quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Playboy entrevista José Padilha (março de 2008)

 Playboy entrevista José Padilha

 


Uma conversa franca com o diretor de Tropa de Elite, vencedor do Urso de Ouro no Festival de Berlim, sobre críticos desinformados, colunistas deselegantes, estudantes estereotipados, legalização da maconha e o seu outro troféu, o DVD pirata recolhido na casa do ministro Gilberto Gil

 

As olheiras profundas e o ar abatido do diretor José Padilha, de Tropa de Elite, não deixavam dúvidas de que aquela havia sido uma semana atribulada. Naquela tórrida tarde de quarta-feira em que concedia entrevista para PLAYBOY, ele parecia ter chegado ao limite de seu esgotamento físico. Calça jeans, camiseta surrada e o sem boné com que costuma esconder sua calvície, Padilha não lembrava em nada o altivo cineasta que, apenas quatro dias antes, de gorro e cachecol, subira ao palco do Festival de Berlim para receber o prêmio máximo da competição, o Urso de Ouro, das mãos do cineasta russo Costa-Gravas, presidente do júri. José Padilha parecia exausto. Mas com indisfarçável sensação de dever cumprido.

 

Aos 40 anos, Padilha transformou-se no diretor responsável pelo maior fenômeno cultural da retomada do cinema brasileiro: Tropa de Elite foi visto por 11,5 milhões de brasileiros antes mesmo de chegar às telonas, após uma cópia não-finalizada do filme ter sido furtada da empresa da legendagem e distribuída em todo o território nacional – e no exterior. Antes mesmo da estreia oficial, o filme já era acusado de glamourizar a tortura praticada por policiais do BOPE (Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro), defender a tese de que traficante bom é traficante morto e, sobretudo, culpar os usuários de droga pela violência nas favelas. Por isso, Padilha acostumou-se a ouvir acusações de extrema direita e defensor do fascismo. 

 

O carioca pacato, casado com uma arquiteta e pai de um garotinho de quatro anos, viu-se então no meio de um turbilhão. Além das acusações de boa parte da crítica especializada, Padilha enfrentou processos de policiais do Bope que se sentiram ofendidos pela forma como foram retratados no filme. Tudo isso acontecia ao mesmo tempo em que Tropa de Elite estourava nas salas de projeção – a despeito das previsões catastróficas de que, por causa da pirataria, ninguém pagaria ingresso para vê-lo – e se transformava na sétima maior bilheteria do cinema no país. Transformou-se num fenômeno de massa – as expressões “Aspira” e “Pede pra sair” viraram bordões nacionais. Contrariando a pressão popular que queria ver José Padilha no tapete vermelho do Kodak Theatre, o Ministério da Cultura escolheu O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias, de Cao Hamburger, parecia representar o país no Oscar. Parecia uma sina: sucesso acachapante de público, Tropa enfrentava a antipatia de parte da “inteligência” brasileira.

 

Curioso que, em seu primeiro filme, o documentário O Ônibus 174 (2002) – sobre a história do sequestro comandado por Sandro do Nascimento que resultou na morte da refém Geísa Gonçalves, no Rio de Janeiro -, Padilha tenha sido acusado de ser um ideólogo de esquerda por apresentar ao público o ponto de vista do bandido. Formado em administração de empresas, depois de cursar física e engenharia, José Padilha diz ter uma forma científica de fazer cinema. “É uma opção minha. Lido assim com o cinema, porque me é natural”. Esse estilo implica em que não colocar uma bula dentro do filme. “Eu não mostro uma cena de tortura e digo que tortura é ruim. O cara interpreta como quer”, disse José Padilha à repórter Adriana Negreiros, que o entrevistou em duas ocasiões. Na primeira vez, em São Paulo, oito meses atrás, Padilha andava pelas ruas da Vila Madalena, bairro boêmio da cidade, sem ser importunado pelos fãs em busca de autógrafos. Na segunda, no piso superior de sua produtora, no bairro carioca do Jardim Botânico, ele era o cineasta brasileiro assediado por dezenas de produtoras internacionais e que fazia planos de filmar em Hollywood. “É a Disneylândia do cineasta. Eu quero experimentar para ver como é”.

 

Você ainda está de ressaca pela comemoração pelo Urso de Ouro, a premiação máxima do Festival de Cinema de Berlim?

Não, cara, eu tô num fuso horário maluco. Fiquei 11 dias em Berlim e estou quatro horas para trás. Estou meio cansado.

