Capítulo 6: A voz do povo é a voz de Deus
Carlos Caldeira Filho e sua tradicional indumentária Octávio Frias Filho, em um raro momento de descanso
Por Celso de Campos
Júnior, Denis Moreira, Giancarlo Lepiani e Mark Rene Lima
Em 1965, Octávio Frias de
Oliveira e Carlos Caldeira Filho estavam apenas começando o que se tornaria um
dos maiores impérios jornalísticos do Brasil. Haviam comprado as Folhas (que
englobavam Folha da Manhã, Folha da Tarde e Folha da Noite)
em 1962, pagando 1,5 bilhão de cruzeiros antigos ao advogado Nabantino Ramos.
Empreendedor ambicioso, Ramos foi a personificação da imagem da Folha como
empresa jornalística. Profissional, metódico e pragmático, o advogado implantou
no negócio as primeiras normas industriais e manuais de redação. A estrutura
empresarial, portanto, já estava montada. Á dupla Fri-Cal caberia apenas
consolidar o empreendimento.
E não haveria muito
problema para isso: os dois novos donos do jornal pareciam se completar.
Caldeira Filho, de família tradicional santista, construíra seu patrimônio com
negócios bem-sucedidos no ramo da construção civil. Muitas vezes preocupava-se
mais com o Santos Futebol Clube – do qual era sócio atuante desde o final da
década de 1920 – do que com sua própria saúde financeira. Fazia o estilo
“caipirão”: raramente usava terno e gravata, preferindo combinar camisas e
calças claras com sandálias e chinelos. “Vivo no calo, caramba”, costumava
justificar. A aparência o aproximava mais de um fazendeiro nordestino de novela
das 8 do que sócio de uma empresa jornalística séria. Como contraponto a essa
figura, encaixava-se Frias de Oliveira, ex-funcionário público que fez dinheiro
trabalhando em funções ligadas ao capital financeiro. Detalhista e
disciplinado, passava longe do jeito folclórico do companheiro.
Talvez por isso mesmo que
os dois formassem uma eficiente equipe. Caldeira, participando do corpo-a-corpo
com os funcionários e jornalistas, era figurinha fácil nas redações. Mais
acessível, protagonizou muitas situações inusitadas pelos corredores do
edifício da Barão de Limeira. Em uma delas, dois funcionários do NP – um deles
recém-contratado – conversavam no elevador. Sem se importar com a figura
alvamente vestida ao seu lado, o novato exclamou: “Quer moleza, rapaz? Senta no
pau do Caldeira!”. Bem-humorado, o santista,
com um sorridos, apenas apresentou-se ao autor da frase, e fez questão de
descer do elevador abraçado ao envergonhado funcionário. Caldeira era o amigo
dos jornalistas; Frias, o chefe. Sempre mais formal, assemelhava-se à figura do
administrador, do burocrata.
Naquele ano de 1965, ainda
na esteira do golpe, a parceria de sucesso entre os dois empresários no grupo
Folha viabilizou algo considerado impossível apenas um ano antes. Em menos de
dois meses, Frias e Caldeira colocaram sob o mesmo teto duas forças que
brigavam em exércitos opostos no front brasileiro: o Notícias Populares
e o Última Hora. A compra do jornal de Samuel Wainer aconteceu em agosto
de 1965 – antes, portanto, do negócio envolvendo o NP. O UH estava afundando em
dívidas – Wainer estava pagando os credores até com geladeiras e panelas. Sem o
apoio da turma de Getúlio e Jango, estava fadado ao desaparecimento. A Folha,
então, ficou com o título Última Hora, assumindo as dívidas trabalhistas
e pagando a quantia restante no decorrer de cinco anos.
Do ponto de vista empresarial,
os dois novos populares do grupo Folha estavam capengas, com prejuízos
acumulados. Nas bancas, porém, tinham muito a oferecer, pois seguiam como nomes
fortes na cabeça do leitor. Mais importante, serviriam à intenção da empresa de
crescer e estar com um pé (ou dois) em todos os nichos do mercado – mesmo que
isso significasse absorver os concorrentes apenas para manter seu domínio. O Última
Hora acabou padecendo desse problema. Em uma mensagem publicada na primeira
edição do jornal sob o comando da Folha, em 4 de setembro de 1965, Frias e
Caldeira garantiam aos leitores que o jornal continuaria em expansão,
“defendendo os legítimos interesses dos trabalhadores”. Nos anos seguintes,
porém, o UH seria preterido em relação aos vizinhos de andar na Barão de
Limeira, e acabaria em franca decadência. Durante esse tempo, o Notícias
Populares trilharia um caminho de maior êxito – ainda que em uma estrada não
menos sinuosa.
