quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

Vida de Jornalista IV de IV: Copa de 82: o “quase” campeão

 

           Por Luiz Carlos Ramos

 

Uma pergunta: algum leitor já esteve em Andorra? Andorra é um minúsculo país situado nas montanhas doas Pireneus, entre a Espanha e a França, fora das principais rotas de turismo. Estive lá por algumas horas, em 1982. E o que isso tem a ver com a surpreendente eliminação do Brasil na Copa do Mundo, na Espanha? Na minha visão de otimista, tudo a ver. Vou contar os detalhes no final deste capítulo específico sobre a Copa. Não tenho a pretensão de fazer um relato completo do Mundial: a história toda está na memória de muita gente e em ótimos livros, entre os quais o “Almanaque da Copa do Mundo”, do igualmente saudoso Orlando Duarte, e “Biografia das Copas”, do jovem Thiago Uberreich.

O fato é que, naquele 5 de julho de 1982, eu estava lá, no Estádio Sarriá, em Barcelona, em minha terceira Copa, e também fiquei muito triste com a inesperada derrota do Brasil para a Itália por 3 a 2, que definiu a prematura volta da seleção (e a minha volta) para casa. Foram 32 dias de trabalho intenso na Espanha, coordenando a equipe de cobertura da Copa pelo “Estadão”, entrevistando e escrevendo, vivendo o duplo papel de jornalista e torcedor.

A missão começou em 4 de junho, apenas uma semana depois do nascimento da minha primeira filha, Maitê (hoje com 41 anos, ela é mãe dos meus netos Theo e Noah). Embarquei no Aeroporto de Cumbica. O destino: Madri, onde fiz conexão para um voo rumo a Sevilha, cidade e que o Brasil disputaria seus três primeiros jogos no Mundial. A seleção de Telê Santana havia passado por uma fase de treinos, em Portugal, antes de seguir para a Espanha e ficar concentrada no Hotel Rey Don Pedro, um palácio de mais de 800 anos, na pequena cidade de Carmona, a 40 quilômetros de Sevilha.

Nossa competente equipe da Copa para o “Estadão” contou com os repórteres Antero Greco, Edson Luiz dos Santos, Nelson Cilo, Altair Baffa, Milton José de Oliveira e um tal de Fausto Silva, o Faustão, aquele que contratei no jornal em 1973 e que começava a ficar famoso na televisão, enquanto também se destacava nas Rádios Globo e Excelsior. Os fotógrafos eram Reginaldo Manente e Alfredo Rizzutti, trabalhando também para o “Jornal da Tarde”.

Pela primeira vez desde a disputa pioneira de 1930, o número de países no Mundial foi ampliado de 16 para 24, fruto do gigantismo lançado pelo presidente da Fifa, o brasileiro João Havelange, de lamentáveis histórias de corrupção no futebol. A partir da Copa de 1998, na França, o número saltou para 32 e se manteve até 2022, no Catar, época em que a Fifa, sob a presidência do suíço Gianni Infantino, mantinha o estilo ganancioso, anunciando nova ampliação, desta vez para 48 vagas, no Mundial de 2026, programado para os três países da América do Norte – Estados Unidos, Canadá e México.

Na Copa de 1982, na Espanha, o Brasil estreou em 14 de junho, contra a União Soviética, no Estádio Sánchez Pizjuán, em Sevilha. O time de Telê Santana foi este: Valdir Peres, Leandro, Oscar, Luisinho e Júnior; Falcão, Sócrates, Zico e Dirceu; Serginho e Éder. Aos 33 minutos, um susto: gol de Baal para os soviéticos. No segundo tempo, porém, com Paulo Isidoro no lugar de Dirceu, a seleção de Telê conseguiu uma virada, 2 a 1, com um lindo gol de Sócrates, aos 30 minutos, e um de Éder, a dois minutos da final. Sustos à parte, o time sentiu falta do goleador Careca, que tinha viajado com a delegação para a Europa, mas acabou sendo cortado depois de se contundir num jogo-treino em Portugal.

A vitória, porém, serviu para a seleção ganhar mais confiança O time brasileiro passou facilmente pelos outros adversários do grupo – 4 a 1 contra a Escócia e 4 a 0 contra a Nova Zelândia. Os escoceses, habitualmente lutadores, fizeram 1 a 0, mas o Brasil reagiu com gols de Zico, Oscar, Éder e Falcão.

