MÁRIO LAGO: “NÃO TENHO CORONÁRIA PARA AGUENTAR CONVERSA DE CENSOR” (Status, outubro de 1978)
Aos 66 anos, Mário Lago só é
velho nos papéis de velho que faz na televisão. Alto, espigado, disposto, vive cada
momento.
É o que se pode chamar de um
vitorioso. Fazia sambas, e então fez coisas como Dá-me
Tuas Mãos, Número Um, Aurora e um “hino nacional”: Amélia,
a que era mulher de verdade.
Escritor, está com dois
best-sellers na praça (Na Rolança do Tempo e Bagaço de
Beira de Estrada), enquanto prepara mais um, este de ficção: No Rabo da
Noite.
Artista de rádio, esteve
sempre na “emissora da moda”, com os programas que faziam a fortaleza da rádio:
novelas e teatralizações. Artista de televisão, coleciona prêmios por suas
atuações. Atuações que são, até à prova de preconceitos e de inimizades. Durante
muito tempo, a Globo teve uma cubana exilada – Glória de Magadan – a sua
ditadura em matéria de novelas. E ela vetou a entrega de um papel a Mário Lago,
alegando a que ele “era subversivo”. Outras pessoas interferiram, o papel (de
um coronel nazista) acabou sendo entregue a Mário Lago e, no fim, a própria
Magadan era levada a reconhecer:
- “O Mário não gosta de que eu
escrevo, mas diz a coisa com a verdade que eu quero que seja dita”.
As convicções libertárias e
antifascistas de Mário Lago custaram-lhe mais do que um “veto” de Glória de
Magadan. Custaram-lhe desemprego, incompreensões e cadeias.
- “Minha primeira cana foi
antes ainda do Estado Novo...”
Mas a sua postura de homem
digno e coerente também lhe valeu amizade e respeito. Numa das demissões
políticas, seguidas de prisão, vizinhos e amigos cuidaram de sua casa. Quando
saiu, Dercy Gonçalves chamou-o para trabalhar numa das suas peças malucas. Mário
Lago se constrangeu, não era o seu ramo, talvez não desse certo. Dercy não quis
saber:
- “Importante agora é o leite
das crianças...”
Mário aceitou, fez o melhor
que pôde, e até hoje não esquece Madame Dercy, como não esquece outros amigos e
companheiros. Mas os “dedos-duros” da Rádio Nacional, que aproveitaram o clima
de pós-64 para fazer uma “fofoca-monstro” e conseguir a demissão de muitos
artistas, entre eles Mário Lago -, para ficar com os seus lugares – Mário
esquece. Numa entrevista como esta, de pelo menos três horas de gravação,
passou por alto, e depressa, nesse assunto.
Mário vive num apartamento de
andar inteiro, ao lado de dona Geny Cordeiro, os cinco filhos (quatro naturais
e um adotado), os netos e a movimentação de uma casa alegre e feliz. O tempo é
para as conversas, a música, escrever...e decorar falas de seu personagem em Dancin´-
Days, o carro-chefe das novelas da Globo. Gosta do personagem, o
megalomaníaco Alberico, porque o papel é muito rico e o personagem, afinal,
inofensivo:
- “Um megalomaníaco torna-se
perigoso só quando alcança o poder. Num Terceiro Reich, esse Alberico seria o
führer...”
Mário Lago está vivo, de olhos
abertos e vende tudo. Não escreve novela de televisão porque não tem mais
“coronária para aguentar conversa de censor”:
- “Coitados. A maioria corta
com medo de perder o emprego...”
Nesta entrevista, ele fala de
muitas coisas. Com a lucidez e a coragem de um Mário Lago.
Status. Você
concorda, Mário, que algum tipo de censura deve haver?
Mário Lago. Não, nenhum tipo. Censura é castração.
Status. Nem para os programadas da tarde na tevê, esses
dirigidos quase que diretamente às crianças?
Mário. Não, censura não, nunca, porque é uma questão de
precedente. O que deveria haver é um trabalho educativo junto à direção dos
órgãos de comunicação, para uma programação adequada. Você vê: numa novela, que
procura retratar a realidade de hoje, a vida de hoje no Brasil, a censura cai
matando. Mas a violência dos seriados, esses mesmos que passam à tarde, com
toda sua violência enlatada, esses a censura não vê. É o uso de dois critérios,
de duas medidas. Uma pornochanchada, alienante e de mau gosto, atravessa
incólume a censura; um filme que pretenda mostrar a realidade econômica do
Brasil, a nossa miséria – que precisa ser conhecida para ser combatida -, esse
a censura corta.
