Capítulo 5: Metralha udenista contra a democracia
O deputado Herbert Levy discursando
Por Celso de Campos
Júnior, Denis Moreira, Giancarlo Lepiani e Mark Rene Lima
O deputado Herbert Levy
sempre teve cadeira cativa no Notícias Populares – afinal, era o dono.
Nos primeiros números, sempre estavam presentes notas sobre a agenda e os
pronunciamentos do político. Somente Brigitte Bardot aparecia tanto no jornal –
problemas familiares, viagens, maldições astecas, qualquer coisa era pretexto
para estampar a musa maior de Jean Mellé nas páginas do NP. Em janeiro de 1964,
auge do verão brasileiro, a atriz veio para o Brasil em uma temporada carioca e
passou a ofuscar até a presença de Levy. Famosa pela aversão aos repórteres,
Brigitte trancou-se no quarto do Copacabana Palace durante a visita. No dia
seguinte, o Notícias Populares estampava na capa: BRIGITTE SEQUESTRADA.
No mesmo mês, foi flagrada por um paparazzo praticando topless. A imagem de BB
seminua na capa do NP deu origem a uma série de reportagens sobre a nova moda,
chamada de “biquininho”. Enciumado, Jean Mellé desaprovou o topless de
Brigitte. Na pele de Jackie Cassino, escreveu em sua coluna que considerava o
modismo “de inteiro mau gosto”.
No mês seguinte, La Bardot foi colocada de lado e o espaço de Herbert Levy no
jornal aumentou de proporção à tensão crescente na atmosfera política
brasileira. Em 19 de fevereiro de 1964, tem início o bombardeio mais efusivo
por parte do deputado udenista contra o governo, com a manchete LEVY: JANGO
ATRASA O MÍNIMO PARA FAZER REVOLUÇÃO.
O retardamento da
assinatura do decreto do novo salário mínimo faz parte de esquema da ‘guerra
revolucionária’ que o presidente João Goulart promove no Brasil. A denúncia foi
feita ontem pelo deputado Herbert Levy, no Aeroporto de Congonhas, quando
embarcava para Brasília. Segundo o deputado Levy, o objetivo do sr. João
Goulart seria o de dificultar as condições de vida do povo, para que este,
desesperado, aceite qualquer solução.
Daí para frente, pobre
Jango e companhia limitada. A metralhadora giratória udenista não economizava
projéteis contra os governistas, atacando com mais frequência toda e qualquer
medida que não a agradasse. Como, com o passar do tempo, as notícias políticas
desagradavam mais e mais os conservadores, não é exagero dizer que o NP, no
período de fevereiro a abril de 1964, virou uma espécie de tribuna da UDN. O
golpe militar aproximava-se, e o jornal, como um soldado tomado pela flama
candente do ardor cívico, passou encampar a ideologia da defesa da segurança
nacional. Ironicamente, a equipe do jornal era composta por uma esmagadora
maioria de simpatizantes da esquerda, que até tentava “sabotar” – como definiu
Mauro Santayana – as notícias reacionárias. Mas as vozes do dono e do
editor-chefe, obviamente, determinavam a última palavra. Mesmo assim, a
oposição não chegaria a se transformar num grande conflito ideológico, mesmo
porque era Mellé o responsável pelas notícias pro-UDN. De qualquer forma, o
fatídico mês de março começava assim para o Notícias Populares:
LEVY: GOVERNO TEM
INTERESSE EM SUBVERTER A ORDEM
O deputado federal
Herbert Levy proferiu, sexta-feira última na Associação Comercial e Industrial
de Campinas, palestre sobre o aniquilamento econômico e a ameaça à liberdade
que se processa no país.
Nada mal para um jornal
que não se prestaria a falar de política. Além desses ataques diretor, o NP
também começou a publicar manchetes econômicas contra o governo, buscando minar
o apoio popular a Jango – afinal, a parte mais sensível do corpo do trabalhador
era o mesmo bolso. PÃO E LEITE MAIS CAROS E MAR DE LAMA NO AUMENTO DO ÔNIBUS
foram as manchetes de 4 e 7 de março. A estratégia é de fazer qualquer general
aplaudir de pé. Em épocas de turbulência e polarização, o povo tende a ficar ao
lado que defende a estabilidade para o crescimento pacífico e saudável da
família. O jornal também temperava o clima com ameaças vindas de fora, onde a
Guerra Fria esquentava os ânimos. No dia 10, por exemplo, lia-se uma matéria
com o seguinte título: OEA: CUBA FAZ AGITAÇÕES NO BRASIL. Para o NP, só um
golpe salvava o país.
