terça-feira, 29 de agosto de 2023

MÁRIO LAGO: “NÃO TENHO CORONÁRIA PARA AGUENTAR CONVERSA DE CENSOR” (Status, outubro de 1978)

MÁRIO LAGO: “NÃO TENHO CORONÁRIA PARA AGUENTAR CONVERSA DE CENSOR” (Status, outubro de 1978)

 

Aos 66 anos, Mário Lago só é velho nos papéis de velho que faz na televisão. Alto, espigado, disposto, vive cada momento.

 

É o que se pode chamar de um vitorioso. Fazia sambas, e então fez coisas como Dá-me Tuas Mãos, Número Um, Aurora e um “hino nacional”: Amélia, a que era mulher de verdade.

 

Escritor, está com dois best-sellers na praça (Na Rolança do Tempo e Bagaço de Beira de Estrada), enquanto prepara mais um, este de ficção: No Rabo da Noite.

 

Artista de rádio, esteve sempre na “emissora da moda”, com os programas que faziam a fortaleza da rádio: novelas e teatralizações. Artista de televisão, coleciona prêmios por suas atuações. Atuações que são, até à prova de preconceitos e de inimizades. Durante muito tempo, a Globo teve uma cubana exilada – Glória de Magadan – a sua ditadura em matéria de novelas. E ela vetou a entrega de um papel a Mário Lago, alegando a que ele “era subversivo”. Outras pessoas interferiram, o papel (de um coronel nazista) acabou sendo entregue a Mário Lago e, no fim, a própria Magadan era levada a reconhecer:

 

- “O Mário não gosta de que eu escrevo, mas diz a coisa com a verdade que eu quero que seja dita”.

 

As convicções libertárias e antifascistas de Mário Lago custaram-lhe mais do que um “veto” de Glória de Magadan. Custaram-lhe desemprego, incompreensões e cadeias.

 

- “Minha primeira cana foi antes ainda do Estado Novo...”

 

Mas a sua postura de homem digno e coerente também lhe valeu amizade e respeito. Numa das demissões políticas, seguidas de prisão, vizinhos e amigos cuidaram de sua casa. Quando saiu, Dercy Gonçalves chamou-o para trabalhar numa das suas peças malucas. Mário Lago se constrangeu, não era o seu ramo, talvez não desse certo. Dercy não quis saber:

 

- “Importante agora é o leite das crianças...”

 

Mário aceitou, fez o melhor que pôde, e até hoje não esquece Madame Dercy, como não esquece outros amigos e companheiros. Mas os “dedos-duros” da Rádio Nacional, que aproveitaram o clima de pós-64 para fazer uma “fofoca-monstro” e conseguir a demissão de muitos artistas, entre eles Mário Lago -, para ficar com os seus lugares – Mário esquece. Numa entrevista como esta, de pelo menos três horas de gravação, passou por alto, e depressa, nesse assunto.

 

Mário vive num apartamento de andar inteiro, ao lado de dona Geny Cordeiro, os cinco filhos (quatro naturais e um adotado), os netos e a movimentação de uma casa alegre e feliz. O tempo é para as conversas, a música, escrever...e decorar falas de seu personagem em Dancin´- Days, o carro-chefe das novelas da Globo. Gosta do personagem, o megalomaníaco Alberico, porque o papel é muito rico e o personagem, afinal, inofensivo:

 

- “Um megalomaníaco torna-se perigoso só quando alcança o poder. Num Terceiro Reich, esse Alberico seria o führer...”

 

Mário Lago está vivo, de olhos abertos e vende tudo. Não escreve novela de televisão porque não tem mais “coronária para aguentar conversa de censor”:

 

- “Coitados. A maioria corta com medo de perder o emprego...”

 

Nesta entrevista, ele fala de muitas coisas. Com a lucidez e a coragem de um Mário Lago.

 

Status. Você concorda, Mário, que algum tipo de censura deve haver?

Mário Lago. Não, nenhum tipo. Censura é castração.

 

Status. Nem para os programadas da tarde na tevê, esses dirigidos quase que diretamente às crianças?

