Por Luiz Carlos Ramos
Uma
pergunta: algum leitor já esteve em Andorra? Andorra é um minúsculo país
situado nas montanhas doas Pireneus, entre a Espanha e a França, fora das
principais rotas de turismo. Estive lá por algumas horas, em 1982. E o que isso
tem a ver com a surpreendente eliminação do Brasil na Copa do Mundo, na
Espanha? Na minha visão de otimista, tudo a ver. Vou contar os detalhes no
final deste capítulo específico sobre a Copa. Não tenho a pretensão de fazer um
relato completo do Mundial: a história toda está na memória de muita gente e em
ótimos livros, entre os quais o “Almanaque da Copa do Mundo”, do igualmente
saudoso Orlando Duarte, e “Biografia das Copas”, do jovem Thiago Uberreich.
O fato
é que, naquele 5 de julho de 1982, eu estava lá, no Estádio Sarriá, em
Barcelona, em minha terceira Copa, e também fiquei muito triste com a
inesperada derrota do Brasil para a Itália por 3 a 2, que definiu a prematura
volta da seleção (e a minha volta) para casa. Foram 32 dias de trabalho intenso
na Espanha, coordenando a equipe de cobertura da Copa pelo “Estadão”,
entrevistando e escrevendo, vivendo o duplo papel de jornalista e torcedor.
A
missão começou em 4 de junho, apenas uma semana depois do nascimento da minha
primeira filha, Maitê (hoje com 41 anos, ela é mãe dos meus netos Theo e Noah).
Embarquei no Aeroporto de Cumbica. O destino: Madri, onde fiz conexão para um
voo rumo a Sevilha, cidade e que o Brasil disputaria seus três primeiros jogos
no Mundial. A seleção de Telê Santana havia passado por uma fase de treinos, em
Portugal, antes de seguir para a Espanha e ficar concentrada no Hotel Rey Don
Pedro, um palácio de mais de 800 anos, na pequena cidade de Carmona, a 40
quilômetros de Sevilha.
Nossa
competente equipe da Copa para o “Estadão” contou com os repórteres Antero
Greco, Edson Luiz dos Santos, Nelson Cilo, Altair Baffa, Milton José de
Oliveira e um tal de Fausto Silva, o Faustão, aquele que contratei no jornal em
1973 e que começava a ficar famoso na televisão, enquanto também se destacava
nas Rádios Globo e Excelsior. Os fotógrafos eram Reginaldo Manente e Alfredo
Rizzutti, trabalhando também para o “Jornal da Tarde”.
Pela
primeira vez desde a disputa pioneira de 1930, o número de países no Mundial
foi ampliado de 16 para 24, fruto do gigantismo lançado pelo presidente da
Fifa, o brasileiro João Havelange, de lamentáveis histórias de corrupção no
futebol. A partir da Copa de 1998, na França, o número saltou para 32 e se
manteve até 2022, no Catar, época em que a Fifa, sob a presidência do suíço
Gianni Infantino, mantinha o estilo ganancioso, anunciando nova ampliação,
desta vez para 48 vagas, no Mundial de 2026, programado para os três países da
América do Norte – Estados Unidos, Canadá e México.
Na
Copa de 1982, na Espanha, o Brasil estreou em 14 de junho, contra a União
Soviética, no Estádio Sánchez Pizjuán, em Sevilha. O time de Telê Santana foi
este: Valdir Peres, Leandro, Oscar, Luisinho e Júnior; Falcão, Sócrates, Zico e
Dirceu; Serginho e Éder. Aos 33 minutos, um susto: gol de Baal para os
soviéticos. No segundo tempo, porém, com Paulo Isidoro no lugar de Dirceu, a
seleção de Telê conseguiu uma virada, 2 a 1, com um lindo gol de Sócrates, aos
30 minutos, e um de Éder, a dois minutos da final. Sustos à parte, o time
sentiu falta do goleador Careca, que tinha viajado com a delegação para a
Europa, mas acabou sendo cortado depois de se contundir num jogo-treino em
Portugal.
A
vitória, porém, serviu para a seleção ganhar mais confiança O time brasileiro
passou facilmente pelos outros adversários do grupo – 4 a 1 contra a Escócia e
4 a 0 contra a Nova Zelândia. Os escoceses, habitualmente lutadores, fizeram 1
a 0, mas o Brasil reagiu com gols de Zico, Oscar, Éder e Falcão.
O
Brasil, classificado, despediu-se de Sevilha e seguiu para Barcelona, onde
enfrentaria a Argentina e a Itália na segunda fase do Mundial. A seleção de
Telê, já apontada como favorita ao título, ficou isolada em Saint Quirze
Safaja, uma cidadezinha em região montanhosa, a 38 quilômetros de Barcelona.