O Brasil, classificado, despediu-se de Sevilha e seguiu para Barcelona, onde enfrentaria a Argentina e a Itália na segunda fase do Mundial. A seleção de Telê, já apontada como favorita ao título, ficou isolada em Saint Quirze Safaja, uma cidadezinha em região montanhosa, a 38 quilômetros de Barcelona. Num carro fretado, nossa equipe ia diariamente até lá para entrevistar o técnico e os jogadores. Havia grande expectativa para os dois jogos. A Argentina, antigo rival, contava com Maradona, um dos melhores jogadores do mundo. A Itália tinha se limitado a três empates na primeira fase do Mundial, mas, pela tradição, também merecia respeito.

Estranhamente, as partidas do Brasil não seriam disputadas no maior estádio da cidade, o Camp Nou, do Barcelona, com capacidade para 110 mil pessoas, mas sim no Sarriá, do clube Espanyol, para apenas mil. O fato é que milhares de torcedoras brasileiros haviam cruzado o Atlântico para apoiar a seleção. O verde e o amarelo tomaram conta das ruas e dos estádios da bela cidade catalã. E até os torcedores espanhóis, frustrados com o desempenho da seleção deles, passaram a demonstrar simpatia pelo time brasileiro, constantemente elogiado pela imprensa local e de outros países.

A segunda fase começou em 29 de junho, terça-feira: Itália x Argentina. A Azurra, que estava em crise por causa da falta de vitórias – havia empatado com a Polônia, Camarões e Peru -, reclamava das críticas da imprensa italiana. A Argentina havia perdido da Bélgica, mas reabilitou-se, ao derrotar a Hungria e El Salvador, e chegou ao Sarriá. A Itália foi melhor, acabou superando todos os traumas da primeira fase e derrotou os argentinos por 2 a 1.

Em 2 de julho, sexta-feira, no Sarriá, o Brasil teve grande atuação e venceu a Argentina por 3 a 1, gols de Zico, Serginho e Júnior. O jogo chegou a 3 a 0, mas Diaz marcou no penúltimo minuto. Mesmo assim, o time de Telê havia assegurado vantagem no saldo de gols para tentar eliminar a Itália, três dias depois, e ficar com a vaga de semifinalista. Bastaria um simples empate na partida de segunda-feira. Maradona não estava bem, no clássico sul-americano, mas deixou um estrago no time rival: com uma falta violenta quase no fim do jogo, ele tirou de campo Batista, que havia entrado no lugar de Zico, e acabou sendo expulso.

A equipe do “Estadão” garantiu ótima cobertura do jogo para a edição de sábado e antecipou reportagens para o jornal de domingo, uma pré-apresentação de Brasil x Itália. Portanto, a seleção de Telê, elogiada pela imprensa internacional estava a apenas três passos do título. E o capitão Sócrates acreditou no favoritismo de seu time: na concentração de Sant Quirze Afaja, ele deu entrevistas entusiasmadas e até ensaiou, diante dos fotógrafos, uma coreografia para o momento de receber a Copa após a possível vitória na final – não queria repetir os gestos moderados de Bellini, Mauro e Carlos Alberto Torres.

Nós, do time do “Estadão”, também estávamos entusiasmados, tanto que idealizamos um passeio para o domingo, dia de folga, véspera do grande jogo. Na época, o jornal não saía às segundas-feiras, o que nos abriu a possibilidade de fazer uma pequena viagem no automóvel alugado pela empresa.

Num bate-papo com os repórteres Antero Greco e Nelson Cilo e com o fotógrafo Alfredo Rizzutti, decidimos conhecer outro país, Andorra, entre a Espanha e a França. Saímos logo cedo do nosso hotel, em Barcelona, e seguimos por 205 quilômetros, até o Principado de Andorra, de apenas 468 quilômetros quadrados e de menos de 100 mil habitantes, no alto dos Pirineus. Foi ótimo. Passeamos pelas ruas da capital, Andorra-a-Velha, almoçamos peixe frito num restaurante e até visitamos uma estação de esqui no lado francês. Voltamos para Barcelona à noite e tratamos de descansar para a cobertura do dia seguinte. Já tínhamos até planejado, para uma nova folga, outro passeio, já na região de Madri, sede da final. Planos são planos, realidade é realidade.

