segunda-feira, 10 de abril de 2023

Os primeiros tempos do NP IV: Circo do romeno pega fogo

Capítulo 4: Circo do romeno pega fogo

Edição do Notícias Populares em 1964


Por Celso de Campos Júnior, Denis Moreira, Giancarlo Lepiani e Mark Rene Lima

 

Para quem já havia superado uma década em condições subumanas na Sibéria, não foi nada difícil driblar um empreendimento (mal) organizado pela burocracia. Em pouco tempo, Jean Mellé conseguiu tirar leite de pedra, transformando a precária estrutural do NP em uma organização respeitável para os padrões jornalísticos. Em uma época em que a boemia e o jornalismo dançavam de rosto colado, o romeno tinha uma visão da engenharia de um jornal que somente vinte ou trinta anos depois seria implantada pelos grandes veículos. Claro que muitos achavam que o chefe estava pirado quando dizia, por exemplo, que os jornais do futuro sairiam em três edições diárias, com quatro páginas no máximo, para reproduzir com mais agilidade as notícias do dia. Mellé só não contava com a Internet, que sepultou sua previsão de um jornal em papel com três edições. Mas não seria a rede de computadores exatamente a concretização dessa ideia em outro meio?

 

Independentemente disso, quando o romeno arregaçava as mangas, ninguém ousava contrariá-lo. Nem mesmo o dono, já que Mellé gozava de autonomia em todos os sentidos – o próprio Luiz Fernando Levy admite que suas reuniões com o jornalista serviam apenas para cumprir tabela, pois jamais ousara interferir nas decisões do veterano editor. A principal cobrança do chefe para a redação dizia respeito ao horário de fechamento. Normalmente, as páginas deveriam começar às 20 ou 21 horas, mas Mellé costumava antecipar o deadline (fechamento) para as 19 horas. O motivo? Atingir aquele trabalhador que voltava passa casa tarde da noite e não teria tempo, no dia seguinte, para parar em uma banca. De quebra, arrebanhava o público que se esbaldava nas boates do Centro até altas horas da madrugada. Na década de 1990, essa estratégia passaria a ser praxe no jornalismo – com direito a exagero de grandes veículos, que chegam a colocar a edição de domingo nas bancas no sábado à tarde.

 

Claro que Mellé também escorregava nessa pressa de fechar seu NP. Certa vez, Vital Battaglia, que finalizava a edição de esportes, foi abordado pelo romeno. “Jornalo fecha cedo hoje. Acho que não vai dar para esperar para fazer o jogo da noite”, disse o editor. “Bom, seu Mellé, se não der, tudo bem. A gente dá no segundo clichê”, respondeu Battaglia. A tréplica foi digna de Dadá Maravilha, o rei das pérolas futebolísticas. “No, acho que nem em segundo clichê, no compensa trocar. Será que no dá para colocar o resultado só do meio tempo do jogo?” Evidentemente, explicaram ao romeno que, nesse caso, seria melhor não colocar nada.

 

A verdade é que Mellé estava se acostumando novamente a ser chefe. E não só na redação. Não se sabe como, mas, ainda na fase inicial do Notícias Populares, o romeno havia convencido os Levy a desembolsar uma nota preta em uma nova frota de distribuição. Do sobrado do Gasômetro, certa vez, Mellé mostrou a um incrédulo Tão Gomes Pinto um comboio de lustrosos caminhões e caminhonetes Ford, que chegavam com pneus pretinhos e o reluzente logotipo do NP estampado nas portas. “Este estar segredo do jornalo: distrubuiçon”, disse ele. Para completar o esquema de entrega, os jornaleiros à moda antiga levavam o NP na boca da Boca, cobrindo os principais pontos da badalação noturna paulistana da época. Só as velhas rotativas, para variar, continuavam falhando na hora H. Experientes, porém, os funcionários já haviam descoberto como lidar com as máquinas nesses momentos: pauladas na lateral da engenhoca eram tiro e queda.