 

Assim que saiu da premiação, você foi para um bar dar entrevista. Sua vontade não era de ficar por ali, beber todas as cervejas alemãs e sair carregado?

Não, eu não bebo. Bem, eu bebi todas as cervejas em Berlim, sim, mas não queria sair carregado daquele bar. E também existe um rito depois da premiação, você não tem liberdade para fazer o que quer. Vou te contar como foi, você vai gostar.

 

Vamos lá.

Os caras do festival ligaram pra gente um dia e meio antes da premiação e falaram: “Vocês ganharam um prêmio. Se puderem ficar para a cerimônia, vai ser bom para vocês”. Eles fazem isso com todos os cineastas premiados, mas não falam qual prêmio você ganhou. E aí você senta lá e eles começam a dar o prêmio por ordem de importância. O Urso de Ouro é o último. Então você fica torcendo para não ganhar os prêmios que vão sendo anunciados. Quando chega os dois últimos, você sabe que ganhou ou o prêmio especial do júri, que é o Urso de Prata, ou o Urso de Ouro.

 

Então vocês começaram a comemorar logo que foi anunciado o vencedor do Urso de Prata, não?

Aí é que é o mais legal. O cara tá ali, recebendo o prêmio, e fica deselegante você comemorar o seu. Então você fica parado. E eu estava com a maior galera - minha mulher, minha prima (a atriz Maria Ribeiro), o Marcos Prado (produtor do filme). E pra torturar mais um pouquinho, entra numa banda de jazz e toca por três minutos. E você ali, sentado, pensando: “Meu Deus do céu, me dá esse prêmio logo!”.

 

Nesses três minutos, você chegou a pensar se seria aquilo mesmo?

Eu sabia que tinha ganhado. Ou então os caras tinham me sacaneado muito me fazendo ficar ali pra nada (risos). Bom, então depois que recebi o prêmio, me levaram para falar com três emissoras de TV alemãs. Depois fui para uma conferência de imprensa numa rádio alemã que fica dentro de um bar. Por fim, teve o jantar oficial do festival. Aí acaba a noite. E você tem que ficar segurando o Urso. Não pode soltar. E é pesado, cara. Tô achando que é de outro mesmo. 

 

Por que você usou aquele gorro durante a cerimônia?

Porque estava frio (risos)! Eu ficava entrando e saindo, então fiquei de gorro. E já tinha virado uma coisa minha. Eu botei no primeiro dia e começaram a zoar. Disseram que eu parecia um intelectual paquistanês com o gorro e os óculos. Então falei: “Pois vou ser um intelectual paquistanês até o final”. No começo eu estava usando um gorro laranja. Aí o organizador do festival falou pra mim: “Bota o gorro da Berlinale, a echarpe, e fica com eles”. É, ele já sabia que eu tinha ganhado... É a primeira vez que estou pensando sobre isso (risos)...

 

Ao comentar a premiação de Tropa de Elite, o presidente Lula disse que o filme ressaltava as eficiências do país. A que eficiências você acha que ele se referia?

O Tropa de Elite prova que o Brasil tem um cinema muito bom e uma polícia muito ruim. Eu acho que é isso (risos). A eficiência só pode ser a do cinema. É muito comum mostrar os problemas dos países no cinema. Os cineastas fazem isso no mundo inteiro. Existe uma enorme quantidade de filmes que criticam os Estados Unidos pela guerra do Vietnã, pela guerra do Iraque, pelos erros cometidos na condução da guerra do Afeganistão. O cinema é uma arte que se presta à crítica social e não há nada de anormal nisso.

 

Existe uma observação recorrente de que os filmes brasileiros abusam da temática da violência. Essa explicação que você acabou de dar justifica tal fato?

Não, eu não justifico isso. Primeiro porque a violência se presta ao drama. E cinema é drama. Então ela é comum no mundo inteiro. O Brasil não é um país que faz filmes sobre violência por excelência. Basta olhar para os Estados Unidos. Não fazemos filmes prioritariamente sobre violência. O que acontece é que os distribuidores dos festivais preferem esses filmes. Então eles os selecionam e depois perguntam: “Por que será que o Brasil só faz filmes sobre violência?”.

 

Você conseguiu alguma explicação razoável para o fato de seu filme ter sido exibido com legendas em alemão na sessão para a imprensa?