Em 5 de julho, o Estádio Sarriá estava lotado, colorido pelo amarelo dos torcedores que haviam atravessado o Atlântico. Mas, em campo, quem amarelou de vez foi a seleção brasileira. Era a mesmo a tarde Paolo Rossi, mas o Brasil não esteve bem e perdeu por 3 a 2, sem ter tido equilíbrio para segurar os 2 a 2 após o gol de Falcão, marcado aos 23 minutos do segundo tempo. O primeiro gol brasileiro havia sido de Sócrates. Numa sucessão de erros do Brasil, Rossi, autor de dois gols – aos 5 e aos 25 minutos de jogo – fez o terceiro quando faltavam 15 minutos para o fim. Havia tempo para o Brasil reagir e chegar ao empate pela classificação, mas faltou a malícia que o futebol brasileiro havia exibido tão bem na Copa de 1970, nos 4 a 1 da final contra a própria Itália. Este foi o time da derrota: Valdir Peres; Leandro, Oscar, Luisinho e Júnior; Falcão, Cerezo, Sócrates e Zico; Serginho e Eder. Aos 34 minutos do segundo tempo, Paulo Isidoro entrou no lugar de Serginho.

Inacreditável. Festa italiana no Sarriá. Choro do time amarelo e da torcida amarela. Ao dar entrevista coletiva após a eliminação, Telê Santana foi aplaudido por jornalistas, já que, de fato, o Brasil tentou jogar um futebol bonito e limpo, sem violência, ao longo da Copa.

Esperto e sensível, o fotógrafo Reginaldo Manente, das equipes de cobertura do “Estadão” e do “Jornal da Tarde”, conseguiu registrar o choro de um menino de dez anos, que usava a camisa do Brasil: o retrato da decepção. Manente mostrou-me a foto do garoto, enviada a São Paulo por meio de aparelho de telefoto, direto da nossa redação, no topo do Nou Camp, o estádio do Barcelona, a dois quilômetros do Sarriá. No dia seguinte, quase todos os jornais do mundo publicaram, na capa, os gols de Paolo Rossi. O “Jornal da Tarde”, porém, sempre criativo e ousado, fez algo diferente: abriu a foto do menino dominando toda a primeira página, com uma tarja preta e a simples legenda “Barcelona, 5 de julho de 1982”. Manente e o “JT” ganharam prêmios, merecidamente. Parabéns ao fotógrafo Reginaldo Manente e aos editores Mário Marinho, Sandro Vaia e Fernando Mitre.

A Itália passou também pela Polônia, 2 a 0, em 8 de julho, em Barcelona, e não deu bola para a Alemanha na final, 3 a 1, no Estádio Santiago Bernabéu, em Madri, conquistando a Copa com gols de Paolo Rossi, Tardelli e Altobelli, no dia 11. Dos três empates do início do Mundial Às quatro vitórias decisivas, a Azurra foi mesmo uma surpresa.

No dia 6, o “quase” campeão embarcou, em Barcelona, num voo especial, rumo a São Paulo e Rio, com escala em Las Palmas, nas Ilhas Canárias. Fiz a viagem de retorno nesse avião e presenciei a tristeza dos jogadores. Também fiquei triste, mesmo porque o Brasil tinha um grande técnico, Telê Santana, e um bom presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), Giulite Coutinho. Quase ao comportamento do elenco, houve falhas individuais e, além de tudo, faltou liderança contra a Itália.

Na atualidade, há quem diga que a seleção de 1982 foi a melhor da história do futebol brasileiro. Não concordo: quem assistiu ao Mundial de 1970 no México ou pela TV, em que o Brasil ganhou o título com Pelé, Gérson, Rivellino e outros craques, sabe que o time de Telê Santana foi inferior tanto no conjunto quanto nos destaques individuais. E convém relembrar que a geração bicampeã mundial de 1958 a 1962, de Pelé, Garrincha, Gilmar, Zito e Didi, também deixou sua marca expressiva, em tempos de comunicação ainda precária, sem TV via satélite.

Voltei à Espanha, 17 vezes, de 1988 a 2019. Em todas elas, voltaram à minha memória, por alguns momentos, as cenas de 5 de julho de 1982. Numa das idas a Barcelona, presencie Telê Santana festejando título em pleno Sarriá. Foi em agosto de 1992: seu clube, o São Paulo, derrotou o Español por 2 a 1 e conquistou o Troféu Cidade de Barcelona, disputado em jogo único. A taça foi entregue ao capitão Müller pelo carismático prefeito Pasqual Maragall. Telê levaria o Tricolor a muitos outros títulos, entre os quais os Mundiais de Clubes de 1992 e 1993. Retornei ao bairro de Sarriá em 2015. A paisagem estava diferente. O estádio havia sido demolido, dando lugar a um shopping center.

 

Retirado de: RAMOS, Luiz Carlos. Vida de Jornalista. São Paulo: A4 Ideias Editora, 2023.

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