistana da
época. Só as velhas rotativas, para variar, continuavam falhando na hora H.
Experientes, porém, os funcionários já haviam descoberto como lidar com as
máquinas nesses momentos: pauladas na lateral da engenhoca eram tiro e queda.
Na parte editorial, o
jornal não precisava de trancos para engrenar. A equação esportes, polícia e
cidades, reforçada por fotos de mulheres do Teatro Natal, na praça Júlio de
Mesquita, era a garantia de resultados positivos nas bancas. Uma equipe de
primeira linha, comandada com pulso firme pelo romeno, começava a tomar corpo
no jornalismo paulistano. Nenhuma outra publicação, por exemplo, cobria as
enchentes – pesadelo dos verões paulistanos já naqueles tempos – como o Notícias
Populares. O banho que o NP dava nos concorrentes, contudo, não era fruto
apenas do espírito jornalístico dos repórteres: os próprios funcionários do
jornal eram vítimas das cheias, que transformavam a região do Brás em um
verdadeiro mar urbano. Muitos só conseguiam chegar ao Gasômetro pegando carona
em caminhões ou mesmo enfrentando as águas turvas. Por isso mesmo, não foram
poucas as vezes em que jornalistas tiveram de trabalhar de cueca, enquanto
calças e meias secavam no laboratório de fotografia – isso a despeito da
presença feminina na redação, que contava com duas ou três funcionárias.
Mas as exclusivas não
paravam por aí. Na editoria de esportes, o NP literalmente entrava em campo
para chegar aonde à concorrência não chegava. Um de seus repórteres, João
Carlos Guide, setorista do Palmeiras, havia conseguido enorme trânsito no
clube, e cansou de trazer furos para a redação mostrando ângulos inéditos na
reportagem esportiva. Não era difícil encontrar jogadores do alviverde
visitando o prédio da rua do Gasômetro. Em retribuição, Guide era
frequentemente requisitado para completar o time nos treinos do Palestra
Itália. A relação não se abalou nem quando o repórter, autor de uma entrada
mais estabanada no treino, contundiu o zagueiro Aldemar, tirando o jogador de
um clássico contra o São Paulo.
A editoria de polícia,
tocada pelo rechonchudo Ramão Gomes Portão, não ficava menos perto da notícia.
Um dos fotógrafos do caderno, chamado Luiz Manoel, descendente de portugueses,
entrava em qualquer beco antes da polícia para prender um bandido – não sem
antes, claro, fazer o devido registro fotográfico da cena. Além da câmera, seu
outro instrumento de trabalho era uma pistola automática 765, da qual não se
separava nunca. (Aliás, a maioria dos repórteres policiais da época também não
dispensava uma arma ao lado da caneta e do bloco).
Luiz Manuel, por sinal,
foi o protagonista de uma das mais incríveis histórias do jornal na era do
Gasômetro. Em uma noite de fechamento – já na espera pela troca de clichês -, o
fotógrafo limpava o revólver de estimação em uma bancada da redação. Perto
dele, J. B. Paladino, jornalista que cuidava da editoria internacional,
insistia em provocar o lusitano. “Ô português, tenho mais medo dessa arma no
chão do que na sua mão”, gargalhava. Paciente, Manuel continuava compenetrado
em seus afazeres, apenas dando um recado: “Não me encha o saco, ora pois”. A
noite adentrava, e as brincadeiras de Paladino, que estava sentado em uma das
mesas da redação, prosseguiam. De repente, o fotógrafo levantou e deu um tiro
no pé do engraçadinho. Ninguém ficou para ver: todos os jornalistas desceram a
escada voando e foram se refugiar no hotel do outro lado da rua.
No corre-corre, também
entraram os funcionários que trabalhavam na oficina, no térreo. A salvo na
hospedaria, relataram aos companheiros que a bala atravessara o assoalho de
madeira do primeiro andar e passara pela clicheria, alojando-se na mesa sobre a
qual alguns trabalhadores jogavam crepe. Depois de quase meia hora escondidos,
os jornalistas voltaram ao prédio, e encontraram Paladino imóvel, com a pele
quase transparente: a bala havia atingido a costura de seu sapato. Já Luiz
Manuel permanecia sentado, com as pernas para cima. Limpava calmamente a sua
arma e, afinadíssimo, assobiava o Vira.
Evidentemente, casos como
esse fugiam à rotina do Notícias Populares. Mas isso não significava que
o clima da redação tivesse a harmonia de um mosteiro de monges beneditinos.