Eles tinham três cópias do filme: duas com legenda em alemão, para as exibições para o público, e uma em inglês, para a exibição para a imprensa internacional. O que aconteceu foi que eles trocaram as cópias. Na sessão para a imprensa internacional passou a cópia com a legenda em alemão e ninguém entendeu nada.

 

Foi uma troca acidental?

Sim. Mas eu acho que assim que perceberam o erro eles deveriam ter interrompido a exibição e marcado outra. Foi aí que eles encontraram uma solução que a meu ver prejudicou o filme. Botaram uma moça que não tinham visto o filme traduzindo a legenda em alemão para o inglês, com uma voz única para todos os personagens. Qualquer cineasta vai te dizer que isso mata o filme.

 

Não precisa ser cineasta para concluir isso.

Porque não tem entonação de ator e, além disso, o filme tem muita narração em off. A moça embolava a frase do cara com a narração em off. Quando fui falar com a imprensa internacional, alguns jornalistas brasileiros me falaram: “Olha, a tradução estava horrível, os fones não funcionavam, ninguém entendeu nada, a moça traduziu tudo errado. Se ferrou, Padilha”. Deu para perceber que alguns dos estrangeiros não tinham entendido nada pelas perguntas que me faziam.

 

O que você fez?

Eu falei com o distribuidor do filme e eles organizaram outra exibição à noite. E a gente começou a perceber quem era sério e quem não era. Porque profissionais sérios não escreviam a crítica de um filme visto naquelas circunstâncias. Até compreendo que os jornalistas que falam espanhol, português e alemão tenham feito suas críticas, porque eles conseguiram compreender o filme. Agora, os caras que só falam inglês não poderiam ter escrito. Foi um equívoco.

 

Por isso as críticas negativas ao seu filme no dia seguinte?

As próprias críticas mostram bem o que eu acho que aconteceu. O cara viu o filme, não entendeu, entrou na internet, saiu pesquisando o que foi dito sobre o Tropa de Elite em outros lugares e reproduziu no texto dele. Fez um samba do crioulo doiro.

 

Isso inclui a revista Variety, que falou mal do seu filme?

Não foi só ela, a Hollywood Reporter também falou mal. Eles falaram muita besteira. A Variety disse que o Brasil tinha 10 milhões de habitantes e 11,5 milhões de brasileiros tinham visto o filme. O cara não sabia fazer nem conta (risos). Nem me incomodei, porque a crítica era tão burra que ela se desqualificava sozinha. O cara falava que por algum motivo os policiais brasileiros tinham que trabalhar em oficinas. Ele não entendeu que a oficina era dentro do batalhão, que fazia parte do trabalho do policial. E a Variety já tinha visto o filme no ano passado, com a legenda certa, em inglês.

 

Foi nessa ocasião que você foi citado como um dos dez diretores em quem se deve prestar atenção no cinema mundial?

Sim, eu fui citado como um dos dez diretores promissores. É uma coisa esquisita.

 

Já o jornal inglês The Guardian sugeriu que os brasileiros deveriam se envergonhar do prêmio.

Teve uma crítica que falou bem e outra que falou mal. O prêmio tá aqui guardado e eu não tenho vergonha nenhuma dele. Eu não sei bem o que o Guardian falou.

 

Ele publicou que “o filme tem enredo lamentável, diálogos fracos, é repleto de clichês e glamouriza a tortura e a morte dos bandidos”.

O que eu posso dizer? O cara tem direito de fazer a crítica que ele quiser. Não é assim que o Costa-Gravas (presidente do júri do Festival de Berlim) vê o filme. Entre o crítico do Guardian e o Costa-Gravas, eu fico com o Costa-Gravas.

 

A revista inglesa Screen, por outro lado, falou muito bem de Tropa de Elite.

 

O filme tem essa propriedade de gerar reações extremadas. Isso aconteceu porque a gente optou por narrar do ponto de vista do policial violento do Bope. É uma decisão ousada e que parte da premissa de que o público vai entender que, evidentemente, a gente não está subscrevendo esse ponto de vista. Quinze milhões de brasileiros entenderam o filme assim. Os intelectuais brasileiros entenderam o filme assim, em sua enorme maioria – gente como o Arnaldo Jabor (colunista de O Globo), o Contardo Calligaris (colunista da Folha de S. Paulo), o Zuenir Ventura (jornalista e escritor). O júri do Festival de Berlim entendeu o filme. O que mais eu posso querer? Nada.

 

Quais são as outras razões para as opiniões tão extremadas?