Mário. Não, censura não, nunca, porque é uma questão de precedente. O que deveria haver é um trabalho educativo junto à direção dos órgãos de comunicação, para uma programação adequada. Você vê: numa novela, que procura retratar a realidade de hoje, a vida de hoje no Brasil, a censura cai matando. Mas a violência dos seriados, esses mesmos que passam à tarde, com toda sua violência enlatada, esses a censura não vê. É o uso de dois critérios, de duas medidas. Uma pornochanchada, alienante e de mau gosto, atravessa incólume a censura; um filme que pretenda mostrar a realidade econômica do Brasil, a nossa miséria – que precisa ser conhecida para ser combatida -, esse a censura corta.

 


Status. Pra você, então, a censura é política?

Mário. Só é política. Repare inclusive nos seriados de violência, os Kojak e Bareta da vida, há visível mensagem política atrás deles, a mostrar que o mocinho, o bonzinho, é sempre a polícia. Eles são “contra a violência”, a violência nunca está neles...O interesse é formar no espírito público a mentalidade de que a polícia é boazinha e que a violência – como diria aquele infausto secretário da Segurança de São Paulo, numa gargalhada de assustar Pinel -, “ a violência é coisa de satanás” Quando um secretário da Segurança sai dizendo isso – “a violência é coisa de satanás...” – a gente entende por que De Gaulle disse a famosa frase: “Brésil nést ce pas um pays sérieux...

 

Status. Suas prisões, Mário deveram-se sempre as movimentações que você liderava?

Mário. Não, nem sempre. A primeira, por exemplo, foi por osmose. Eu namorava uma garota que trabalhava em fábrica e então, uma tarde, eu estava esperando-a na saída, quando chegaram uns rapazes e começaram a fazer discurso. Me aproximei para ouvir melhor, chegou a polícia e me levou.

 

Status. Isso em pleno Estado Novo?

Mário. A que Estado Novo você se refere? Já tivemos muitos; o atual, por exemplo, é o “Estado Novo da UDN...” Mas essa prisão na porta da fábrica onde trabalhava minha namoradinha foi antes de qualquer Estado Novo, foi em janeiro de 32.

 

Status. De qualquer foram, você conviveu com vários períodos de repressão no Brasil. É tudo a mesma coisa, ou há nuanças, variações...

Mário. Há nuanças, por certo. Toda repressão é terrível, mas tudo depende da “imagem” que se queira dar ao país em dado momento. Houve uma fase, na ditadura getulista, em que havia interesse a dar a Getúlio a imagem do “papai grande”, do chefe paternalista e, até, do grande malandro... Eu escrevia peças de teatro de revista e, num dos meus quadros, aparecia Getúlio e quatro outros figurões da época jogando baralho, e todos roubando, só que Getúlio roubava mais, era o “mais vivo”, o “mais sabido”. A censura deixou passar, estava de acordo com a imagem que se queria fazer do Gegê. Em outro quadro da mesma peça, havia uma sátira à Legislação Trabalhista, e essa foi cortada...A lei trabalhista era um ponto vital da propaganda, era o ponto em que o “papai grande” cuidava dos pobres trabalhadores...

 

Status. Mas a legislação trabalhista de Getúlio não era, para época, algo avançado? Por que a sátira, então?

Mário. Bem, lei só tem graça quando violada... Toda lei tem seus furos, mesmo porque a lei é feita por advogados, e eles não são bobos de não deixar as válvulas para eles próprios e seus colegas ganharem o seu dinheirinho. Mas o grande furo da Legislação Trabalhista é que, de qualquer forma, trata-se de uma demanda judiciária, e o empresário tem fôlego para aguentar uma demanda indefinidamente, enquanto o trabalhador, se não receber logo os seus direitos, acaba morrendo de fome. Então, ele, o trabalhador, tem duas escolhas: ou demanda infinitamente, expondo sua família à humilhação e à miséria, ou aceita o acordo que o empresário lhe propõe – que é o que acaba sempre acontecendo. Na minha peça, aparecia a história de um trabalhador cuja demanda durou até que ele, velhinho, tendo visto os cinco filhos morreram, ainda esperava a decisão. Isso a censura capou.

 

Status. Mas dessa vez você não foi preso?

Mário. Não.

 

Status. A repressão, hoje, Mário, é mais rude do que anteriormente?