Status. Pra você, então, a censura é política?
Mário. Só é política. Repare inclusive nos seriados de
violência, os Kojak e Bareta da vida, há visível mensagem política atrás deles,
a mostrar que o mocinho, o bonzinho, é sempre a polícia. Eles são “contra a
violência”, a violência nunca está neles...O interesse é formar no espírito
público a mentalidade de que a polícia é boazinha e que a violência – como
diria aquele infausto secretário da Segurança de São Paulo, numa gargalhada de
assustar Pinel -, “ a violência é coisa de satanás” Quando um secretário da
Segurança sai dizendo isso – “a violência é coisa de satanás...” – a gente entende
por que De Gaulle disse a famosa frase: “Brésil nést ce pas um pays
sérieux...”
Status. Suas prisões, Mário deveram-se sempre as movimentações
que você liderava?
Mário. Não, nem sempre. A primeira, por exemplo, foi por
osmose. Eu namorava uma garota que trabalhava em fábrica e então, uma tarde, eu
estava esperando-a na saída, quando chegaram uns rapazes e começaram a fazer
discurso. Me aproximei para ouvir melhor, chegou a polícia e me levou.
Status. Isso em pleno Estado Novo?
Mário. A que Estado Novo você se refere? Já tivemos muitos; o
atual, por exemplo, é o “Estado Novo da UDN...” Mas essa prisão na porta da
fábrica onde trabalhava minha namoradinha foi antes de qualquer Estado Novo,
foi em janeiro de 32.
Status. De qualquer foram, você conviveu com vários períodos
de repressão no Brasil. É tudo a mesma coisa, ou há nuanças, variações...
Mário. Há nuanças, por certo. Toda repressão é terrível, mas
tudo depende da “imagem” que se queira dar ao país em dado momento. Houve uma
fase, na ditadura getulista, em que havia interesse a dar a Getúlio a imagem do
“papai grande”, do chefe paternalista e, até, do grande malandro... Eu escrevia
peças de teatro de revista e, num dos meus quadros, aparecia Getúlio e quatro
outros figurões da época jogando baralho, e todos roubando, só que Getúlio
roubava mais, era o “mais vivo”, o “mais sabido”. A censura deixou passar,
estava de acordo com a imagem que se queria fazer do Gegê. Em outro quadro da
mesma peça, havia uma sátira à Legislação Trabalhista, e essa foi cortada...A
lei trabalhista era um ponto vital da propaganda, era o ponto em que o “papai
grande” cuidava dos pobres trabalhadores...
Status. Mas a legislação trabalhista de Getúlio não era, para
época, algo avançado? Por que a sátira, então?
Mário. Bem, lei só tem graça quando violada... Toda lei tem
seus furos, mesmo porque a lei é feita por advogados, e eles não são bobos de
não deixar as válvulas para eles próprios e seus colegas ganharem o seu
dinheirinho. Mas o grande furo da Legislação Trabalhista é que, de qualquer
forma, trata-se de uma demanda judiciária, e o empresário tem fôlego para
aguentar uma demanda indefinidamente, enquanto o trabalhador, se não receber
logo os seus direitos, acaba morrendo de fome. Então, ele, o trabalhador, tem
duas escolhas: ou demanda infinitamente, expondo sua família à humilhação e à
miséria, ou aceita o acordo que o empresário lhe propõe – que é o que acaba
sempre acontecendo. Na minha peça, aparecia a história de um trabalhador cuja
demanda durou até que ele, velhinho, tendo visto os cinco filhos morreram,
ainda esperava a decisão. Isso a censura capou.
Status. Mas dessa vez você não foi preso?
Mário. Não.
Status. A repressão, hoje, Mário, é mais rude do que
anteriormente?
Mário. Bem, tudo evolui, não é mesmo? Tudo é questão de
tecnologia: antigamente, você levava uma pancada de cassetete, doía e ficava a
marca. Hoje só fica a dor, a tecnologia criou cassetetes que não deixam marca.
