Capítulo 7: O calhambeque acelera na Barão de Limeira
Capa do "Notícias Populares" em 13 de fevereiro de 1968 |
Por Celso de Campos
Júnior, Denis Moreira, Giancarlo Lepiani e Mark Rene Lima
Pouco tempo depois do jovem Roberto Carlos ter pisado pela primeira vez no palco da TV Record, em setembro de 1965, toda a cidade já estava contaminada pela febre da Jovem Guarda, movimento musical que influenciou o comportamento de toda uma geração nas décadas de 1960 e 1970. Protagonizada por Roberto (o Rei), Erasmo Carlos (o Tremendão) e Wanderléa (a Ternurinha), e contando com coadjuvantes do quilate de Jerry Adriani, Wanderley Cardoso, Ronnie Von e Rosemary, a Jovem Guarda passou como um furacão pela juventude brasileira, já agitada pela vibração de Elvis Presley e dos Beatles. Indiscutivelmente, o iê-iê-iê era a coqueluche da época. Como Mellé também queria que seu Notícias Populares fosse a maior brasa, a união era inevitável.
O início desse flerte
aconteceu com os Beatles, reis indiscutíveis do ritmo das paradas mundiais.
Democrático como sempre, o NP abrigava lado a lado em suas páginas de
variedades um folhetim de Dostoievsky e as notícias sobre os batutas de
Liverpool. Eles apareciam até quando não tinha nada a ver com o assunto: em
fevereiro de 1965, uma foto de Ringo Starr e George Harrison fumando charutos
ilustrava uma reportagem intitulada PLAY-BOYS DE SÃO PAULO PODEM USAR ATÉ BATOM
E PÓ-DE-ARROZ: NÃO É CRIME.
O rei brasileiro apareceu
pela primeira vez com destaque na capa um ano depois, em 1º de março de 1966:
ROBERTO CARLOS EVITA QUEBRA-PAU CANTANDO. Tudo aconteceu em um show em
Sorocaba, no interior paulista, quando o empresário que havia contratado o
artista não quis entregar todo o dinheiro combinado pelo espetáculo. Roberto
Carlos, então, cantou apenas duas músicas e saiu atrás do homem que o tungava
em Cr$ 3 milhões. Entretanto, a impaciente plateia, que lotava o Ginásio de
Esportes, ameaçou invadir os bastidores para ter o dinheiro de volta. Para
acalmar os ânimos, o astro do iê-iê-iê brasileiro voltou ao palco, terminou o
show e ainda saiu aclamado de Sorocaba.
No mês seguinte, o
assunto cresceu – e o NP percebeu que a Jovem Guarda já conquistara a
preferência da juventude paulistana. No início de abril, o jornal chegou a
noticiar na capa que os Beatles estavam “condenados à degola em São Paulo” – as
bilheterias do filme Help estavam caindo. Duas semanas depois, a Jovem
Guarda tomava a manchete: IÊ-IÊ-IÊ ALARMA DEPUTADOS E DIVIDE ASSEMBLEIA. Tudo
porque Roberto Carlos havia reunido 10 mil fãs no show que comemorava seu
aniversário.
A coisa esquentou mesmo
em 25 de abril de 1966, quando Ramão Gomes Portão soltou a seguinte manchete
policial: ROBERTO CARLOS DEU 2 TIROS NOS AGRESSORES. O Rei do calhambeque
discutiu cum uma pessoa na rua e disparou para cima, sem maiores consequências
para sua carreira. Entretanto, o tino do romeno percebeu imediatamente o
promissor filão da Jovem Guarda. Daí para frente, splish splash:
choveram notícias e manchetes com o pessoal da turma. Como visto no caso dos
tiros, a cobertura do assunto dava menor atenção à atuação artística da gangue,
priorizando os escândalos pessoais de seus personagens. Namoros, brigas e
drogas eram temas recorrentes na vida dos roqueiros e nas páginas do periódico.
Em termo de transgressões, o caneco era de Erasmo Carlos – de acordo com o Notícias
Populares, o Tremendão fora acusado de “transar com mocinhas” e havia tido
problemas com a polícia. Também os coadjuvantes da época costumavam ser
lembrados em saias-justas e confusões.
