Playboy entrevista José Padilha
Uma conversa franca com o
diretor de Tropa de Elite, vencedor do Urso de Ouro no Festival de
Berlim, sobre críticos desinformados, colunistas deselegantes, estudantes
estereotipados, legalização da maconha e o seu outro troféu, o DVD pirata
recolhido na casa do ministro Gilberto Gil
As olheiras profundas e o ar
abatido do diretor José Padilha, de Tropa de Elite, não deixavam dúvidas
de que aquela havia sido uma semana atribulada. Naquela tórrida tarde de
quarta-feira em que concedia entrevista para PLAYBOY, ele parecia ter chegado
ao limite de seu esgotamento físico. Calça jeans, camiseta surrada e o sem boné
com que costuma esconder sua calvície, Padilha não lembrava em nada o altivo
cineasta que, apenas quatro dias antes, de gorro e cachecol, subira ao palco do
Festival de Berlim para receber o prêmio máximo da competição, o Urso de Ouro,
das mãos do cineasta russo Costa-Gravas, presidente do júri. José Padilha
parecia exausto. Mas com indisfarçável sensação de dever cumprido.
Aos 40 anos, Padilha
transformou-se no diretor responsável pelo maior fenômeno cultural da retomada
do cinema brasileiro: Tropa de Elite foi visto por 11,5 milhões de
brasileiros antes mesmo de chegar às telonas, após uma cópia não-finalizada do
filme ter sido furtada da empresa da legendagem e distribuída em todo o
território nacional – e no exterior. Antes mesmo da estreia oficial, o filme já
era acusado de glamourizar a tortura praticada por policiais do BOPE (Batalhão
de Operações Especiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro), defender a tese
de que traficante bom é traficante morto e, sobretudo, culpar os usuários de
droga pela violência nas favelas. Por isso, Padilha acostumou-se a ouvir
acusações de extrema direita e defensor do fascismo.
O carioca pacato, casado com
uma arquiteta e pai de um garotinho de quatro anos, viu-se então no meio de um
turbilhão. Além das acusações de boa parte da crítica especializada, Padilha
enfrentou processos de policiais do Bope que se sentiram ofendidos pela forma
como foram retratados no filme. Tudo isso acontecia ao mesmo tempo em que Tropa
de Elite estourava nas salas de projeção – a despeito das previsões
catastróficas de que, por causa da pirataria, ninguém pagaria ingresso para
vê-lo – e se transformava na sétima maior bilheteria do cinema no país.
Transformou-se num fenômeno de massa – as expressões “Aspira” e “Pede pra sair”
viraram bordões nacionais. Contrariando a pressão popular que queria ver José
Padilha no tapete vermelho do Kodak Theatre, o Ministério da Cultura escolheu O
Ano em que Meus Pais Saíram de Férias, de Cao Hamburger, parecia
representar o país no Oscar. Parecia uma sina: sucesso acachapante de público,
Tropa enfrentava a antipatia de parte da “inteligência” brasileira.
Curioso que, em seu primeiro
filme, o documentário O Ônibus 174 (2002) – sobre a história do
sequestro comandado por Sandro do Nascimento que resultou na morte da refém
Geísa Gonçalves, no Rio de Janeiro -, Padilha tenha sido acusado de ser um
ideólogo de esquerda por apresentar ao público o ponto de vista do bandido.
Formado em administração de empresas, depois de cursar física e engenharia,
José Padilha diz ter uma forma científica de fazer cinema. “É uma opção minha.
Lido assim com o cinema, porque me é natural”. Esse estilo implica em que não
colocar uma bula dentro do filme. “Eu não mostro uma cena de tortura e digo que
tortura é ruim. O cara interpreta como quer”, disse José Padilha à repórter Adriana
Negreiros, que o entrevistou em duas ocasiões. Na primeira vez, em São
Paulo, oito meses atrás, Padilha andava pelas ruas da Vila Madalena, bairro
boêmio da cidade, sem ser importunado pelos fãs em busca de autógrafos. Na
segunda, no piso superior de sua produtora, no bairro carioca do Jardim
Botânico, ele era o cineasta brasileiro assediado por dezenas de produtoras
internacionais e que fazia planos de filmar em Hollywood. “É a Disneylândia do
cineasta. Eu quero experimentar para ver como é”.
Você ainda está de ressaca
pela comemoração pelo Urso de Ouro, a premiação máxima do Festival de Cinema de
Berlim?
Não, cara, eu tô num fuso
horário maluco. Fiquei 11 dias em Berlim e estou quatro horas para trás. Estou
meio cansado.
Assim que saiu da premiação,
você foi para um bar dar entrevista. Sua vontade não era de ficar por ali,
beber todas as cervejas alemãs e sair carregado?
Não, eu não bebo. Bem, eu bebi
todas as cervejas em Berlim, sim, mas não queria sair carregado daquele bar. E
também existe um rito depois da premiação, você não tem liberdade para fazer o
que quer. Vou te contar como foi, você vai gostar.