 

Na parte editorial, o jornal não precisava de trancos para engrenar. A equação esportes, polícia e cidades, reforçada por fotos de mulheres do Teatro Natal, na praça Júlio de Mesquita, era a garantia de resultados positivos nas bancas. Uma equipe de primeira linha, comandada com pulso firme pelo romeno, começava a tomar corpo no jornalismo paulistano. Nenhuma outra publicação, por exemplo, cobria as enchentes – pesadelo dos verões paulistanos já naqueles tempos – como o Notícias Populares. O banho que o NP dava nos concorrentes, contudo, não era fruto apenas do espírito jornalístico dos repórteres: os próprios funcionários do jornal eram vítimas das cheias, que transformavam a região do Brás em um verdadeiro mar urbano. Muitos só conseguiam chegar ao Gasômetro pegando carona em caminhões ou mesmo enfrentando as águas turvas. Por isso mesmo, não foram poucas as vezes em que jornalistas tiveram de trabalhar de cueca, enquanto calças e meias secavam no laboratório de fotografia – isso a despeito da presença feminina na redação, que contava com duas ou três funcionárias.

 

Mas as exclusivas não paravam por aí. Na editoria de esportes, o NP literalmente entrava em campo para chegar aonde à concorrência não chegava. Um de seus repórteres, João Carlos Guide, setorista do Palmeiras, havia conseguido enorme trânsito no clube, e cansou de trazer furos para a redação mostrando ângulos inéditos na reportagem esportiva. Não era difícil encontrar jogadores do alviverde visitando o prédio da rua do Gasômetro. Em retribuição, Guide era frequentemente requisitado para completar o time nos treinos do Palestra Itália. A relação não se abalou nem quando o repórter, autor de uma entrada mais estabanada no treino, contundiu o zagueiro Aldemar, tirando o jogador de um clássico contra o São Paulo.

 

A editoria de polícia, tocada pelo rechonchudo Ramão Gomes Portão, não ficava menos perto da notícia. Um dos fotógrafos do caderno, chamado Luiz Manoel, descendente de portugueses, entrava em qualquer beco antes da polícia para prender um bandido – não sem antes, claro, fazer o devido registro fotográfico da cena. Além da câmera, seu outro instrumento de trabalho era uma pistola automática 765, da qual não se separava nunca. (Aliás, a maioria dos repórteres policiais da época também não dispensava uma arma ao lado da caneta e do bloco).

 

Luiz Manuel, por sinal, foi o protagonista de uma das mais incríveis histórias do jornal na era do Gasômetro. Em uma noite de fechamento – já na espera pela troca de clichês -, o fotógrafo limpava o revólver de estimação em uma bancada da redação. Perto dele, J. B. Paladino, jornalista que cuidava da editoria internacional, insistia em provocar o lusitano. “Ô português, tenho mais medo dessa arma no chão do que na sua mão”, gargalhava. Paciente, Manuel continuava compenetrado em seus afazeres, apenas dando um recado: “Não me encha o saco, ora pois”. A noite adentrava, e as brincadeiras de Paladino, que estava sentado em uma das mesas da redação, prosseguiam. De repente, o fotógrafo levantou e deu um tiro no pé do engraçadinho. Ninguém ficou para ver: todos os jornalistas desceram a escada voando e foram se refugiar no hotel do outro lado da rua.

 

No corre-corre, também entraram os funcionários que trabalhavam na oficina, no térreo. A salvo na hospedaria, relataram aos companheiros que a bala atravessara o assoalho de madeira do primeiro andar e passara pela clicheria, alojando-se na mesa sobre a qual alguns trabalhadores jogavam crepe. Depois de quase meia hora escondidos, os jornalistas voltaram ao prédio, e encontraram Paladino imóvel, com a pele quase transparente: a bala havia atingido a costura de seu sapato. Já Luiz Manuel permanecia sentado, com as pernas para cima. Limpava calmamente a sua arma e, afinadíssimo, assobiava o Vira.