Status. Por falar nisso, você já foi torturado?
Mário. Pessoalmente, fisicamente, não. Mas você quer a
tortura maior do que ver a maioria da população brasileira com salário mínimo –
ou menos? Você vai à feira hoje, é um preço, vai amanhã, já aumentou. Sobe a
gasolina, sobe o transporte, tudo sobe atrás – só o salário não sobre. O custo
de vida sobe 44% num ano, aumentam os salários só em 41%. Isso não é uma
tortura? Você nem precisa ser preso, é torturado em casa mesmo...
Status. Vamos dar uma virada no rumo dessa entrevista, Mário.
A música em você é um acidente? Um hobby?
Mário. Não, absolutamente. A música em mim é um problema
genético...Meu pai era músico, minha mãe, de família de músicos. Então, fui
gerado num útero predisponente... Desde pequeno fui encaminhado para a música,
no piano. Minha professora era dona Lucília, a primeira mulher de Villa Lobos.
Estudei sete anos no conservatório com ela.
Status. Seu pai tocava o quê?
Mário. Tocava a orquestra, ele era maestro. E era um maestro
muito bom, tanto que ganhava 3 contos por mês. Três contos, aí por 1920, era um
grande salário, e seria realmente grande se o velho não perdesse parte dele no
baralho. Perdia tanto que assisti a muitas broncas em casa por causa disso.
Acho que vem daí, aliás, o fato de eu não tenha atração nenhuma para jogo de
azar.
Status. Como é seu nome inteiro?
Mário. Mário Lago, só isso. Meu pai tinha um nome um
pouquinho maior: Antônio de Pádua Juvita Correio do Lago. E eu deveria
chamar-me Mário de Pádua Juvita Correio do Lago, mas eu nasci com apenas 40
centímetros e 2 quilos de peso. O velho achou que aquela coisinha não poderia
arrastar nome tão grande, e simplificou para Mário Lago, esperando com isso,
que o nome não me pesasse.
Status. E você curtiu muito o pai maestro?
Mário. Muito. Desde pequeno eu ia levar músicas para ele lá
no teatro, as orquestrações, tirava cópias etc., e vem daí o meu fascínio pelo
teatro. Quando cheguei ao segundo ano da faculdade de direito, estava tão
embalado com teatro que resolvi deixar o curso. Mas minha mãe – sempre a mãe! –
achou que ter um diploma, ter um título, aquele negócio, é sempre bom, então
resisti. Mas quando me formei – e a formatura foi no Teatro João Caetano, onde
passavam uma peça minha – pus o diploma no armário e nunca mais vi.
Status. E seus pais aceitaram bem a decisão de você não
advogar?
Mário. Lutaram sempre. O velho dizia que não queria me ver
numa profissão instável quanto a sua – ele chegava a passar três meses
desempregado. Minha mãe também fazia a sua carga. Mas o fato é que, quando foi
a estreia da minha primeira peça – chamada Flores da Cunha -, os espectadores
mais entusiasmados, da primeira fila, eram mesmo o maestro Antônio Lago e sua
senhora...
Status. E quando você passou de autor a ator?
Mário. Em 42. Foi ideia do Joracy Camargo...
Status. Mas aí você já tinha feito Amélia, não?
Mário. Amélia, Aurora, Nada Além, Número
Um, Dá-me Tuas Mãos... Tinha várias músicas, algumas “estourando”, e
inclusive o Joracy me disse que interessava a ele e à sua companhia me ter como
ator porque isso podia significar promoção.
Status. Daí para o rádio foi um pulo?
Mário. Um pulo, não. Em 43, a convite do Otávio Gabus
Mendes, fiz um teste para locutor de rádio, e o “testador” me disse: “você não
serve para rádio, sua voz é muito metálica, não serve”. Eu estava certo de que
o moço tinha razão, e estava ganhando dinheiro no teatro e com minhas músicas,
mas aí o Oduvaldo Vianna, que estava formando o elenco da antiga Rádio
Panamericana de São Paulo, me convidou. Titubeei no começo, acabei aceitando. E
fui morar em São Paulo.
Status. E bagunçou bastante na Paulicéia, a ponto de ser
candidato a deputado?!