Jean Mellé e Narciso Kalili, os dois primeiros homens na hierarquia editorial
do NP, viviam uma relação de amor e ódio. Mais que um conflito pessoal,
tratava-se de um confronto de escolas: de um lado, o romeno querendo mostrar a
verdade nua e crua; de outro, o veterano jornalista brasileiro, sempre
preocupado em manter a publicação com alto nível editorial, buscando erradicar
todo e qualquer exagero popularesco.
Assim, bastava o horário
do fechamento se aproximar para o tempo esquentar. Todas as noites, era a mesma
coisa: a dupla subia e descia a escada do prédio aos berros, trocando ideias
(poucas) e ameaças (muitas). Os insultos ecoavam por todo o prédio, desde o
aquário de Mellé até o salão das rotativas. O pavio curto do chefão era
conhecido por todos, mas ninguém se preocupava com essas ameaças – afinal,
depois dos entreveros, Mellé voltava a derreter-se pelo colega. Além disso, a
presença quase delegalesca de Ramão Gomes Portão intimidava a dupla. Quando a
coisa parecia sem volta, o editor de polícia – advogado e criminalista de
formação, muito inteligente e educado – colocava sua imensa barriga para
apartar os brigões, e estava tudo resolvido.
Todavia, isso começou a
mudar quando Mellé resolveu publicar a história de um triângulo amoroso
envolvendo uma grande dama das altas-rodas paulistanas, Lygia Jordan. A
reportagem de Percival de Souza citava nomes de todos os envolvidos,
incluindo-se aí os vértices da trama, figurões da aristocracia bandeirante.
Mesmo aconselhado por Kalili a deixar a história de lado – o veterano sabia que
mexer com a alta sociedade era mergulhar em um vespeiro -, o romeno não se fez
de rogado e soltou a matéria. A repercussão foi enorme: além de transformar-se
em um verdadeiro escândalo social na época, a história rendeu dividendos ao NP,
que praticamente dobrou sua tiragem na ocasião.
Mas Mellé pagaria caro
pela ousadia. Certa noite, finalizando o expediente, o romeno estava prestes a
entrar em seu prédio quando foi abordado por dois desconhecidos. Pelas costas,
um deles segurou a vítima; rapidamente, o outro começou a desferir uma
saraivada de golpes no editor do Notícias Populares, ao melhor estilo
Éder Jofre. Mellé caiu junto com a sacola com garrafas de refrigerante que
comprara pouco antes. De acordo com relatos de testemunhas, os agressores
fugiram em um táxi da marca DKW, cor cerâmica. Antes de sair, deixaram
lembranças de Claudino Caiano de Castro, um dos envolvidos no caso Lygia
Jordan.
Anos depois, os
responsáveis pela “congesta” foram pegos pela polícia e confirmaram o mandante
da agressão. Os pugilistas Miguel Angel Miranda e Paulo da Silva confessaram
ter recebido 100 mil cruzeiros de Caiado para aplicar a surra em Mellé, sob a
justificativa que o jornalista estava criticando Lygia – que passara a ser
mulher do figurão – no jornal que dirigia. A partir daí, a fera romena passou a
andar armada: revólver calibre 38, cano longo
As discussões com Kalili
continuaram, e a redação passou a temer pela segurança de ambos. Como ninguém
se atrevia a desarmar Mellé, até mesmo os profissionais mais pacíficos passaram
a carrega revólveres. Se houvesse detector de metais na entrada da redação, o
jornal jamais chegaria às bancas naquela época. Claro que a situação incerta do
país também contribuiu para o aumento do arsenal dentro do Notícias
Populares. A polarização das forças políticas fazia com que, para muitos,
sair às ruas fosse uma grande incógnita. Assim, também os jornalistas começaram
a trabalhar com segurança própria – no caso de Mauro Santayana, um belo facão
de 40 centímetros, cabo de prata, tratava de afugentar qualquer perigo. Arma
nenhuma, porém, serviria como defesa do turbilhão que envolveria o Brasil um
pouco mais tarde.
Publicado originalmente
em JÚNIOR, Celso de Campos, MOREIRA, Denis, LEPIANI, Giancarlo, LIMA, Maik
Rene. Nada mais que a verdade: a extraordinária história do jornal Notícias
Populares. São Paulo: Carrenho Editorial, 2002.
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