Num carro fretado, nossa equipe ia diariamente até lá para entrevistar o
técnico e os jogadores. Havia grande expectativa para os dois jogos. A
Argentina, antigo rival, contava com Maradona, um dos melhores jogadores do
mundo. A Itália tinha se limitado a três empates na primeira fase do Mundial,
mas, pela tradição, também merecia respeito.
Estranhamente,
as partidas do Brasil não seriam disputadas no maior estádio da cidade, o Camp
Nou, do Barcelona, com capacidade para 110 mil pessoas, mas sim no Sarriá, do
clube Espanyol, para apenas mil. O fato é que milhares de torcedoras
brasileiros haviam cruzado o Atlântico para apoiar a seleção. O verde e o
amarelo tomaram conta das ruas e dos estádios da bela cidade catalã. E até os
torcedores espanhóis, frustrados com o desempenho da seleção deles, passaram a
demonstrar simpatia pelo time brasileiro, constantemente elogiado pela imprensa
local e de outros países.
A
segunda fase começou em 29 de junho, terça-feira: Itália x Argentina. A Azurra,
que estava em crise por causa da falta de vitórias – havia empatado com a
Polônia, Camarões e Peru -, reclamava das críticas da imprensa italiana. A
Argentina havia perdido da Bélgica, mas reabilitou-se, ao derrotar a Hungria e
El Salvador, e chegou ao Sarriá. A Itália foi melhor, acabou superando todos os
traumas da primeira fase e derrotou os argentinos por 2 a 1.
Em 2
de julho, sexta-feira, no Sarriá, o Brasil teve grande atuação e venceu a
Argentina por 3 a 1, gols de Zico, Serginho e Júnior. O jogo chegou a 3 a 0,
mas Diaz marcou no penúltimo minuto. Mesmo assim, o time de Telê havia
assegurado vantagem no saldo de gols para tentar eliminar a Itália, três dias
depois, e ficar com a vaga de semifinalista. Bastaria um simples empate na
partida de segunda-feira. Maradona não estava bem, no clássico sul-americano,
mas deixou um estrago no time rival: com uma falta violenta quase no fim do
jogo, ele tirou de campo Batista, que havia entrado no lugar de Zico, e acabou
sendo expulso.
A
equipe do “Estadão” garantiu ótima cobertura do jogo para a edição de sábado e
antecipou reportagens para o jornal de domingo, uma pré-apresentação de Brasil
x Itália. Portanto, a seleção de Telê, elogiada pela imprensa internacional
estava a apenas três passos do título. E o capitão Sócrates acreditou no
favoritismo de seu time: na concentração de Sant Quirze Afaja, ele deu
entrevistas entusiasmadas e até ensaiou, diante dos fotógrafos, uma coreografia
para o momento de receber a Copa após a possível vitória na final – não queria
repetir os gestos moderados de Bellini, Mauro e Carlos Alberto Torres.
Nós,
do time do “Estadão”, também estávamos entusiasmados, tanto que idealizamos um
passeio para o domingo, dia de folga, véspera do grande jogo. Na época, o
jornal não saía às segundas-feiras, o que nos abriu a possibilidade de fazer
uma pequena viagem no automóvel alugado pela empresa.
Num
bate-papo com os repórteres Antero Greco e Nelson Cilo e com o fotógrafo
Alfredo Rizzutti, decidimos conhecer outro país, Andorra, entre a Espanha e a
França. Saímos logo cedo do nosso hotel, em Barcelona, e seguimos por 205
quilômetros, até o Principado de Andorra, de apenas 468 quilômetros quadrados e
de menos de 100 mil habitantes, no alto dos Pirineus. Foi ótimo. Passeamos
pelas ruas da capital, Andorra-a-Velha, almoçamos peixe frito num restaurante e
até visitamos uma estação de esqui no lado francês. Voltamos para Barcelona à
noite e tratamos de descansar para a cobertura do dia seguinte. Já tínhamos até
planejado, para uma nova folga, outro passeio, já na região de Madri, sede da
final. Planos são planos, realidade é realidade.
Em 5
de julho, o Estádio Sarriá estava lotado, colorido pelo amarelo dos torcedores
que haviam atravessado o Atlântico. Mas, em campo, quem amarelou de vez foi a
seleção brasileira. Era a mesmo a tarde Paolo Rossi, mas o Brasil não esteve
bem e perdeu por 3 a 2, sem ter tido equilíbrio para segurar os 2 a 2 após o
gol de Falcão, marcado aos 23 minutos do segundo tempo. O primeiro gol
brasileiro havia sido de Sócrates. Numa sucessão de erros do Brasil, Rossi,
autor de dois gols – aos 5 e aos 25 minutos de jogo – fez o terceiro quando
faltavam 15 minutos para o fim. Havia tempo para o Brasil reagir e chegar ao
empate pela classificação, mas faltou a malícia que o futebol brasileiro havia
exibido tão bem na Copa de 1970, nos 4 a 1 da final contra a própria Itália.