Além do sucesso de
público, existe outro fator, implícito que justificava a frequente presença dos
roqueiros brasileiros nas páginas do NP. O caráter despolitizado da turma de
Jovem Guarda, mais preocupada em acelerar suas máquinas na Rua Augusta do que
contestar os rumos que os militares começavam a ditar no País, atraía e muito o
chefão Jean Mellé – um sabido entusiasta das Forças Armadas. Entre divulgar a
rebeldia política de Geraldo Vandré, Chico Buarque e Edu Lobo, todos ligados à
esquerda, ou a rebeldia adolescente de Roberto Erasmo e Ronnie Von, todos
ligados somente à bateria de suas carangas, o editor nem hesitava.
Por mais que os outros
tentassem podá-lo, Roberto Carlos era a flor do jardim do Notícias Populares.
Grande destaque do cenário musical brasileiro, qualquer notícia que se
relacionasse a ele tinha enorme repercussão na mídia; no NP, então, os rumores
multiplicavam-se por dez. Culpa de Jean Mellé, que, astutamente, usava e
abusava da imagem do Rei para vender jornal. A proximidade passou a ser tanta
que o romeno até chegou a receber Roberto algumas vezes para jantar. “Hoje não
ter cadávro pro primeira página. Liga Roberto Carlas. Qualquer
coisa Roberto Carlas manchete”, costumava dizer.
Com tanto entusiasmo da
parte do editor, não é difícil imaginar que, por várias vezes, o Notícias
Populares exagerava na dose. Certa vez, pelos idos de 1968, o jornal estava
sem manchete, e Mellé pediu ao repórter José Carlos Bardawil que telefonasse ao
Rei para descolar alguma coisa. Ao falar com o diretor da TV Record, Paulinho
de Carvalho, Bardawil ouviu uma resposta negativa: Roberto Carlos estava em
Nova York. Não precisava, mas o diretor ainda acrescentou: “Estou ligando para
lá e não consigo falar com ele”. Para Bardawil, a história estava enterrada.
Bastou levar as informações para Mellé, porém, para perceber que não era bem
assim. De primeira, o editor rebatou: “Mancheta, mancheta!” Era a deixa para
que alguém pegasse papel e caneta e anotasse a manchete, que já estava em sua
cabeça.
Ditou: “Desapareceu
Roberto Carlas. Linha fina lá em cima: Paulinho de Carvalho do canal 7
não acha ‘brasa’ em Nova York”. Pouco adiantaram as ponderações de Bardawil,
dizendo que a Record, amparada pela lei, iria exigir um desmedido, e que o
jornal iria se desmoralizar com o episódio. “Não, deixa comigo, você não está jornalisto
mais. O maior jornalisto do mundo é o Jean Mellé”. E assim, em 13 de
fevereiro de 1968, o NP estampava na primeira página: DESAPARECEU ROBERTO
CARLOS. Não demorou para uma multidão aparecer diante da sede do jornal,
querendo entrar à força para obter mais informações sobre o sumiço do ídolo. A
redação no aperto, tendo de inventar desculpas para os leitores desesperados, e
Mellé não chegava. No fim da manhã, entra o romeno, saltitante: “Mais de 20 mil
jornalos! Jean Mellé genial! Mas 18.900 jornalos. Jean Mellé
gênio, gênio, gênio, genial!”.
No entanto, restava ao
Aladim romeno a pendência com o diretor da Record, que já estava espumando
atrás os responsáveis pela notícia. Tranquilo, Mellé escutava por telefone uma
série de impropérios, sempre dizendo ao interlocutor: “Si, si, Paulinha,
mas deixa Jean Mellé falar, Paulinha”. Na primeira oportunidade, o
romeno em um tom quase angelical, explicou: “Eu estava aqui Paulinha,
solitário em minha redaçon, quando comecei a pensar nos meus amigos do peita.
Comecei a pensar Paulinha de Carvalho. Pobre Paulinha. Está três dias
sem seu ídolo. Seu ídolo está em Nova York. Paulinha perdendo dinheira.
E eu ficar com pena de Paulinha. Pobre Paulinha, ninguém fala de Paulinha,
ninguém fala de TV Record. Aí eu pensei: porque não dar primeiro página de
jornal que vender 110 mil exemplaros, maior tiragem de São Paulo, no
banca? Por que não dar manchete para Paulinha? De graça, sem cobrar nada,
gratuita”. Paulinho já amolecera, mas Mellé não parava. “Ah, ótimo, ótimo. Pois
bem, então eu dei mancheta. Si, si, desmentido? Claro, mas o desmentido,
deixa com Mellé. Mellé amiga sua”.