Mário. Bem, tudo evolui, não é mesmo? Tudo é questão de tecnologia: antigamente, você levava uma pancada de cassetete, doía e ficava a marca. Hoje só fica a dor, a tecnologia criou cassetetes que não deixam marca.

 

Status. Por falar nisso, você já foi torturado?

Mário. Pessoalmente, fisicamente, não. Mas você quer a tortura maior do que ver a maioria da população brasileira com salário mínimo – ou menos? Você vai à feira hoje, é um preço, vai amanhã, já aumentou. Sobe a gasolina, sobe o transporte, tudo sobe atrás – só o salário não sobre. O custo de vida sobe 44% num ano, aumentam os salários só em 41%. Isso não é uma tortura? Você nem precisa ser preso, é torturado em casa mesmo...

 

Status. Vamos dar uma virada no rumo dessa entrevista, Mário. A música em você é um acidente? Um hobby?

Mário. Não, absolutamente. A música em mim é um problema genético...Meu pai era músico, minha mãe, de família de músicos. Então, fui gerado num útero predisponente... Desde pequeno fui encaminhado para a música, no piano. Minha professora era dona Lucília, a primeira mulher de Villa Lobos. Estudei sete anos no conservatório com ela.

 

Status. Seu pai tocava o quê?

Mário. Tocava a orquestra, ele era maestro. E era um maestro muito bom, tanto que ganhava 3 contos por mês. Três contos, aí por 1920, era um grande salário, e seria realmente grande se o velho não perdesse parte dele no baralho. Perdia tanto que assisti a muitas broncas em casa por causa disso. Acho que vem daí, aliás, o fato de eu não tenha atração nenhuma para jogo de azar.

 

Status. Como é seu nome inteiro?

Mário. Mário Lago, só isso. Meu pai tinha um nome um pouquinho maior: Antônio de Pádua Juvita Correio do Lago. E eu deveria chamar-me Mário de Pádua Juvita Correio do Lago, mas eu nasci com apenas 40 centímetros e 2 quilos de peso. O velho achou que aquela coisinha não poderia arrastar nome tão grande, e simplificou para Mário Lago, esperando com isso, que o nome não me pesasse.

 

Status. E você curtiu muito o pai maestro?

Mário. Muito. Desde pequeno eu ia levar músicas para ele lá no teatro, as orquestrações, tirava cópias etc., e vem daí o meu fascínio pelo teatro. Quando cheguei ao segundo ano da faculdade de direito, estava tão embalado com teatro que resolvi deixar o curso. Mas minha mãe – sempre a mãe! – achou que ter um diploma, ter um título, aquele negócio, é sempre bom, então resisti. Mas quando me formei – e a formatura foi no Teatro João Caetano, onde passavam uma peça minha – pus o diploma no armário e nunca mais vi.

 

Status. E seus pais aceitaram bem a decisão de você não advogar?

Mário. Lutaram sempre. O velho dizia que não queria me ver numa profissão instável quanto a sua – ele chegava a passar três meses desempregado. Minha mãe também fazia a sua carga. Mas o fato é que, quando foi a estreia da minha primeira peça – chamada Flores da Cunha -, os espectadores mais entusiasmados, da primeira fila, eram mesmo o maestro Antônio Lago e sua senhora...

 

Status. E quando você passou de autor a ator?

Mário. Em 42. Foi ideia do Joracy Camargo...

 

Status. Mas aí você já tinha feito Amélia, não?

Mário. Amélia, Aurora, Nada Além, Número Um, Dá-me Tuas Mãos... Tinha várias músicas, algumas “estourando”, e inclusive o Joracy me disse que interessava a ele e à sua companhia me ter como ator porque isso podia significar promoção.

 

Status. Daí para o rádio foi um pulo?

Mário. Um pulo, não. Em 43, a convite do Otávio Gabus Mendes, fiz um teste para locutor de rádio, e o “testador” me disse: “você não serve para rádio, sua voz é muito metálica, não serve”. Eu estava certo de que o moço tinha razão, e estava ganhando dinheiro no teatro e com minhas músicas, mas aí o Oduvaldo Vianna, que estava formando o elenco da antiga Rádio Panamericana de São Paulo, me convidou. Titubeei no começo, acabei aceitando. E fui morar em São Paulo.