Este foi o time da derrota: Valdir Peres; Leandro, Oscar, Luisinho e Júnior;
Falcão, Cerezo, Sócrates e Zico; Serginho e Eder. Aos 34 minutos do segundo
tempo, Paulo Isidoro entrou no lugar de Serginho.
Inacreditável.
Festa italiana no Sarriá. Choro do time amarelo e da torcida amarela. Ao dar
entrevista coletiva após a eliminação, Telê Santana foi aplaudido por
jornalistas, já que, de fato, o Brasil tentou jogar um futebol bonito e limpo,
sem violência, ao longo da Copa.
Esperto
e sensível, o fotógrafo Reginaldo Manente, das equipes de cobertura do
“Estadão” e do “Jornal da Tarde”, conseguiu registrar o choro de um menino de
dez anos, que usava a camisa do Brasil: o retrato da decepção. Manente
mostrou-me a foto do garoto, enviada a São Paulo por meio de aparelho de
telefoto, direto da nossa redação, no topo do Nou Camp, o estádio do Barcelona,
a dois quilômetros do Sarriá. No dia seguinte, quase todos os jornais do mundo
publicaram, na capa, os gols de Paolo Rossi. O “Jornal da Tarde”, porém, sempre
criativo e ousado, fez algo diferente: abriu a foto do menino dominando toda a
primeira página, com uma tarja preta e a simples legenda “Barcelona, 5 de julho
de 1982”. Manente e o “JT” ganharam prêmios, merecidamente. Parabéns ao
fotógrafo Reginaldo Manente e aos editores Mário Marinho, Sandro Vaia e
Fernando Mitre.
A
Itália passou também pela Polônia, 2 a 0, em 8 de julho, em Barcelona, e não
deu bola para a Alemanha na final, 3 a 1, no Estádio Santiago Bernabéu, em
Madri, conquistando a Copa com gols de Paolo Rossi, Tardelli e Altobelli, no
dia 11. Dos três empates do início do Mundial Às quatro vitórias decisivas, a
Azurra foi mesmo uma surpresa.
No dia
6, o “quase” campeão embarcou, em Barcelona, num voo especial, rumo a São Paulo
e Rio, com escala em Las Palmas, nas Ilhas Canárias. Fiz a viagem de retorno
nesse avião e presenciei a tristeza dos jogadores. Também fiquei triste, mesmo
porque o Brasil tinha um grande técnico, Telê Santana, e um bom presidente da
Confederação Brasileira de Futebol (CBF), Giulite Coutinho. Quase ao
comportamento do elenco, houve falhas individuais e, além de tudo, faltou
liderança contra a Itália.
Na
atualidade, há quem diga que a seleção de 1982 foi a melhor da história do
futebol brasileiro. Não concordo: quem assistiu ao Mundial de 1970 no México ou
pela TV, em que o Brasil ganhou o título com Pelé, Gérson, Rivellino e outros
craques, sabe que o time de Telê Santana foi inferior tanto no conjunto quanto
nos destaques individuais. E convém relembrar que a geração bicampeã mundial de
1958 a 1962, de Pelé, Garrincha, Gilmar, Zito e Didi, também deixou sua marca
expressiva, em tempos de comunicação ainda precária, sem TV via satélite.
Voltei
à Espanha, 17 vezes, de 1988 a 2019. Em todas elas, voltaram à minha memória,
por alguns momentos, as cenas de 5 de julho de 1982. Numa das idas a Barcelona,
presencie Telê Santana festejando título em pleno Sarriá. Foi em agosto de
1992: seu clube, o São Paulo, derrotou o Español por 2 a 1 e conquistou o
Troféu Cidade de Barcelona, disputado em jogo único. A taça foi entregue ao
capitão Müller pelo carismático prefeito Pasqual Maragall. Telê levaria o
Tricolor a muitos outros títulos, entre os quais os Mundiais de Clubes de 1992
e 1993. Retornei ao bairro de Sarriá em 2015. A paisagem estava diferente. O
estádio havia sido demolido, dando lugar a um shopping center.
Retirado
de: RAMOS, Luiz Carlos. Vida de Jornalista. São Paulo: A4 Ideias
Editora, 2023.
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