Mário. Bem, na Panamericana fiquei uma no só. Voltei ao Rio,
já para a Rádio nacional, depois Mayrink, depois Tupi e, em 48, voltei outra
vez para São Paulo. Fui então para a Rádio Bandeirantes, cujo diretor artístico
era o Dias Gomes e, enquanto era da Bandeirantes, foi que fui candidato a
deputado paulista.
Status. Ganhou?
Mário. Perdi a eleição e o emprego...Aliás, nem cheguei à
eleição, desisti antes. O caso era que a Rádio Bandeirantes era do Ademar de
Barros e seu genro, João Saad, o diretor. O João era pessoa com quem me dava
bem, mas um dia ele me chamou: “Ô, Mário, vem cá. Tem uma situação muito chata.
No seu comício do Jardim Higienópolis, o mínimo que você disse do Ademar foi
crapuloso. E a estação é do homem, eu sou seu genro. Como é que nós ficamos?!”
Ficamos na rua... Aí voltei para o Rio, para a Rádio Nacional outra vez, agora
sob direção do Vítor Costa. Com a direção anterior eu tinha brigado.
(...)
Status. E como você voltou, um ano depois para a mesma
Nacional?
Mário. A direção tinha mudado, o tal superintendente tinha
saído, e o Vítor Costa, com quem eu me dava muito bem, chamou-me de volta. Foi
então que fiquei na Nacional de 1949 até a grande fofoca de 1964.
Status. E o que você fazia?
Mário. O certo era perguntar o que eu não fazia. Escrevia
programa, ensaiava, era autor, ator, escrevia novela, tinha o Presídio de
Mulheres, uma série que durou cinco anos...Mergulhei de tal maneira na vida
da Rádio Nacional que não tinha mais tempo para a música.
Status. E valeu a pena?
Mário. Tudo vale a pena. No caso da Nacional, temos de
reconhecer que foi o grande marco na radiofonia brasileira. Marcou época no
Brasil, incontestavelmente, com seu elenco de sessenta pessoas, sua orquestra
de setenta músicos, todos os grandes cantores brasileiros lá...E, além disso, a
Rádio Nacional foi a única estação de rádio do Brasil que, em dado momento, foi
dirigida por um sindicato. O presidente do Sindicado dos Radialistas, Hemílcio
Froes, era também diretor da rádio e, se na gestão dos negócios da emissora
tivesse de tomar uma medida que fosse contrária ao interesse dos trabalhadores,
era de seu compromisso renunciar ao cargo na direção. O Sindicato dos
Radialistas era forte, respeitado, sua voz se fazia ouvir. Obtivemos muitas
conquistas, uma delas foi um mês de férias: nosso sindicato foi o primeiro no
Brasil a conseguir férias de trinta dias; outra foi a de o artista não ser
obrigado a trabalhar determinadas horas seguidas...
Status. Mas e a delação contra vocês, que acabou implicando na demissão
de mais de trinta pessoas da Rádio Nacional?
Mário. Essa é uma parte em que não gosto de me deter. Na
verdade, os delatores eram umas pecinhas de bosta da engrenagem maior, tão
maior que acabou consumindo-os depois. O problema sério, este sim, é que o
movimento de 64 foi um movimento contra os trabalhadores, um movimento que
passou a interferir e a desmontar os sindicatos. Como tínhamos um sindicato
forte, e a Rádio Nacional era uma empresa de economia mista, ali a mão da
reação caiu com toda a força, incorrendo inclusive em ilegalidade quando, por
exemplo, fomos demitidos com base num ato adicional editado exclusivamente para
servidores pública, coisa que não éramos. Quanto a isso, ainda se ouvirá
coisas, a seu tempo...
Status. Mas você foi para a rua?
Mário. Para a rua e para a prisão (mais uma). Depois tudo
serenou (Mário então mostra um documento da Auditoria Militar do Rio, indicando
que não há nada contra ele) e cada um de nós foi procurar trabalho noutro
canto. Quanto a mim, fui para a televisão...onde parece que não me dei mal!
Status. Falando nisso, é diferente trabalhar no rádio e na
tevê?