Existe certo tipo de crítica que nasce do fato de o cara estar incluído no filme. O filme diz assim: você, usuário, quando consome drogas no Brasil, opta por comprá-las de um grupo armado que domina uma comunidade carente no morro. Você está, portanto, optando por sustentar esse grupo armado. É um fato. Um fato que nada tem a ver com a ideia de que se as pessoas pararem de consumir drogas a violência vai acabar. Em momento algum eu emiti essa opinião. A gente só disse que o cara que opta por comprar drogas de um grupo armado está optando por sustentar esse grupo armado, assim como o cara que compra madeira ilegal na Amazônia está ajudando a destruir a floresta. É um fato econômico.

 

O usuário de drogas enfrenta um problema moral, portanto?

Sim. Ele está envolvido eticamente com a morte de pessoas, com tiroteios nas favelas, porque ele sustenta o grupo armado dos traficantes. Não dá pra fugir disso, assim como o cara que compra produto feito com trabalho infantil está envolvido com o trabalho infantil. Por que o raciocínio funciona para tudo, menos para drogas? Ninguém discorda desse raciocínio quando ele diz respeito às árvores da Amazônia. Tanto assim que empresas colocam selos de que o móvel foi feito com uma árvore plantada, de que o produto não contribuiu para o trabalho infantil... As grandes organizações, como a Unicef e a Abrinq, carimbam os selos. Eu nunca vi nenhum argumento razoável para que esse raciocínio não se aplique ao tráfico de drogas. Só vi gente esperneando.

 

E o que isso tem a ver com as críticas?

Porque dessa maneira você obriga um cara que é um usuário recreativo de drogas, e que escreve no jornal sobre cinema, a falar assim: “Pô, eu tenho alguma coisa a ver com isso”. Tem gente que lida inteligentemente com isso, tem gente que não. O cara pensa: “É melhor eu me livrar desse filme logo”. Em vez de ficar discutindo Tropa de Elite, vou chamá-lo de radical de direita e pronto. Eu percebi que aconteci isso com uma parcela das pessoas que criticaram o filme. E vários atores, atrizes – não vou citar nomes – me mandaram e-mails dizendo: “Neguinho não vai te perdoar”. E de fato isso aconteceu.

 

Você previa que seu filme iria provocar tamanho incômodo?

Se você fizer um filme que não incomoda ninguém, qual é a graça? Incômodo eu sabia que ia ter, o que eu não previa era que uma parte das pessoas que ficaram incomodadas fosse atribuir a mim, ao Luiz Eduardo Soares (antropólogo, um dos autores do livro Elite da Tropa) e a outras pessoas o raciocínio simplório – que não está no nosso filme – de que basta acabar o consumo de drogas para acabar a violência. A gente não fala isso em lugar nenhum, mas as pessoas argumentam como se a gente tivesse dito.

 

Foi, inclusive, o que o crítico Arnaldo Bloch escreveu no jornal O Globo: “A preocupação obsessiva de Padilha é com o baseado que a galera queima, reforçando a tese surrada de que os maiores culpados pela violência do tráfico são os usuários”.

Pois é, mas o filme não tem essa tese em lugar nenhum. Qual é a perspectiva do filme? A gente cria uma metáfora dos processos sociais que acontecem no Rio de Janeiro com a teoria dos jogos. Isso está enunciado com clareza para quem conhece essa teoria. Para você entender o comportamento das pessoas no Rio, você tem que entender as regras a partir das quais essas pessoas agem.

 

Como assim?

Para entender um jogo de pôquer, você tem que saber quais são as regras do pôquer e assim compreender o comportamento dos jogadores. É um modelo de análise de processos sociais clássico, famoso e conhecido. O que explica a enorme violência que existe no Rio de Janeiro? São regras que a sociedade adota. Você é um policial que recebe 700 reais por mês e é mal treinado. E a sociedade pede para você o seguinte: “Vai lá naquela favela cheia de gente armada e luta com eles”. Qual é a jogada racional que um cara desses vai fazer?

 

Qual é?

Ele não tá a fim de morrer. Então é induzido a se corromper. A gente disse: “Olha, para você ter um grupo de policiais que não se corrompe monetariamente dentro de uma instituição tão corrompida quanto a polícia, você tem que incutir neles uma ideologia tão estúpida quanto a ideologia do Bope”. O Arnaldo Bloch ignorou todas as regras e pegou só a que o incomoda. É quase uma autocrítica. Por que o incomoda eu não sei. Selecionou o problema da droga sem entrar em todas as outras coisas do filme. Quando o cara fala alguma coisa, ele denuncia sua posição, quer queira, quer não. Tanto o cineasta que faz o filme como o sujeito que comenta.

