segunda-feira, 24 de abril de 2023

Os primeiros tempos do NP VI: A voz do povo é a voz de Deus

Capítulo 6: A voz do povo é a voz de Deus

 

Carlos Caldeira Filho e sua tradicional indumentária

Octávio Frias Filho, em um raro momento de descanso

Por Celso de Campos Júnior, Denis Moreira, Giancarlo Lepiani e Mark Rene Lima

 

Em 1965, Octávio Frias de Oliveira e Carlos Caldeira Filho estavam apenas começando o que se tornaria um dos maiores impérios jornalísticos do Brasil. Haviam comprado as Folhas (que englobavam Folha da Manhã, Folha da Tarde e Folha da Noite) em 1962, pagando 1,5 bilhão de cruzeiros antigos ao advogado Nabantino Ramos. Empreendedor ambicioso, Ramos foi a personificação da imagem da Folha como empresa jornalística. Profissional, metódico e pragmático, o advogado implantou no negócio as primeiras normas industriais e manuais de redação. A estrutura empresarial, portanto, já estava montada. Á dupla Fri-Cal caberia apenas consolidar o empreendimento.

 

E não haveria muito problema para isso: os dois novos donos do jornal pareciam se completar. Caldeira Filho, de família tradicional santista, construíra seu patrimônio com negócios bem-sucedidos no ramo da construção civil. Muitas vezes preocupava-se mais com o Santos Futebol Clube – do qual era sócio atuante desde o final da década de 1920 – do que com sua própria saúde financeira. Fazia o estilo “caipirão”: raramente usava terno e gravata, preferindo combinar camisas e calças claras com sandálias e chinelos. “Vivo no calo, caramba”, costumava justificar. A aparência o aproximava mais de um fazendeiro nordestino de novela das 8 do que sócio de uma empresa jornalística séria. Como contraponto a essa figura, encaixava-se Frias de Oliveira, ex-funcionário público que fez dinheiro trabalhando em funções ligadas ao capital financeiro. Detalhista e disciplinado, passava longe do jeito folclórico do companheiro.

 

Talvez por isso mesmo que os dois formassem uma eficiente equipe. Caldeira, participando do corpo-a-corpo com os funcionários e jornalistas, era figurinha fácil nas redações. Mais acessível, protagonizou muitas situações inusitadas pelos corredores do edifício da Barão de Limeira. Em uma delas, dois funcionários do NP – um deles recém-contratado – conversavam no elevador. Sem se importar com a figura alvamente vestida ao seu lado, o novato exclamou: “Quer moleza, rapaz? Senta no pau do Caldeira!”.  Bem-humorado, o santista, com um sorridos, apenas apresentou-se ao autor da frase, e fez questão de descer do elevador abraçado ao envergonhado funcionário. Caldeira era o amigo dos jornalistas; Frias, o chefe. Sempre mais formal, assemelhava-se à figura do administrador, do burocrata.

 

Naquele ano de 1965, ainda na esteira do golpe, a parceria de sucesso entre os dois empresários no grupo Folha viabilizou algo considerado impossível apenas um ano antes. Em menos de dois meses, Frias e Caldeira colocaram sob o mesmo teto duas forças que brigavam em exércitos opostos no front brasileiro: o Notícias Populares e o Última Hora. A compra do jornal de Samuel Wainer aconteceu em agosto de 1965 – antes, portanto, do negócio envolvendo o NP. O UH estava afundando em dívidas – Wainer estava pagando os credores até com geladeiras e panelas. Sem o apoio da turma de Getúlio e Jango, estava fadado ao desaparecimento. A Folha, então, ficou com o título Última Hora, assumindo as dívidas trabalhistas e pagando a quantia restante no decorrer de cinco anos.