Desligado o telefone, de
imediato, o romeno já tinha a manchete. ACHARAM ROBERTO CARLOS. Linha fina: “porque
‘brasinha’ deixou Waldorf Astoria em Nova York”. Nas páginas internas, o
leitor, aliviado, iria descobrir que o Rei saíra do hotel sem avisar ninguém
“para escapar dos repórteres e fotógrafos e para ter tranquilidade com sua
noiva Cleonice”. No dia seguinte, 14 de fevereiro de 1968, o NP vendeu os
mesmos 18 mil jornais a mais, e não sofreu consequência alguma. Mellé tinha de
manter sua fama de mau.
E não parava por aí.
Desde abril de 1967, o Notícias Populares trazia uma seção que prometia
ser o “mais completo noticiário sobre o movimento da Jovem Guarda”. A coluna
“Barra Limpa” era feita por profissionais que se mantinham em contato diário
com expoentes da juventude. Dentre os incumbidos da missão estavam nomes como
Hebe Camargo, Silvio di Nardo e Moisés Forner, que contavam com as dicas
quentes de Meninão e Moracy do Val.
Antes mesmo desse fato,
quando descobriu que a revista Capricho, dirigida a adolescentes vendia
até 500 mil exemplares, Mellé adicionou mais ingrediente à sua receita de
sucesso: as fotonovelas. A melhor delas veio em 1967. Sem pestanejar, bateu o
martelo: “Chama Roberto Carlas. Quero falar com Roberto Carlas.
Chama nossa fotógrafa, chefe dos fotógrafas. Amanhã começa
fotonovela”. E assim foi. De 2 de fevereiro até 6 de junho, as páginas do NP
traziam a fotonovela “A Caminho do Amor”, uma história de romance protagonizada
pelo Rei e por Débora Duarte. Vendia muito, apesar da produção tosca – em certo
capítulo, uma foto tinha como fundo uma Kombi do jornal, logotipo do NP e tudo.
Outras fotonovelas foram protagonizadas por Erasmo Carlos, Martinha e Vanusa
(“Paixão Desenfreada”), Ted Boy Marino, Agnaldo Rayol, Ronnie Von (“Amar é o
Meu Tormento”), Wanderley Cardoso e Rosemary (“Diário de Elisa”). A chamada de
capa na estreia dessa última não poderia ser mais atrativa: HOJE NO NOTÍCIAS
POPULARES: WANDERLEY CARDOSO CASA COM ROSEMARY.
Evidentemente, a agenda
lotada não permitia que os brasas da Jovem Guarda participassem de todas as
produções. Mas não era problema. Sem nenhum remorso, o jornal apelava também
para atores pouco fotogênicos, estrelas de fotonovelas que flutuavam entre o
trágico, o cômico e o patético. Nessa categoria, merece registro a incrível
trama de “Gilda”, publicada em 1966. O enredo era simples: uma jovem desiludida
com a vida, pretendia atirar-se do viaduto do Chá. Apesar da precária produção,
a história do nada glamouroso suicídio ficaria por semanas a fio nas páginas do
NP.
Com certeza, Gilda não era a garota papo-firme que o Roberto falou.
Apesar de viver intensamente as aventuras da Jovem Guarda, o Notícias
Populares acabaria lembrado nas décadas seguintes por um polêmico episódio
que envolveu um legítimo representante da MPB engajada. Em 21 de outubro de
1967, Sérgio Ricardo apresentava-se no teatro Paramount, em São Paulo, durante
o III Festival de Música Brasileira da TV Record. O polivalente cantor,
compositor e cineasta paulista defendia Beto Bom de Bola, de sua
autoria, quando parte de plateia começou a apupá-lo. Sérgio Ricardo ainda
tentou continuar com a apresentação, mas as vaias tornaram-se frenéticas, e
acabaram tirando o artista do sério. Após esbravejar contra o público – “vocês
são uns animais!” -, o cantor espatifou seu violão no palco. Os destroços do
instrumento foram atirados na audiência; ainda que não tenham provocado baixas
nos espectadores, acabaram fazendo o apresentador Blota Jr. desclassificar a
música.