 

Status. E bagunçou bastante na Paulicéia, a ponto de ser candidato a deputado?!

Mário. Bem, na Panamericana fiquei uma no só. Voltei ao Rio, já para a Rádio nacional, depois Mayrink, depois Tupi e, em 48, voltei outra vez para São Paulo. Fui então para a Rádio Bandeirantes, cujo diretor artístico era o Dias Gomes e, enquanto era da Bandeirantes, foi que fui candidato a deputado paulista.

 

Status. Ganhou?

Mário. Perdi a eleição e o emprego...Aliás, nem cheguei à eleição, desisti antes. O caso era que a Rádio Bandeirantes era do Ademar de Barros e seu genro, João Saad, o diretor. O João era pessoa com quem me dava bem, mas um dia ele me chamou: “Ô, Mário, vem cá. Tem uma situação muito chata. No seu comício do Jardim Higienópolis, o mínimo que você disse do Ademar foi crapuloso. E a estação é do homem, eu sou seu genro. Como é que nós ficamos?!” Ficamos na rua... Aí voltei para o Rio, para a Rádio Nacional outra vez, agora sob direção do Vítor Costa. Com a direção anterior eu tinha brigado.


(...)

 

Status. E como você voltou, um ano depois para a mesma Nacional?

Mário. A direção tinha mudado, o tal superintendente tinha saído, e o Vítor Costa, com quem eu me dava muito bem, chamou-me de volta. Foi então que fiquei na Nacional de 1949 até a grande fofoca de 1964.

 

Status. E o que você fazia?

Mário. O certo era perguntar o que eu não fazia. Escrevia programa, ensaiava, era autor, ator, escrevia novela, tinha o Presídio de Mulheres, uma série que durou cinco anos...Mergulhei de tal maneira na vida da Rádio Nacional que não tinha mais tempo para a música.

 

Status. E valeu a pena?

Mário. Tudo vale a pena. No caso da Nacional, temos de reconhecer que foi o grande marco na radiofonia brasileira. Marcou época no Brasil, incontestavelmente, com seu elenco de sessenta pessoas, sua orquestra de setenta músicos, todos os grandes cantores brasileiros lá...E, além disso, a Rádio Nacional foi a única estação de rádio do Brasil que, em dado momento, foi dirigida por um sindicato. O presidente do Sindicado dos Radialistas, Hemílcio Froes, era também diretor da rádio e, se na gestão dos negócios da emissora tivesse de tomar uma medida que fosse contrária ao interesse dos trabalhadores, era de seu compromisso renunciar ao cargo na direção. O Sindicato dos Radialistas era forte, respeitado, sua voz se fazia ouvir. Obtivemos muitas conquistas, uma delas foi um mês de férias: nosso sindicato foi o primeiro no Brasil a conseguir férias de trinta dias; outra foi a de o artista não ser obrigado a trabalhar determinadas horas seguidas...


Status. Mas e a delação contra vocês, que acabou implicando na demissão de mais de trinta pessoas da Rádio Nacional?

Mário. Essa é uma parte em que não gosto de me deter. Na verdade, os delatores eram umas pecinhas de bosta da engrenagem maior, tão maior que acabou consumindo-os depois. O problema sério, este sim, é que o movimento de 64 foi um movimento contra os trabalhadores, um movimento que passou a interferir e a desmontar os sindicatos. Como tínhamos um sindicato forte, e a Rádio Nacional era uma empresa de economia mista, ali a mão da reação caiu com toda a força, incorrendo inclusive em ilegalidade quando, por exemplo, fomos demitidos com base num ato adicional editado exclusivamente para servidores pública, coisa que não éramos. Quanto a isso, ainda se ouvirá coisas, a seu tempo...

 

Status. Mas você foi para a rua?

Mário. Para a rua e para a prisão (mais uma). Depois tudo serenou (Mário então mostra um documento da Auditoria Militar do Rio, indicando que não há nada contra ele) e cada um de nós foi procurar trabalho noutro canto. Quanto a mim, fui para a televisão...onde parece que não me dei mal!

 

Status. Falando nisso, é diferente trabalhar no rádio e na tevê?