 

Um dos aspectos mais criticados do seu filme é a caracterização dos universitários, que muitos consideram estereotipada.

Qualquer filme estereotipa qualquer pessoa. Ou será que os mafiosos são iguais ao Michael Corleone de O Poderoso Chefão? Qualquer filme, inclusive documentários, estereotipa seus personagens, porque quando você liga a câmera o cara já não se comporta como antes. A ideia de cobrar da dramaturgia uma verossimilhança com a realidade é ingênua.

 

Você acha que houve exagero no caso dos estudantes, então?

Olha, os estudantes foram interpretados por universitários. O professor universitário do filme era, de fato, um professor universitário – ele dava aulas na PUC. Eu representei as cenas, mostrei para todos e ouvi que era exatamente daquele jeito. Eu estudei na PUC e os estudantes, na média, eram daquele jeito. O André Batista, que foi do Bope e inspirou o personagem do Matias, também estudou na PUC e disse que era muito parecido com o que está no filme. Agora, todos os estudantes são iguais? Não. Aquele grupo de alunos que a gente mostrou não representa a média dos estudantes do Brasil, não era esse o nosso objetivo. Isso é uma besteira. Aquilo representa uma visão que os policiais têm dos estudantes. Os policiais têm uma visão estigmatizada dos estudantes? Têm. E é isso que está no filme. Por sua vez, os estudantes têm uma visão estigmatizada dos policiais? Têm também, e isso está no filme. Os policiais têm uma visão estigmatizada das ONGs? Têm. As ONGs têm uma visão distorcida dos traficantes? Têm. O filme é sobre essas visões distorcidas e, portanto, elas têm que estar assim.

 

O incômodo não deriva do fato de muitos justamente se identificarem com os estudantes?

Não sei... Acho que o maior incômodo é não tratar o problema da violência urbana como uma guerra particular. Essa não é uma guerra entre policiais e traficantes. Não é verdade que os policiais e os traficantes estão em guerra e a gente está aqui no meio do caminho e de vez em quando alguém toma um tiro de bala perdida.

 

Esse é o pensamento corrente.

Mas não está certo. A gente não pode isolar a classe média e dizer que isso acontece à sua revelia. Nosso filme tem o mérito de botar a classe média no meio desse quadro. E tem uma provocação: retratar a classe média pelo modo como a polícia olha para ela.

 

Você é a favor da legalização das drogas?

Sou favorável sobretudo à liberação da maconha, que é responsável por uma parcela significativa da receita do tráfico. Acho que a cocaína deveria ser tratada de outra forma. Legalizada, mas não do mesmo jeito que a maconha. Se o consumo de drogas diminuísse por algum motivo, isso reduziria a violência?

 

Reduziria?

Essa é uma questão complexa. Eu acho que sim. Primeiro porque existem estudos antropológicos que mostram que a violência é maior onde há traficantes. Existe o argumento de que a violência não vai cair porque os traficantes vão mudar de profissão. Eles iam começar a assaltar na rua. Pera aí, mas é muito mais difícil e arriscado assaltar na rua que vender drogas numa favela. A ideia de que a violência associada ao tráfico de drogas vai automaticamente se transferir para outro tipo de violência é equivocada. Tem outra coisa implícita aí: a violência do tráfico de drogas mata pessoas pobres e miseráveis na favela. Se a violência mudar para sequestro e roubo, vai morrer gente rica e isso incomoda realmente. Tem essa hipocrisia no meio no argumento dessas pessoas. Violência na rua incomoda mais que violência na favela.

 

Você já usou drogas?

Já. A única droga que usei na minha vida foi maconha, quando era jovem, várias vezes... Todo mundo usa maconha (enfático)! Olha só: eu pesquisei muito para representar o policial do meu filme, pesquisei todo mundo, menos os estudantes. Não precisei, porque já fui um. Agora tem muito tempo que eu não uso porque me dei conta, sim, de que é um equívoco usar drogas. É um equívoco comprar drogas de traficantes armados do morro, sobretudo para as pessoas que não fazem campanha pela legalização das drogas. Eu não vejo o usuário de droga andando na rua pedindo para legalizar a droga porque ele quer ter o direito de escolher. O que eu vejo é uma posição cômoda do cara. Compra e pronto, que se ferre.