Toda esse mise-en-scène
aconteceu num sábado á noite; no domingo, alguns jornais, como Folha da Tarde,
trouxeram o registro do fato, sem muito destaque. Foi somente na segunda-feira
que os periódicos se debruçaram sobre o festival, vencido por Edu Lobo, Marília
Medaglia e Quarteto Novo com a música Ponteio. Assim, o Notícias Populares de
23 de outubro de 1967 (nessa época, o jornal não circulava aos domingos), na
capa de seu segundo caderno, trazia uma burocrática chamada: ACABOU O FESTIVAL
COM VIOLÃO QUEBRADO E JOGADO AO PÚBLICO. Nas internas, o título não era mais
criativo: FESTIVAL TERMINOU COM CANTOR JOGANDO SEU VIOLÃO NA PLATEIA. Esse
também foi o tom dos principais veículos da grande imprensa paulistana. O mais
espirituoso foi o Jornal da Tarde, que trouxe, ao lado da foto de Sérgio
Ricardo destruindo o instrumento a chamada ESTA VIOLA NÃO DÁ MAIS SAMBA.
Décadas após o episódio,
entretanto, não é difícil ouvir veteranos jornalistas e leitores dizendo que a
manchete do NP nessa ocasião foi a famosa e genial VIOLADA EM PLENO AUDITÓRIO.
Basta uma consulta à coleção do Notícias Populares do mês de outubro de
1967 para desmentir essa afirmação, que virou uma espécie de mito do jornalismo
popular, ensinado pelas escolas de comunicação Brasil afora. Todas as pistas
indicam que o NP apenas levou a fama pela genial manchete – que, garantem
testemunhas, foi mesmo publicada em algum lugar. O próprio Sérgio Ricardo
afirma que a manchete existiu, mas não tem certeza do veículo – os mais
cotados, em sua opinião, eram o Notícias Populares e O Dia, do
Rio de Janeiro (que também não apresenta o texto em sua coleção). Como o
sucesso do jornal de Mellé levou à criação de várias publicações nanicas que
imitavam o estilo do NP, a hipótese mais provável para a ocorrência dessa
confusão é a de que a manchete tenha sido estampada na capa de um desses
pequenos jornais, que não sobreviveu ao tempo ou à memória jornalística. E quem
tem fama, deita na cama: a “violada”, ainda que involuntariamente, passou a
agrupar o currículo do Notícias Populares.
Mas seria injusto dizer
que o NP não deu atenção ao caso. Dia 24 de outubro, o editor dedicou sua “Jean
Mellé Informa” para explicar PORQUE SÉRGIO RICARDO QUEBROU SEU VIOLÃO AO OUVIR
APUPOS INJUSTOS. A tese do romeno era a de que as vaias não foram uma
manifestação espontânea do público; assim como outras personalidades, Mellé atribuiu
a bagunça a “torcidas organizadas” e a alguns “agressores” da liberdade.
Pouco depois, porém, a
boa-vontade do chefe – que já não morria de amores por Sérgio Ricardo – foi
para o espaço. Tudo porque o cantor afirmara que passaria a cantar apenas para
“camponeses e operários”. Em sua coluna do dia 25, vendo no comentário um
elogio a Moscou, Mellé não perdoou: “Se o compositor estava nervoso, não
deveria usar a ameaça fácil hoje em dia para todo os descontentes do mundo
ocidental”.
No dia 26 de outubro, todavia, tudo isso já estava esquecido. O Notícias
Populares trazia uma notícia indiscutivelmente mais importante para a
humanidade. Cientistas davam o alerta de uma das consequências da
industrialização desenfreada, e o NP, sem perder tempo, avisava os homens:
APROVEITE LOGO PORQUE AS LOURAS VÃO ACABAR!
O editor e jornalista Jean Mellé abraçando o cantor Roberto Carlos |
Publicado originalmente
em JÚNIOR, Celso de Campos, MOREIRA, Denis, LEPIANI, Giancarlo, LIMA, Maik
Rene. Nada mais que a verdade: a extraordinária história do jornal Notícias
Populares. São Paulo: Carrenho Editorial, 2002.
Um comentário:
Quantas informações. Gastei muito.
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