 

Do ponto de vista empresarial, os dois novos populares do grupo Folha estavam capengas, com prejuízos acumulados. Nas bancas, porém, tinham muito a oferecer, pois seguiam como nomes fortes na cabeça do leitor. Mais importante, serviriam à intenção da empresa de crescer e estar com um pé (ou dois) em todos os nichos do mercado – mesmo que isso significasse absorver os concorrentes apenas para manter seu domínio. O Última Hora acabou padecendo desse problema. Em uma mensagem publicada na primeira edição do jornal sob o comando da Folha, em 4 de setembro de 1965, Frias e Caldeira garantiam aos leitores que o jornal continuaria em expansão, “defendendo os legítimos interesses dos trabalhadores”. Nos anos seguintes, porém, o UH seria preterido em relação aos vizinhos de andar na Barão de Limeira, e acabaria em franca decadência. Durante esse tempo, o Notícias Populares trilharia um caminho de maior êxito – ainda que em uma estrada não menos sinuosa.

 

Tranquilizado com a perseguição oficializada aos comunistas, Jean Mellé pôde, enfim, tocar o jornal da maneira que pretendia. Teve de lidar com algumas baixas na equipe: um grupo de jornalistas aceitou convites para trabalhar no Jornal da Tarde, inovador vespertino criado pelo grupo Estado, que chegou às bancas em janeiro de 1966. A principal perda, porém, já havia sido superada ainda no tempo do Gasômetro. Cansado das discussões com o romeno, Narciso Kalili pediu o boné; em seu lugar, assumira o jornalista Nicolau Alberto Chaui. Então com 50 anos, Chaui, descendente de sírios, tinha sólida experiência em jornalismo popular. Ingressara na carreira em Catanduva, interior de São Paulo, e pouco tempo depois já trabalhava no tabloide A Hora, na capital paulista. Com o êxito do periódico, o jornalista recebeu um convite para trabalhar no Última Hora, onde ajudou a formar uma geração de jovens talentosos com seus conselhos e orientações.

 

Após a saída de Kalili, Mellé percebeu que a vaga de secretário de redação do NP parecia talhada para Chaui. O romeno sabia que precisava de um jornalista veterano e experiente, mas que estivesse disposto a encarar com a vontade de um novato o desafio de elevar a publicação a novos patamares. O ex-funcionário do UH aceitou a proposta e levou sua conhecida fama de “professor” para o NP. Hábil no contato com a redação, o jornalista, como Mellé havia previsto, foi a peça que fez a engrenagem do Notícias Populares deslanchar. Em Nicolau Chaui, o jornal encontraria um suporte firme para o crescimento que se verificou na segunda metade da década de 1960.

 

Assim, a única pressão que recaía sob a curvada coluna de Mellé – problema oriundo de trabalho forçado na Sibéria – era a de vender jornais, e essa ele sabia, desde os tempos do Momentul, administrar como ninguém. Em sua lista de prioridades, a publicação estava sempre na primeira posição, deixando para trás outros assuntos pessoais e profissionais. Não seria exagero dizer que sua dedicação no jornalismo era integral: passava a manhã inteira lendo todos os jornais em seu apartamento, na rua Conselheiro Brotero, e dedilhando – apenas com o indicador direito – as primeiras notas para sua coluna em uma Olivetti Lettera 22 verde. Após o almoço, saía para a redação e só voltava para casa tarde da noite, quando sua mulher, Giulietta, o esperava com seu prato preferido: macarrão com açúcar.

 

Nem nos raros momentos de descanso Mellé desviava o pensamento do jornal. As frequentes sessões no cine Olido e as paradas obrigatórias na casa de chá Cristal, na avenida São João, não eram completas enquanto o chefão do NP não entrasse nas bancas do centro de São Paulo para perguntar ao jornaleiro como estava a vendagem de sua publicação. Invariavelmente, em uma delas, colocava a mão no bolso e comprava um exemplar no periódico. “Sou o leitor número 1 do Notícias”, justificava-se para dona Giulietta, sempre inconformada com a atitude do marido.

 

Apenas quando o letreiro do cinema anunciava a exibição de Doutor Jivago, a obra-prima de David Lean baseada no romance de Boris Pasternak, o romeno se transformava. Parecia o único momento em que, para ele, não havia laudas, clichês ou rotativas – talvez por isso tenha arrastado a mulher quase uma dezena de vezes à sala de projeção. Ao apagar das luzes, Mellé parecia hipnotizado - não pelos olhos azuis de Julie Christie ou pelo portentoso bigode de Omar Sharif, e sim pelas paisagens geladas que lembravam a Sibéria, seu lar forçado durante dez anos. Não por coincidência, comprara o disco com a trilha sonora da película e transformara o Tema de Lara, de Maurice Jarre, na música oficial do trabalho em seu escritório. Para animá-lo, ou isso ou as peripécias do detetive Steve McGarrett, do seriado televisivo Havaí 5-0, seu favorito.