Aliás, de acordo com as
páginas do jornal – reflexo, claro, da mentalidade da direita – o golpe, pasme,
era a manutenção do governo de Jango, eleito democraticamente pelo povo. A sequência
de manchetes catastróficas não deixa mentir: PANCADARIA ESTOURA DE NOVO EM
MINAS: METRALHADORAS E TANQUES PARA GARANTIR JANGO, em 13 de março de 1964;
GOULAR ENCAMPOU REFINARIAS, no dia 14; PANCADARIA EXPLODE DE NOVO EM MINAS, no
dia 16. (Em três dias, duas manchetes traziam o termo “pancadaria”). No dia 17,
METRALHA NA FACULDADE (relatando uma ação da polícia na Faculdade de Direito do
Largo São Francisco). No dia 18, 400 DESPEJOS POR DIA: ALUGUÉIS (impasse na lei
de regulamentação dos aluguéis). A situação era caótica.
Se alguém ainda tinha
dúvida de que o NP era um jornal político, ela começou a se dissipar no mesmo
dia 18, quando o jornal começou a fazer propaganda da Marcha da Família com
Deus pela Liberdade. Evento importantíssimo no contexto da época, a marcha foi
motivada por uma frase de João Goulart, ao comentar o fato de que as mulheres
de Belo Horizonte, de terço, na mão, impediram um comício de Leonel Brizola:
“Não é com rosários que se combatem as reformas”. O caudilho perdeu uma ótima
oportunidade de ficar com a boca fechada. Pouco tempo depois, os conservadores
convocaram a marcha para combater, agora nas palavras do NP, “a demagogia das
reformas, que escondem o objetivo de um golpe contra as instituições
democráticas do País preparada pelo chefe da Nação”. “A cidade vai parar”,
torcia o jornal.
No dia seguinte, 19 de
março, o primeiro de uma série memorável para a direta, a manchete estampava:
POVO MOBILIZADO CONTRA O GOLPE: MARCA COM DEUS É HOJE! Em sua coluna, Jean
Mellé abria espaço para as sempre ponderadas palavras do deputado Levy, que
chamava o presidente da República de “fraude”. Pelos cálculos mais pessimistas,
a marcha reuniu mais de 500 mil pessoas; nos mais otimistas, 800 mil. Ao lado
de Herbert Levy, Cunha Bueno, Plínio Salgado e Adhemar de Barros, governador de
São Paulo, a multidão protestou contra Jango e seus “asseclas”. O jornal não se
conteve: SÃO PAULO DE PÉ DEFENDE A DEMOCRACIA, foi a manchete de 20 de março,
que também trazia a declaração de – sim, ele de novo – Carlos Lacerda: SÃO
PAULO SALVOU O BRASIL.
No dia 21, ainda colhendo
os louros da vitória pela marcha contra o comunismo ateu de Jango e Brizola, o Notícias
Populares manchetou: LACERDA E ADEMAR UNIDOS: DEFENDEREMOS DEMOCRACIA. Como
toda a direita, o NP não dava moleza para o governo. No dia 25, para bater do
outro lado, o econômico, volta à tona a questão dos aluguéis. ALUGUÉIS: JG
ADIOU DECRETO, dizia a manchete, referindo-se à postergação da lei de
tabelamento dos aluguéis, determinada pelo presidente, contrariando todas as
expectativas. As manchetes do dia 27, REBELIÃO NA MARINHA, e do dia 31,
MARINHA: BOTATOS AGRAVAM A CRISE, mostravam que a vitória antigovernista estava
próxima.
Na redação do NP, o clima
também fervia. Os jornalistas puderam presenciar, no final da tarde do último
dia de março, o abraço aliviado de Luiz Fernando Levy e Jean Mellé, que
desceram a escada comemorando por antecipação a vitória das Forças Armadas.
Concomitantemente, eclodia o movimento revolucionário em Minas Gerais, com a
saída das tropas comandadas pelo general Mourão Filho. O romeno colocou todos
os repórteres na rua, deslocando-os para cobrir a movimentação política. Vital
Battaglia, por exemplo, foi para o quartel do Ibirapuera acompanhar a
movimentação das tropas locadas na capital paulista, já que havia a notícia que
o Terceiro Exército poderia estar se dirigindo a São Paulo. Tudo o que
encontrou, porém, foi um general que acompanhava a “revolução” com os ouvidos
grudados me um rádio Spica, esperando notícias de fora.