 

Você era um estudante como o retratado no seu filme?

Não, não era. Eu era diferente em algumas coisas e parecido em outras. Mas eu já fumei maconha várias vezes, no Brasil e fora. Por exemplo, eu não tenho problema nenhum com maconha. Se você plantar maconha em casa e fumar, cara, qual o problema? Você plantar maconha em casa e fumar é qualitativamente diferente de você comprar maconha de um traficante armado que domina uma favela. Não é a mesma coisa. São transações econômicas que têm uma natureza diferente. Teu dinheiro tá indo para outro lugar. Você poderia entender o filme assim. Qual é a mensagem do filme no que diz respeito às drogas? Plante sua maconha (risos). Claro que eu não tô dizendo isso, não tô estimulando o tráfico e nem nada. Quero deixar isso claro para não ser mal interpretado e depois processado. O problema não é a droga em si. O problema é a regra do jogo.

 

Se você fosse para um país em que a droga é legalizada, você consumiria?

Se eu estiver a fim, sim. Eu não tenho clareza, não conheço e não sei, por exemplo, de onde vem o haxixe vendido em Amsterdã. Não sei o que eu estou financiando, não tenho essa consciência. Mas eu sei que não vem de um grupo armado de uma favela da Holanda, certo?

 

Quando você se deu conta de usar drogas era financiar um grupo armado da favela?

Cara, não demorou muito. Parei de fumar maconha cedo. Fumei dos 16 aos 20 anos. Fiz documentário. Filmei favela e você começa a pensar sobre isso.

 

Você fez faculdade de física. Como foi parar no cinema?

Primeiro eu estudei engenharia. Na verdade, queria estudar física, mas não sabia que não iria ganhar 1 real como físico. Então fiz engenharia. Naquela época, como ainda hoje, havia uma atração das pessoas pelo mercado financeiro, que é onde você consegue ganhar mais dinheiro. O mercado financeiro contrata engenheiros, economistas e muitos poucos físicos. Depois decidi: “Que se ferre, vou mesmo pra física”. Mas isso durou pouco tempo, porque fui contratado pelo mercado financeiro (risos). Comecei a trabalhar durante o dia, não tinha física à noite e fui estudar administração. Mas não gostei do mercado financeiro, achei chato.

 

Deu pra ganhar dinheiro?

Nada. Fiquei um ano. Daí já comecei a querer fazer cinema.

 

Mas como tudo começou?

Antes de virar diretor de cinema, o Marcos Prado, que hoje é meu sócio, era um fotógrafo reconhecido. Ele tinha feito um ensaio fotográfico muito bacana sobre os carvoeiros e tinha tido a ideia de expor na Eco 92, numa mostra paralela.

 

Vocês eram amigos?

Sim. Amigos de encontrar na praia e pegar onda. Organizamos a mostra e no meio da história tivemos a ideia de produzir um vídeo. Chamamos o Johnny Jardim, que é um ótimo cineasta, para fazer a direção. E a gente fez o vídeo, tinha uma música do Caetano Veloso no final. Tenho orgulho desse trabalho até hoje, embora não tenha feito grandes coisas nele – fui apenas o produtor. Mas gostei. E percebi que havia uma maneira interessante de falar sobre processos sociais por meio do audiovisual. Falei: “Marcos, vamos experimentar fazer um filme sobre os carvoeiros? Tem um incentivo fiscal aí, a gente consegue levantar dinheiro, já tô de saco cheio de trabalhar pros outros... Então é uma maneira de trabalhar pra mim mesmo”.

 

E deu certo?

A gente decidiu fazer, mas não sabia filmar. Resolvemos trazer um cara de fora para aprender a filmar com ele. Fomos procurar quem seria a pessoa. Descobrimos que o Nigel Noble, que ganhou Oscar (em 1981, com o documentário Close Harmony). Aí o contratamos. Trouxemos o cara pra cá e ele dirigiu Os Carvoeiros (1999). Para nosso espanto, mandamos o filme para o festival de Sundance e gostou daquele negócio – uisquinho, cinema. Era legal. Então decidimos: vamos fazer cinema.


Você ficou muito frustrado por seu filme não ter sido indicado ao Oscar desse ano?