 

Enquanto isso, o Notícias Populares começava a ganhar as feições de um jornal popular, no sentido que no romeno o concebia: com ênfase na parte policial e esportiva, as preferências do povo. Isso sem contar, claro, as fotos de belas mulheres, sempre retratadas em poses sensuais, e matérias sobre sexo. Mellé, contudo, não se limitou a repetir fórmulas já batidas. Uma de suas grandes inovações era deixar a decisão da manchete que iria para as bancas com os contínuos, trabalhadores normalmente à margem de qualquer opinião jornalística. A ousada jogada, porém, revelou-se genial. Uma das principais peculiaridades do Notícias Populares era o fato de que seus jornalistas falavam, em geral, para classes a que não pertenciam – o que dificultava o acerto no uso da linguagem. A saída encontrada por Mellé dizimou toda e qualquer insegurança a respeito da eficácia de uma determinada mensagem para os leitores do jornal. Nada melhor do que usar essa amostragem para definir a manchete, principal atrativa para o público, determinante na hora da venda do produto em banca.

 

Inicialmente, a tarefa coube a um contínuo, o carioca Guilherme Soares, crioulo forte com quase 1,90 metro de altura. Seu apelido, Mug, fora dado por Ramão Gomes Portão em razão da semelhança física do funcionário com um bandido da época. Seu porte físico o fez acumular também a função de guarda-costas de Mellé. Aproveitando essa proximidade, o romeno começou a pedir a opinião de Mug para as manchetes que a redação escolhia. “O que acha, moço? O que você entende disso? Acha que vende”, perguntava Mellé. Em caso de afirmativa, o chefe costumava dizer vox Populi, vox Dei e mandava rodar a manchete.

 

Em um episódio de briga na Assembleia Legislativa, por exemplo, a redação optou pela manchete RIFIFI NA ASSEMBLEIA. Um filme francês em cartaz na época tinha o mesmo termo em seu título. Mellé leu a sugestão e sentenciou: “Não, o povo não entende isso. Isso é coisa de vocês”. Para provar sua tese chamou Mug. “O quer você entende, moo?”, indagou ao rapaz que fazia cara de espanto ao ler a frase, claramente sem entender o que estava escrito naquele pedaço de papel. Então Mellé explicou a história, e o rosto do contínuo se iluminou. “Ah, teve um quebra-pau na Assembleia”, exclamou. E assim foi para as rotativas.

 

Mug, todavia, não era o único conselheiro de Jean Mellé. Certo dia, a redação do Notícias Populares preparava-se para rodar uma manchete corriqueira, sobre um crime em São Paulo. Mellé entrou na gráfica e reparou que todos os funcionários estavam aglomerados para ler uma pequena nota sobre a suporta aparição de uma mula-sem-cabeça na capital. Parou as máquinas na hora e mudou a manchete. A nova capa estourou nas bancas. “Pova sabe, pova conhece”, justificava.

 

Outra aposta inovadora do romeno foi a cobertura incessante do dia-a-dia dos artistas, coisa que poucos veículos faziam na época. A lógica era simples: artista vendia jornal. Por isso, o NP usava e abusava de gente famosa em suas primeiras páginas, atraindo a atenção do povo. Além de alavancar as vendagens, esse chamariz rendia fama à publicação, que ficava conhecida nas mais diversas camadas sociais.

 

E a maior prova desse fenômeno jornalístico seria proporcionada, quem diria, por uma gangue de garotos cabeludos e garotas com minissaias coloridas.

 

Publicado originalmente em JÚNIOR, Celso de Campos, MOREIRA, Denis, LEPIANI, Giancarlo, LIMA, Maik Rene. Nada mais que a verdade: a extraordinária história do jornal Notícias Populares. São Paulo: Carrenho Editorial, 2002.

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