Mário. Certamente. Até hoje, sempre que posso, ouço uma
novela de rádio... Tenho vinte anos de rádio, sou “rato de estúdio”, conheço
toda a mecânica dos recursos, das fantasias. Sei que aquele beijo meloso está
sendo dado na mão do ator mesmo, porque a atriz está no outro lado, segurando o
seu microfone. Sei disso tudo, mas gosto de uma radionovela. O rádio deixa a
você a capacidade de sonhar. Você ouve falar numa casa, e você a “constrói”
segundo os seus mais recônditos desejos... Nos tempos da Nacional o ouvinte
recebia a voz de Ismênia Santos, que já era uma senhora, gorda, mas a entendia
como a voz de uma mocinha de dezoito anos, aquela garota linda da esquina que
nunca ilava para ele...
Status. E a tevê?
Mário. A tevê é fascista. Ela não te dá direito de sonhar, de
construir seus sonhos. A tevê apresenta um galã e diz: o galã é esse, você não
tem direito de imaginar que seja outro. O jardim não é outro senão esse. É uma
postura fascista da tevê, ela tira a ilusão do sonho, da criatividade, da
imaginação.
Status. Mas para o ator é muito bom!
Mário. Certo, a tevê te dá mais campo. Mas, como a fala é o
grande elemento da comunicação, o treino de rádio é muito importante. Quando
chegam ao Chico Anísio e lhe dizem: “Chico, na televisão você é o maior!”, ele
diz com segurança: “Sou bom porque fiz rádio!”. A Aracy Balabanian (a Aracy é
uma das minhas grandes ternuras artísticas) é de opinião que todo curso de arte
dramática devia ter uma cadeira de representar em rádio. Cidadão ganha
segurança, aumenta o repertório de interpretação, aprende o problema da
mobilidade de inflexão da voz.
Status. E do teatro para tevê, há diferença?
Mário. Igualmente grande. No teatro você tem gente na
primeira fila e tem gente na última fila. E o ator está representando sempre
para a última fila, preocupado se todos estão ouvindo, grilado com os teatros
que têm problema de acústica, essa coisa toda. Na tevê não há última fila, só a
primeira. É como se você estivesse com a cabeça no colo do telespectador. A
representação em tevê tem sua técnica própria, que devia ser cadeira nas
escolas de arte dramática, se no Brasil houvesse isso...
Status. Então não há? E o Alfredo Mesquita?
Mário. Não conheço pessoalmente esse Alfredo Mesquita, mas é
uma figura pela qual tenho a maior admiração de minha vida, pelo amor que
dedicou ao teatro, pelo esforço em manter sua escola, a qual, depois que passou
para a Universidade de São Paulo, vem sendo devidamente arrebentada. A USP está
desmontando todo um trabalho feito na base do sacrifício pessoal. Acho que o
teatro de São Paulo deve tanto a Alfredo Mesquita que ele devia ser homenageado
de pano aberto, toda vez que se iniciasse uma peça...
Status. Vamos pular de pato a ganso, Mário. Quando você fazia
seus sambas, você frequentava o morro?
Mário. Olha, esse negócio de dizer que morro faz samba é um
sectarismo de angulação. Eu fazia samba no teatro, durante as revistas, e meus
parceiros – o Ataulfo Alves, o Bidê, o Roberto Martins – eu encontrava na Praça
Tiradentes. Eles não eram do morro. Pixinguinha nunca foi do morro. Esse
negócio de samba do morro é folclore, é estereótipo... A primeira escola de
samba, Deixa Falar, não nasceu em morro, nasceu num café, no Estácio, e logo a
classe média assimilou o samba. No Brasil há um aristocratismo que divide,
reparte e triparte as classes sociais, para fazer frases. Classes, só há duas:
a burguesia e o proletariado. O resto se mescla, se mistura, de acordo com o
subdesenvolvimentismo de cada um. Outra invenção é dizer que os sambistas
frequentavam o Café Nice, que nem era café. O Noel Rosa, por exemplo, só foi lá
uma vez, assim mesmo para ver se encontrava o Francisco Alves.
Status. Mas não era só “gente fina” que fazia samba...
Mário. Ao contrário. Aliás, a tônica dos primeiros sambas era
a do homem que tomava dinheiro de mulher, uma barra brava, mesmo.
Status. E a boêmia era necessária?
Mário. Certamente. Eu sempre fui boêmio, desde cedo.