Mesmo assim, na volta à
redação, o jornalista fez um relato de mais de trinta laudas do dia D, e
entregou o material ao chefe. Mellé não chegou nem ao fim da primeira página.
“Não precisa Battaglia. Já ganhamos”, afirmou o romeno. As notícias quentes
vinham mesmo da cúpula da UDN, e iam direto para a primeira página. Dia 1º de
abril: AB: ESTAMOS COM MINAS. “Ademar de Barros, acentuando estar contra o
golpe, afirmou ser necessário ‘dar fim à onda comunista que assola o Brasil’”.
Dia 2, os donos do NP estavam em festa. Dia 3, em letras garrafais, a vitória
definitiva: GOULART ABANDONOU O BRASIL! Ainda na capa, o jornal reproduzia
novas declarações do governador paulista: ADEMAR: MANDAREMOS NAVIOS COM
COMUNISTAS À URSS.
No mesmo dia, na página
3: LEGALIDADE INAUGUROU NOVA POLÍTICA. TRANQUILIDADE! Ao lado, a coluna
principal de Jean Mellé tinha um título mais que sugestivo: “As Forças Armadas
como fator importante na formação de uma real democracia nas américas”. Um dia
depois, no tradicional espaço de Levy, a afirmação de que o novo presidente
deveria ser um militar. “É a melhor homenagem que se poderia prestar ao
Exército nacional, que garantiu a sobrevivência da democracia”, resume. Não há
quase uma linha sobre o destino de Jango, só para o futuro que, sob um céu anil
e com a bênção dos militares, se abria. AURO VISITOU ADEMAR E KRUEL: PAZ E
DEMOCRACIA ASSEGURADAS.
A manchete do dia 11 é a
pá de cal na tensão política e civil que o NP, apesar de na teoria pretender
mostrar as mensagens otimistas da sociedade transmitiu por quase seis meses em
suas páginas: CASTELO BRANCO PRESIDENTE! Com o novo líder, viria o tão esperado
reforço na segurança nacional, como pode-se perceber pelas chamadas seguintes:
SUBVERSÃO: VASCULHADOS TODOS OS FOCOS; CAÇA ÀS CÉLULAS COMUNISTAS. Agora, sim,
o paraíso reinava no mundo do Notícias Populares. Seguem-se ainda os
seguintes excertos:
MINISTRO DA GUERRA:
REVOLUÇÃO RESPEITOU A CONSTITUIÇÃO (entrevista com o general Artur da Costa e
Silva, p. 6, dia 11/4)
CASTELO BRANCO INICIA
MARCA DA RECONSTRUÇÃO NACIONAL (p. 3, 13/4)
GOVERNO VAI CONGELAR
PREÇOS EM TODO O BRASIL (p. 6, 13/6)
CASTELO BRANCO: ALIANÇA
SÓ COM OS PAÍSES LIVRES (16/4)
CADEIA PARA QUEM ROUBAR O
POVO (18/4)
Até mesmo Radu Henry –
filho mais velho de Mellé que se tornara jornalista e bon vivant em
Paris – contribuía com notícias da Europa. CASTELO BRANCO SERÁ PRESIDENTE COMO
DE GAULLE: SALVARÁ BRASIL, escreveu em 11 de abril. Para tranquilizar ainda
mais a população, o jornal batia na tecla do congelamento, publicando os 64 artigos
de primeira necessidade cujos preços o governo decretara intocáveis (um desses
produtos indispensáveis era o sanduíche de mortadela). O Notícias Populares
também não se esquecia da ação da polícia. De acordo com o periódico, os
guardas estavam fazendo a sua parte – não havendo, portanto, motivo para
pânico. Pelas linhas do jornal, o governo parecia dar a alma pelo povo. CASAS
PRÓPRIAS: 14 BILHÕES PARA OS PAULISTANOS era a manchete de 21 de abril. Tudo
estava às mil maravilhas.