Não. Primeiro porque eu acho que O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias, sem demagogia nenhuma, é um ótimo filme. A temática dele ajudava a indicação ao Oscar, além da qualidade do cinema. E esse foi o critério. A única coisa que me chateou, para falar a verdade, foi a seguinte: a gente não fez pressão nenhuma sobre a comissão do Oscar. Não liguei pra ninguém, não falei com ninguém. Houve uma pressão do público, porque os sites começaram a fazer enquetes e 70% da população queria o Tropa de Elite. Algumas pessoas que estavam no julgamento, quando saíram, foram perguntadas pelos repórteres por que não haviam indicado o Tropa de Elite, conforme o público queria. E essas pessoas deram repostas mal-educadas.

 

Como a do Hector Babenco, que disse que seu filme não para em pé?

Eu não vou citar ninguém. Achei deselegante, só isso, uma pena. Mas tudo bem.

 

Mas você ainda tem chances de concorrer a uma indicação ao Oscar.

O Cidade de Deus não foi indicado como filme estrangeiro. Foi indicado pela academia para quatro categorias como filme norte-americano. Saber qual é a probabilidade de isso acontecer de novo? Zero. É muito difícil.

 

Você tem uma estratégia para isso?

A estratégia não é minha, é da distribuidora, a Weinstein Company. Eles vão inscrever o filme, mas daí a ele ser indicado vai uma distância muito grande. O Oscar virou um totenzinho para o cinema brasileiro. Tem uma competiçãozinha, tem os caras que estão querendo ganhar o Oscar, blábláblá...

 

Você está pouco se lixando para o Oscar?

Se você ganha o Oscar, gera uma série de efeitos. Um deles é que fica facílimo você financiar o seu próximo filme. Sua produtora cresce. Então ganhar o Oscar é inegavelmente ótimo. É claro que eu não estou pouco me lixando. Mas a probabilidade de isso acontecer é zero ou perto disso.

 

Você esteve na casa do ministro Gilberto Gil para assistir uma exibição de uma cópia pirata do Tropa de Elite?

Eu tinha acabado de chegar de uma viagem aos Estados Unidos. Estava sem dormir direito por causa da pirataria e porque estavam trabalhando muito no filme. No minuto em que cheguei em casa, um amigo me liga e fala assim: “Porra, que sacanagem, a maior galera viu o filme no Circo Voador (casa de espetáculos do Rio de Janeiro). Compraram uma cópia pirata de um policial e vão fazer uma sessão na casa do ministro”. Eu estava cansado e aquilo me deu uma irritação profunda. Falei: “Cara, isso não pode ser verdade. Não é possível que vá passar um filme pirata na casa do ministro da Cultura!”. Mas, diga-se de passagem, ele não tinha nada a ver com a história, só envolvia a Flora Gil.

 

Que é mulher do ministro.

É. Então eu tentei arrumar o telefone da casa do Gil, mas não consegui. Aí pensei: “Cara, vou ver se eu passo lá, eu tô muito curioso”. E fui. Toquei a campanha e falei: “Pô, tem uma cópia pirata aí?”. E pra minha surpresa tinha. Me devolveram, peguei a cópia e fui pra casa.

 

Você recebeu das mãos de quem?

Da empregada. No outro dia, a Flora me ligou e disse que não ia passar, que não sabia que era pirata quando deram pra ela. Tudo bem. Não liguei pra imprensa. Na verdade, quem falou sobre isso na imprensa foi a Flora, no jornal O Globo. Considerei mais um assunto do folclore brasileiro (risos). E guardo esse DVD pirata até hoje.

 

Então você deve ter um montinho de DVDs piratas na sua casa...

Não só tinha esse que recebi da empregada do ministro porque eu realmente achei que tinha um simbolismo, falava alguma coisa sobre o país (risos).

 

O Fernando Meirelles (diretor de Cidade de Deus) comemorou a sua vitória em Berlim. Isso o redime da declaração que ele deu dizendo que adoraria que o próximo filme dele, Ensaio sobre a Cegueira, fosse pirateado? Você não ficou chateado com ele?

Eu não fiquei chateado. Eu simplesmente falei: “Pô, posso te dar o nome do cara que pirateou o meu filme”. Mas eu entendo a frase do Fernando. Você fica mesmo com uma reação dúbia em relação à pirataria. A dimensão que o filme tomou no mercado pirata me deu a certeza de que ele tinha sido acolhido pelo público.

 

No fim das contas, a pirataria ajudou Tropa de Elite?