Tranquilizado com a
perseguição oficializada aos comunistas, Jean Mellé pôde, enfim, tocar o jornal
da maneira que pretendia. Teve de lidar com algumas baixas na equipe: um grupo
de jornalistas aceitou convites para trabalhar no Jornal da Tarde,
inovador vespertino criado pelo grupo Estado, que chegou às bancas em janeiro
de 1966. A principal perda, porém, já havia sido superada ainda no tempo do
Gasômetro. Cansado das discussões com o romeno, Narciso Kalili pediu o boné; em
seu lugar, assumira o jornalista Nicolau Alberto Chaui. Então com 50 anos, Chaui,
descendente de sírios, tinha sólida experiência em jornalismo popular.
Ingressara na carreira em Catanduva, interior de São Paulo, e pouco tempo
depois já trabalhava no tabloide A Hora, na capital paulista. Com o
êxito do periódico, o jornalista recebeu um convite para trabalhar no Última
Hora, onde ajudou a formar uma geração de jovens talentosos com seus
conselhos e orientações.
Após a saída de Kalili,
Mellé percebeu que a vaga de secretário de redação do NP parecia talhada para
Chaui. O romeno sabia que precisava de um jornalista veterano e experiente, mas
que estivesse disposto a encarar com a vontade de um novato o desafio de elevar
a publicação a novos patamares. O ex-funcionário do UH aceitou a proposta e
levou sua conhecida fama de “professor” para o NP. Hábil no contato com a
redação, o jornalista, como Mellé havia previsto, foi a peça que fez a
engrenagem do Notícias Populares deslanchar. Em Nicolau Chaui, o jornal
encontraria um suporte firme para o crescimento que se verificou na segunda
metade da década de 1960.
Assim, a única pressão
que recaía sob a curvada coluna de Mellé – problema oriundo de trabalho forçado
na Sibéria – era a de vender jornais, e essa ele sabia, desde os tempos do Momentul,
administrar como ninguém. Em sua lista de prioridades, a publicação estava
sempre na primeira posição, deixando para trás outros assuntos pessoais e
profissionais. Não seria exagero dizer que sua dedicação no jornalismo era
integral: passava a manhã inteira lendo todos os jornais em seu apartamento, na
rua Conselheiro Brotero, e dedilhando – apenas com o indicador direito – as
primeiras notas para sua coluna em uma Olivetti Lettera 22 verde. Após o
almoço, saía para a redação e só voltava para casa tarde da noite, quando sua
mulher, Giulietta, o esperava com seu prato preferido: macarrão com açúcar.
Nem nos raros momentos de
descanso Mellé desviava o pensamento do jornal. As frequentes sessões no cine
Olido e as paradas obrigatórias na casa de chá Cristal, na avenida São João,
não eram completas enquanto o chefão do NP não entrasse nas bancas do centro de
São Paulo para perguntar ao jornaleiro como estava a vendagem de sua
publicação. Invariavelmente, em uma delas, colocava a mão no bolso e comprava
um exemplar no periódico. “Sou o leitor número 1 do Notícias”,
justificava-se para dona Giulietta, sempre inconformada com a atitude do
marido.
Apenas quando o letreiro
do cinema anunciava a exibição de Doutor Jivago, a obra-prima de David
Lean baseada no romance de Boris Pasternak, o romeno se transformava. Parecia o
único momento em que, para ele, não havia laudas, clichês ou rotativas – talvez
por isso tenha arrastado a mulher quase uma dezena de vezes à sala de projeção.