Mário. Certamente. Até hoje, sempre que posso, ouço uma novela de rádio... Tenho vinte anos de rádio, sou “rato de estúdio”, conheço toda a mecânica dos recursos, das fantasias. Sei que aquele beijo meloso está sendo dado na mão do ator mesmo, porque a atriz está no outro lado, segurando o seu microfone. Sei disso tudo, mas gosto de uma radionovela. O rádio deixa a você a capacidade de sonhar. Você ouve falar numa casa, e você a “constrói” segundo os seus mais recônditos desejos... Nos tempos da Nacional o ouvinte recebia a voz de Ismênia Santos, que já era uma senhora, gorda, mas a entendia como a voz de uma mocinha de dezoito anos, aquela garota linda da esquina que nunca ilava para ele...

 

Status. E a tevê?

Mário. A tevê é fascista. Ela não te dá direito de sonhar, de construir seus sonhos. A tevê apresenta um galã e diz: o galã é esse, você não tem direito de imaginar que seja outro. O jardim não é outro senão esse. É uma postura fascista da tevê, ela tira a ilusão do sonho, da criatividade, da imaginação.

 


Status. Mas para o ator é muito bom!

Mário. Certo, a tevê te dá mais campo. Mas, como a fala é o grande elemento da comunicação, o treino de rádio é muito importante. Quando chegam ao Chico Anísio e lhe dizem: “Chico, na televisão você é o maior!”, ele diz com segurança: “Sou bom porque fiz rádio!”. A Aracy Balabanian (a Aracy é uma das minhas grandes ternuras artísticas) é de opinião que todo curso de arte dramática devia ter uma cadeira de representar em rádio. Cidadão ganha segurança, aumenta o repertório de interpretação, aprende o problema da mobilidade de inflexão da voz.

 

Status. E do teatro para tevê, há diferença?

Mário. Igualmente grande. No teatro você tem gente na primeira fila e tem gente na última fila. E o ator está representando sempre para a última fila, preocupado se todos estão ouvindo, grilado com os teatros que têm problema de acústica, essa coisa toda. Na tevê não há última fila, só a primeira. É como se você estivesse com a cabeça no colo do telespectador. A representação em tevê tem sua técnica própria, que devia ser cadeira nas escolas de arte dramática, se no Brasil houvesse isso...

 

Status. Então não há? E o Alfredo Mesquita?

Mário. Não conheço pessoalmente esse Alfredo Mesquita, mas é uma figura pela qual tenho a maior admiração de minha vida, pelo amor que dedicou ao teatro, pelo esforço em manter sua escola, a qual, depois que passou para a Universidade de São Paulo, vem sendo devidamente arrebentada. A USP está desmontando todo um trabalho feito na base do sacrifício pessoal. Acho que o teatro de São Paulo deve tanto a Alfredo Mesquita que ele devia ser homenageado de pano aberto, toda vez que se iniciasse uma peça...

 

Status. Vamos pular de pato a ganso, Mário. Quando você fazia seus sambas, você frequentava o morro?

Mário. Olha, esse negócio de dizer que morro faz samba é um sectarismo de angulação. Eu fazia samba no teatro, durante as revistas, e meus parceiros – o Ataulfo Alves, o Bidê, o Roberto Martins – eu encontrava na Praça Tiradentes. Eles não eram do morro. Pixinguinha nunca foi do morro. Esse negócio de samba do morro é folclore, é estereótipo... A primeira escola de samba, Deixa Falar, não nasceu em morro, nasceu num café, no Estácio, e logo a classe média assimilou o samba. No Brasil há um aristocratismo que divide, reparte e triparte as classes sociais, para fazer frases. Classes, só há duas: a burguesia e o proletariado. O resto se mescla, se mistura, de acordo com o subdesenvolvimentismo de cada um. Outra invenção é dizer que os sambistas frequentavam o Café Nice, que nem era café. O Noel Rosa, por exemplo, só foi lá uma vez, assim mesmo para ver se encontrava o Francisco Alves.

 

Status. Mas não era só “gente fina” que fazia samba...

Mário. Ao contrário. Aliás, a tônica dos primeiros sambas era a do homem que tomava dinheiro de mulher, uma barra brava, mesmo.

 

Status. E a boêmia era necessária?

Mário. Certamente. Eu sempre fui boêmio, desde cedo.