Não acho que tenha ajudado, mas me deu uma informação: o teu filme funciona em alto estilo. Como diretor de cinema e produtor cultural, pensei: “Pô, fiz um troço que sobrevive na competição entre as obras culturais”. Mas, por outro lado, que merda, o filme tá pirateado, não é a versão final...

 

O que Tropa de Elite mudou na sua vida? Hoje você é um sujeito que dá autógrafos na rua?

Antes eu nunca dava autógrafos, agora dou raramente (risos). O Tropa é muito diferente de qualquer outro. A partir de um DVD roubado numa empresa que faz legendagem, em três meses, segundo mediram o Ibope e o Datafolha, 11,5 milhões de brasileiros acima de 16 anos o viram. Nunca aconteceu e nunca vai acontecer de novo, eu acho. É um fenômeno cultural. E ocorreram coisas muito malucas. A polícia nos processou com base numa cópia pirata – anexou uma cópia pirata nos autos do processo! E começou um debate que me incomodou, que me fez sair da toca. Falaram que eu e o Marcos Paulo tínhamos gerado pirataria como uma estratégia de marketing.

 

O que havia de falso nessa afirmação?

Era uma mentira, uma leviandade. E uma burrice, porque o filme não era meu e do Marcos Prado, era também da Universal Pictures, da Paramount, da Weinstein Company. Era como se nós e grandes multinacionais tivéssemos nos reunido e falado assim: “Vamos vazar”. Uma besteira! E é crime! Então escrevi um artigo para O Globo falando o que eu achava da pirataria, porque eu acho péssimo. Estava infeliz com aquilo e não tinha motivos para me orgulhar. Durante dois meses, fiquei debatendo pirataria na mídia. E o debate acabou porque a polícia prendeu o sujeito que confessou ser o pirata. Bom, então agora não dá mais pra falar que foram o Padilha e o Marcos que comandaram a pirataria.

 

Houve retratação?

Eu não vi retratação, não. Aí lançamos o filme no Festival do Rio. Isto que eu vou contar é muito interessante. No lançamento, os atores que interpretaram os oficiais do Bope começaram a rir e aplaudir as performances deles. Eles gritavam “Caveira”. No dia seguinte saiu uma crítica à plateia, porque ela aplaudiu a ação do Bope.

 

E os aplausos tinham vindo dos atores...

Sim. Eu li no Washington Post que a população brasileira era radical de direita porque havia aplaudido o filme. E começou essa crítica de que o problema não está na tela, está na plateia. Inaugurou-se uma nova forma de crítica, em que o cara senta de costas pra tela e olha pra plateia. Eu fui a vários debates em faculdades e sempre perguntava: “Quem considera o capitão Nascimento um herói?”. Nesses debates, que devem ter reunido, ao todo, uns 6 mil estudantes, só uma garota levantou a mão. Eu me pergunto: “Cadê a enorme população que concorda com o Nascimento?”. O Arnaldo Bloch escreveu: “Será que Tropa de Elite é fascista?”. E 90% do texto é contra a plateia, que eram os atores. Não era um público convencional e criou-se essa ideia, como se a população brasileira inteira fosse estúpida e não soubesse diferenciar a ficção da realidade. E isso gerou uma outra polêmica que me obrigou a passar um bom tempo respondendo a essa questão estúpida: o filme é fascista?

 

E qual a sua resposta?

Essa é uma pergunta muito burra, e é facílima de responder. Fascismo é um movimento político-partidário que visa tomar o poder, controlar o Estado, criar um Estado totalitarista que domina os meios de comunicação, domina o Congresso, a produção artística e as escolas. O meu filme é sobre cem policiais violentos no Rio de Janeiro e uma polícia corrupta. Não tem rigorosamente nada a ver com nada. É uma besteira. É preciso ser muito ignorante quanto ao significado do termo fascista para dizer isso.

 

Mas a palavra caiu no uso popular que foge ao significado original.

Então por que não chamaram o filme de stalinista? Aí você pode usar o que quiser, se for usar uma palavra sem se preocupar com o significado que ela tem... E é bom falar que o filme é fascista. É uma maneira de se livrar do problema. Isso tem a ver com o fato de o filme dizer que usuário tem uma responsabilidade ética quando compra drogas. Para não lidar com isso, o cara escreve que o filme é fascista. E aí não precisa mais pensar nisso, acende um baseado e pronto. Não é?

 

Vai dormir, Padilha.

Não posso. Tenho que responder meus e-mails.

 

Publicado originalmente na revista “Playboy” em março de 2008

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