O NP seguiu nesse ritmo
até a segunda metade de 1965, quando completaria dois anos de vida. Já
acumulava prestígio no interior e na capital de São Paulo, com uma tiragem
média variando entre 70 mil e 90 mil exemplares diários. Levantamento do
Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope), publicado no
final de 1964, revelava que o Notícias Populares registrara um aumento
de 357% de sua venda avulsa nas bancas da capital no período de novembro de
1963 a agosto de 1964. No mesmo estudo, o Ibope acusava um decréscimo das
vendas em bancas para os outros jornais: 30% para os matutinos e 21% para os
vespertinos. O plano inicial de neutralizar a ação do Última Hora estava
cumprido, como o próprio Mellé deixou escapar em sua coluna de 11 de outubro de
1965:
Foi perguntado a um
ilustre homem político num programa de TV o que achava do jornal Notícias
Populares. Respondeu que, até dois anos atrás, os trabalhadores, para ler
as notícias e os assuntos que lhes interessavam, eram obrigados a procurá-los
num órgão com tendências comunistas e anti-religioso. Também surgiu um jornal
como eles queriam: informativo, completamente independente, escrito e
apresentado no estilo existente em todos os países ocidentais, onde o leitor é
ouvido e respeitado, sendo-lhe oferecido um tipo de jornal do qual gosta.
Como também o objetivo de auxiliar na derrubada do governo fora alcançado, a
família Levy não tinha mais interesse me dar informação aos trabalhadores – nem
que fosse para ter lucro com o jornal, que havia roubado quase metade dos
leitores do UH. A futura candidatura de Carlos Lacerda para presidente, quer
seria apoiada nas páginas do NP, havia sido posta de molho pela UDN.
Conclusão dos
conservadores: era mais preciso manter um jornal como arma política. Além
disso, apesar do crescimento, o vespertino de Jean Mellé deixou prejuízos
consecutivos em seus dois primeiros anos de existência. A perda financeira em
1964 foi maior que o dobro do prejuízo do próprio ano de fundação. Era preciso
uma retaguarda empresarial para dar sustentação ao jornal, e isso não era uma
tarefa fácil de assumir. Uma carta aberta endereçada ao prefeito Faria Lima,
publicada pelo Notícias Populares em maio de 1965, serve como um pequeno
exemplo das dificuldades estruturais enfrentadas por seus profissionais. O
texto rogava ao brigadeiro que agilizasse a instalação de um “PBX e maios dois
números de telefone” na sede do Gasômetro. Parece incrível, mas o jornal só
tinha uma linha telefônica:
Somente no setor das
consultas sobre a Lei do Inquilinato, mais de 50 mil pessoas foram atendidas
pelo nosso redator especializado, sendo a maior parte das informações dada por
telefone; pelo único telefone que Notícias Populares possui, e assim
mesmo, emprestado de outro jornal.
Estamos hoje sob a égide
da revolução, pela qual Notícias Populares lutou com riscos e perigos para
alguns de seus membros. Pedimos, pois, em nome dos 200 mil leitores de Notícias
Populares, que se faça justiça agora.
O NP era um fenômeno de
público, mas um desastre como empreendimento. Sem disposição para reverter
isso, Herbert e Luiz Fernando Levy preferiram voltar a tocar apenas a Gazeta
Mercantil.
Assim, em 22 de outubro
de 1965, uma semana depois do segundo aniversário do jornal, o Notícias
Populares foi vendido a Octávio Frias de Oliveira e Carlos Caldeira Filho –
a dupla de empresários conhecida como Fri-Cal -, dirigentes da Empresa Folha da
Manhã S.A. Ainda que contra a vontade de Jean Mellé, a família negociou o
título, acertou a transferência dos jornalistas, e obteve a garantia de que o
romeno seria mantido no cargo. O restante da empresa constituída dois anos e
meio antes foi rebatizada de Editora São Bento – nome da fazenda de café da
família e da rua que abrigava o escritório administrativo – e liquidada logo
depois. Na semana seguinte ao negócio, a rua do Gasômetro ficou para trás. O NP
instalou-se na alameda Barão de Limeira, no centro de São Paulo, onde
encontraria a estrutura necessária para seguir crescendo. Ali, passada a fase
de tribuna política, o jornal vivera uma nova história, ainda mais ao gosto dos
fregueses.
Publicado originalmente
em JÚNIOR, Celso de Campos, MOREIRA, Denis, LEPIANI, Giancarlo, LIMA, Maik
Rene. Nada mais que a verdade: a extraordinária história do jornal Notícias
Populares. São Paulo: Carrenho Editorial, 2002.
Nenhum comentário:
Postar um comentário