Status. Você chegou, também, a tomar dinheiro de mulher?
Mário. Não, não precisava. Coincidiu, porque eu tinha minha
mesada.
Status. Mas consta que você era um grande namorador...
Mário. Eu me esforcei, mas garanto que não tive as mulheres
que quis; tive as que me quiseram...
Status. Como assim? Não é o homem que conquista?
Mário. Não, absolutamente. A mulher é que finge que se deixa
conquistar pelo homem que ela escolheu. E esse negócio de “ninguém resista a
minha lábia” é autêntico papo-furado. Quanto a mulher não quer, não adianta
lábia nenhuma.
Status. Você acha, Mário, que todo homem é mulherengo?
Mário. Acho, e acho que é certo. A partir do momento que a
mulher não é condicionada ao problema do cio, como são as outras fêmeas, a
obrigação de um e de outro é de inter-procurarem. Afinal, eu sou de um tempo em
que não era necessário vierem os cardiologistas, virem os analistas dizer que
fazer sexo é bom para as coronárias, para o equilíbrio etc. A gente sabia que
era bom e pronto: não precisava de propaganda, não.
Status. Você amou muito, Mário?
Mário. Muito, e de diversos tipos de amor. Todo amor tem que
ser vivido intensamente no seu momento, como se fosse o primeiro e o último.
Como e antes dele não tivesse existido nada e como se depois dele não fosse
existir mais nada. Agora, amar é um processo de transformações. Numa relação
que se prolonga, o amor vai ganhando outras matizes, outros contornos, além
daquela primeira atração, do primeiro impulso. Uma vez um sujeito me perguntou:
“Mário, você é casado há quanto tempo?” Eu digo: “Trinta anos”. E ele: “Com a
mesma mulher?” Eu digo: “Por quê? É obrigado mudar?”.
Status. Trinta anos, Mário?
Mário. A caminho de 31. Encontrei na Geny a síntese de tudo o
que fui procurando durante muitos anos. Nós continuamos namorados, às vezes a
gente briga, mas é briga de namorados. Nunca precisamos nós dois, de “férias
para reformulações” nem de analistas. Aliás, de depender de mim, a indústria da
psicanálise vai pra falência.
Status. Então, você é a favor do casamento indissolúvel?
Mário. Você acha que um papel passado em cartório segura uma
relação que se deteriorou? O que mantém o casamento é o mútuo interesse, não um
papel.
Status. Pelo jeito, Mário, você não aprova a psicanálise.
Mário. A mulher trabalhadora, o homem trabalhador, não vão ao
analista. O tipo de vida que nós levamos, numa sociedade de competição e de
“lobo comendo lobo”, talvez torne necessário o analista, em certas faixas. Mas
não me venha dizer que é porque o cidadão viu, em criança, seu pai beijando sua
mãe, e que gostaria que sua mãe fosse a sua fêmea, que entrou em descompensação
e ciúme paterno, que é por isso que sua cuca fundiu. Sua cuca fundiu porque
vive numa sociedade que se acotovela, que vive aos empurrões e aos chutes na
canela, que vive em permanente competição e foi, educado desde pequeno, a “ser
alguém”, a “enriquecer”, a “ter poder”, não importando se, para isso, tenha de
pisar os outros. Acaba sendo pisado também, massacrado, frustrado. Vê um cidadão
acusado de furto ser nomeado governador. Vê um ministro dizer em maio que a
gasolina não vai aumentar, chega em setembro já há quatro aumentos de
gasolina... Vê outro ministro dizer que o analfabetismo acabou para, no dia
seguinte, o IBGE informar que o analfabetismo aumentou em 35%. Vê o Fundo de
Garantia confessar que houve falseamento de dados na manipulação do dinheiro do
trabalhador. É uma sociedade toda ela falsificada, uma sociedade de medo, de
desconfiança, onde não há respeito aos mínimos direitos do homem. Os direitos
básicos de comer, vestir-se, morar, amar, estudar...
Status. Qual seria então, Mário, a sua sociedade ideal?
Mário. Uma sociedade socialista.
Status. E existe em algum lugar do mundo essa sociedade?
Mário. Eu não vivo em qualquer lugar do mundo. Eu vivo aqui.
Publicado originalmente na
revista “Status” em outubro de 1978
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