 

Evidentemente, casos como esse fugiam à rotina do Notícias Populares. Mas isso não significava que o clima da redação tivesse a harmonia de um mosteiro de monges beneditinos. Jean Mellé e Narciso Kalili, os dois primeiros homens na hierarquia editorial do NP, viviam uma relação de amor e ódio. Mais que um conflito pessoal, tratava-se de um confronto de escolas: de um lado, o romeno querendo mostrar a verdade nua e crua; de outro, o veterano jornalista brasileiro, sempre preocupado em manter a publicação com alto nível editorial, buscando erradicar todo e qualquer exagero popularesco.

 

Assim, bastava o horário do fechamento se aproximar para o tempo esquentar. Todas as noites, era a mesma coisa: a dupla subia e descia a escada do prédio aos berros, trocando ideias (poucas) e ameaças (muitas). Os insultos ecoavam por todo o prédio, desde o aquário de Mellé até o salão das rotativas. O pavio curto do chefão era conhecido por todos, mas ninguém se preocupava com essas ameaças – afinal, depois dos entreveros, Mellé voltava a derreter-se pelo colega. Além disso, a presença quase delegalesca de Ramão Gomes Portão intimidava a dupla. Quando a coisa parecia sem volta, o editor de polícia – advogado e criminalista de formação, muito inteligente e educado – colocava sua imensa barriga para apartar os brigões, e estava tudo resolvido.

 

Todavia, isso começou a mudar quando Mellé resolveu publicar a história de um triângulo amoroso envolvendo uma grande dama das altas-rodas paulistanas, Lygia Jordan. A reportagem de Percival de Souza citava nomes de todos os envolvidos, incluindo-se aí os vértices da trama, figurões da aristocracia bandeirante. Mesmo aconselhado por Kalili a deixar a história de lado – o veterano sabia que mexer com a alta sociedade era mergulhar em um vespeiro -, o romeno não se fez de rogado e soltou a matéria. A repercussão foi enorme: além de transformar-se em um verdadeiro escândalo social na época, a história rendeu dividendos ao NP, que praticamente dobrou sua tiragem na ocasião.

 

Mas Mellé pagaria caro pela ousadia. Certa noite, finalizando o expediente, o romeno estava prestes a entrar em seu prédio quando foi abordado por dois desconhecidos. Pelas costas, um deles segurou a vítima; rapidamente, o outro começou a desferir uma saraivada de golpes no editor do Notícias Populares, ao melhor estilo Éder Jofre. Mellé caiu junto com a sacola com garrafas de refrigerante que comprara pouco antes. De acordo com relatos de testemunhas, os agressores fugiram em um táxi da marca DKW, cor cerâmica. Antes de sair, deixaram lembranças de Claudino Caiano de Castro, um dos envolvidos no caso Lygia Jordan.

 

Anos depois, os responsáveis pela “congesta” foram pegos pela polícia e confirmaram o mandante da agressão. Os pugilistas Miguel Angel Miranda e Paulo da Silva confessaram ter recebido 100 mil cruzeiros de Caiado para aplicar a surra em Mellé, sob a justificativa que o jornalista estava criticando Lygia – que passara a ser mulher do figurão – no jornal que dirigia. A partir daí, a fera romena passou a andar armada: revólver calibre 38, cano longo

 

As discussões com Kalili continuaram, e a redação passou a temer pela segurança de ambos. Como ninguém se atrevia a desarmar Mellé, até mesmo os profissionais mais pacíficos passaram a carrega revólveres. Se houvesse detector de metais na entrada da redação, o jornal jamais chegaria às bancas naquela época. Claro que a situação incerta do país também contribuiu para o aumento do arsenal dentro do Notícias Populares. A polarização das forças políticas fazia com que, para muitos, sair às ruas fosse uma grande incógnita. Assim, também os jornalistas começaram a trabalhar com segurança própria – no caso de Mauro Santayana, um belo facão de 40 centímetros, cabo de prata, tratava de afugentar qualquer perigo. Arma nenhuma, porém, serviria como defesa do turbilhão que envolveria o Brasil um pouco mais tarde.

 

Publicado originalmente em JÚNIOR, Celso de Campos, MOREIRA, Denis, LEPIANI, Giancarlo, LIMA, Maik Rene. Nada mais que a verdade: a extraordinária história do jornal Notícias Populares. São Paulo: Carrenho Editorial, 2002.

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