 

Status. Você chegou, também, a tomar dinheiro de mulher?

Mário. Não, não precisava. Coincidiu, porque eu tinha minha mesada.

 

Status. Mas consta que você era um grande namorador...

Mário. Eu me esforcei, mas garanto que não tive as mulheres que quis; tive as que me quiseram...

 


Status. Como assim? Não é o homem que conquista?

Mário. Não, absolutamente. A mulher é que finge que se deixa conquistar pelo homem que ela escolheu. E esse negócio de “ninguém resista a minha lábia” é autêntico papo-furado. Quanto a mulher não quer, não adianta lábia nenhuma.

 

Status. Você acha, Mário, que todo homem é mulherengo?

Mário. Acho, e acho que é certo. A partir do momento que a mulher não é condicionada ao problema do cio, como são as outras fêmeas, a obrigação de um e de outro é de inter-procurarem. Afinal, eu sou de um tempo em que não era necessário vierem os cardiologistas, virem os analistas dizer que fazer sexo é bom para as coronárias, para o equilíbrio etc. A gente sabia que era bom e pronto: não precisava de propaganda, não.

 

Status. Você amou muito, Mário?

Mário. Muito, e de diversos tipos de amor. Todo amor tem que ser vivido intensamente no seu momento, como se fosse o primeiro e o último. Como e antes dele não tivesse existido nada e como se depois dele não fosse existir mais nada. Agora, amar é um processo de transformações. Numa relação que se prolonga, o amor vai ganhando outras matizes, outros contornos, além daquela primeira atração, do primeiro impulso. Uma vez um sujeito me perguntou: “Mário, você é casado há quanto tempo?” Eu digo: “Trinta anos”. E ele: “Com a mesma mulher?” Eu digo: “Por quê? É obrigado mudar?”.

 

Status. Trinta anos, Mário?

Mário. A caminho de 31. Encontrei na Geny a síntese de tudo o que fui procurando durante muitos anos. Nós continuamos namorados, às vezes a gente briga, mas é briga de namorados. Nunca precisamos nós dois, de “férias para reformulações” nem de analistas. Aliás, de depender de mim, a indústria da psicanálise vai pra falência.


Status. Então, você é a favor do casamento indissolúvel?

Mário. Você acha que um papel passado em cartório segura uma relação que se deteriorou? O que mantém o casamento é o mútuo interesse, não um papel.

 

Status. Pelo jeito, Mário, você não aprova a psicanálise.

Mário. A mulher trabalhadora, o homem trabalhador, não vão ao analista. O tipo de vida que nós levamos, numa sociedade de competição e de “lobo comendo lobo”, talvez torne necessário o analista, em certas faixas. Mas não me venha dizer que é porque o cidadão viu, em criança, seu pai beijando sua mãe, e que gostaria que sua mãe fosse a sua fêmea, que entrou em descompensação e ciúme paterno, que é por isso que sua cuca fundiu. Sua cuca fundiu porque vive numa sociedade que se acotovela, que vive aos empurrões e aos chutes na canela, que vive em permanente competição e foi, educado desde pequeno, a “ser alguém”, a “enriquecer”, a “ter poder”, não importando se, para isso, tenha de pisar os outros. Acaba sendo pisado também, massacrado, frustrado. Vê um cidadão acusado de furto ser nomeado governador. Vê um ministro dizer em maio que a gasolina não vai aumentar, chega em setembro já há quatro aumentos de gasolina... Vê outro ministro dizer que o analfabetismo acabou para, no dia seguinte, o IBGE informar que o analfabetismo aumentou em 35%. Vê o Fundo de Garantia confessar que houve falseamento de dados na manipulação do dinheiro do trabalhador. É uma sociedade toda ela falsificada, uma sociedade de medo, de desconfiança, onde não há respeito aos mínimos direitos do homem. Os direitos básicos de comer, vestir-se, morar, amar, estudar...

 

Status. Qual seria então, Mário, a sua sociedade ideal?

Mário. Uma sociedade socialista.

 

Status. E existe em algum lugar do mundo essa sociedade?

Mário. Eu não vivo em qualquer lugar do mundo. Eu vivo aqui.

 

Publicado originalmente na revista “Status” em outubro de 1978

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