Ao apagar das luzes, Mellé parecia hipnotizado - não pelos olhos azuis de Julie
Christie ou pelo portentoso bigode de Omar Sharif, e sim pelas paisagens
geladas que lembravam a Sibéria, seu lar forçado durante dez anos. Não por
coincidência, comprara o disco com a trilha sonora da película e transformara o
Tema de Lara, de Maurice Jarre, na música oficial do trabalho em seu
escritório. Para animá-lo, ou isso ou as peripécias do detetive Steve
McGarrett, do seriado televisivo Havaí 5-0, seu favorito.
Enquanto isso, o Notícias
Populares começava a ganhar as feições de um jornal popular, no sentido que
no romeno o concebia: com ênfase na parte policial e esportiva, as preferências
do povo. Isso sem contar, claro, as fotos de belas mulheres, sempre retratadas
em poses sensuais, e matérias sobre sexo. Mellé, contudo, não se limitou a
repetir fórmulas já batidas. Uma de suas grandes inovações era deixar a decisão
da manchete que iria para as bancas com os contínuos, trabalhadores normalmente
à margem de qualquer opinião jornalística. A ousada jogada, porém, revelou-se
genial. Uma das principais peculiaridades do Notícias Populares era o
fato de que seus jornalistas falavam, em geral, para classes a que não
pertenciam – o que dificultava o acerto no uso da linguagem. A saída encontrada
por Mellé dizimou toda e qualquer insegurança a respeito da eficácia de uma
determinada mensagem para os leitores do jornal. Nada melhor do que usar essa amostragem
para definir a manchete, principal atrativa para o público, determinante na
hora da venda do produto em banca.
Inicialmente, a tarefa
coube a um contínuo, o carioca Guilherme Soares, crioulo forte com quase 1,90
metro de altura. Seu apelido, Mug, fora dado por Ramão Gomes Portão em razão da
semelhança física do funcionário com um bandido da época. Seu porte físico o
fez acumular também a função de guarda-costas de Mellé. Aproveitando essa
proximidade, o romeno começou a pedir a opinião de Mug para as manchetes que a
redação escolhia. “O que acha, moço? O que você entende disso? Acha que vende”,
perguntava Mellé. Em caso de afirmativa, o chefe costumava dizer vox Populi,
vox Dei e mandava rodar a manchete.
Em um episódio de briga
na Assembleia Legislativa, por exemplo, a redação optou pela manchete RIFIFI NA
ASSEMBLEIA. Um filme francês em cartaz na época tinha o mesmo termo em seu
título. Mellé leu a sugestão e sentenciou: “Não, o povo não entende isso. Isso
é coisa de vocês”. Para provar sua tese chamou Mug. “O quer você entende,
moo?”, indagou ao rapaz que fazia cara de espanto ao ler a frase, claramente
sem entender o que estava escrito naquele pedaço de papel. Então Mellé explicou
a história, e o rosto do contínuo se iluminou. “Ah, teve um quebra-pau na
Assembleia”, exclamou. E assim foi para as rotativas.
Mug, todavia, não era o
único conselheiro de Jean Mellé. Certo dia, a redação do Notícias Populares
preparava-se para rodar uma manchete corriqueira, sobre um crime em São Paulo.
Mellé entrou na gráfica e reparou que todos os funcionários estavam aglomerados
para ler uma pequena nota sobre a suporta aparição de uma mula-sem-cabeça na
capital. Parou as máquinas na hora e mudou a manchete. A nova capa estourou nas
bancas. “Pova sabe, pova conhece”, justificava.
Outra aposta inovadora do
romeno foi a cobertura incessante do dia-a-dia dos artistas, coisa que poucos
veículos faziam na época. A lógica era simples: artista vendia jornal. Por
isso, o NP usava e abusava de gente famosa em suas primeiras páginas, atraindo
a atenção do povo. Além de alavancar as vendagens, esse chamariz rendia fama à
publicação, que ficava conhecida nas mais diversas camadas sociais.
E a maior prova desse
fenômeno jornalístico seria proporcionada, quem diria, por uma gangue de
garotos cabeludos e garotas com minissaias coloridas.
Publicado originalmente em JÚNIOR, Celso de Campos, MOREIRA, Denis, LEPIANI, Giancarlo, LIMA, Maik Rene. Nada mais que a verdade: a extraordinária história do jornal Notícias Populares. São Paulo: Carrenho Editorial, 2002.
Nenhum comentário:
Postar um comentário