Vamos lá.
Os caras do festival ligaram
pra gente um dia e meio antes da premiação e falaram: “Vocês ganharam um
prêmio. Se puderem ficar para a cerimônia, vai ser bom para vocês”. Eles fazem
isso com todos os cineastas premiados, mas não falam qual prêmio você ganhou. E
aí você senta lá e eles começam a dar o prêmio por ordem de importância. O Urso
de Ouro é o último. Então você fica torcendo para não ganhar os prêmios que vão
sendo anunciados. Quando chega os dois últimos, você sabe que ganhou ou o
prêmio especial do júri, que é o Urso de Prata, ou o Urso de Ouro.
Então vocês começaram a
comemorar logo que foi anunciado o vencedor do Urso de Prata, não?
Aí é que é o mais legal. O
cara tá ali, recebendo o prêmio, e fica deselegante você comemorar o seu. Então
você fica parado. E eu estava com a maior galera - minha mulher, minha prima (a
atriz Maria Ribeiro), o Marcos Prado (produtor do filme). E pra
torturar mais um pouquinho, entra numa banda de jazz e toca por três minutos. E
você ali, sentado, pensando: “Meu Deus do céu, me dá esse prêmio logo!”.
Nesses três minutos, você
chegou a pensar se seria aquilo mesmo?
Eu sabia que tinha ganhado. Ou
então os caras tinham me sacaneado muito me fazendo ficar ali pra nada (risos).
Bom, então depois que recebi o prêmio, me levaram para falar com três emissoras
de TV alemãs. Depois fui para uma conferência de imprensa numa rádio alemã que
fica dentro de um bar. Por fim, teve o jantar oficial do festival. Aí acaba a
noite. E você tem que ficar segurando o Urso. Não pode soltar. E é pesado,
cara. Tô achando que é de outro mesmo.
Por que você usou aquele gorro
durante a cerimônia?
Porque estava frio (risos)!
Eu ficava entrando e saindo, então fiquei de gorro. E já tinha virado uma coisa
minha. Eu botei no primeiro dia e começaram a zoar. Disseram que eu parecia um
intelectual paquistanês com o gorro e os óculos. Então falei: “Pois vou ser um
intelectual paquistanês até o final”. No começo eu estava usando um gorro
laranja. Aí o organizador do festival falou pra mim: “Bota o gorro da
Berlinale, a echarpe, e fica com eles”. É, ele já sabia que eu tinha ganhado...
É a primeira vez que estou pensando sobre isso (risos)...
Ao comentar a premiação de Tropa
de Elite, o presidente Lula disse que o filme ressaltava as eficiências do
país. A que eficiências você acha que ele se referia?
O Tropa de Elite prova
que o Brasil tem um cinema muito bom e uma polícia muito ruim. Eu acho que é
isso (risos). A eficiência só pode ser a do cinema. É muito comum
mostrar os problemas dos países no cinema. Os cineastas fazem isso no mundo
inteiro. Existe uma enorme quantidade de filmes que criticam os Estados Unidos
pela guerra do Vietnã, pela guerra do Iraque, pelos erros cometidos na condução
da guerra do Afeganistão. O cinema é uma arte que se presta à crítica social e
não há nada de anormal nisso.
Existe uma observação
recorrente de que os filmes brasileiros abusam da temática da violência. Essa
explicação que você acabou de dar justifica tal fato?
Não, eu não justifico isso.
Primeiro porque a violência se presta ao drama. E cinema é drama. Então ela é
comum no mundo inteiro. O Brasil não é um país que faz filmes sobre violência
por excelência. Basta olhar para os Estados Unidos. Não fazemos filmes
prioritariamente sobre violência. O que acontece é que os distribuidores dos
festivais preferem esses filmes. Então eles os selecionam e depois perguntam:
“Por que será que o Brasil só faz filmes sobre violência?”.
Você conseguiu alguma
explicação razoável para o fato de seu filme ter sido exibido com legendas em
alemão na sessão para a imprensa?
Eles tinham três cópias do
filme: duas com legenda em alemão, para as exibições para o público, e uma em
inglês, para a exibição para a imprensa internacional. O que aconteceu foi que
eles trocaram as cópias. Na sessão para a imprensa internacional passou a cópia
com a legenda em alemão e ninguém entendeu nada.
Foi uma troca acidental?
Sim. Mas eu acho que assim que
perceberam o erro eles deveriam ter interrompido a exibição e marcado outra.
Foi aí que eles encontraram uma solução que a meu ver prejudicou o filme.
Botaram uma moça que não tinham visto o filme traduzindo a legenda em alemão
para o inglês, com uma voz única para todos os personagens. Qualquer cineasta
vai te dizer que isso mata o filme.
Não precisa ser cineasta para
concluir isso.
Porque não tem entonação de
ator e, além disso, o filme tem muita narração em off. A moça embolava a
frase do cara com a narração em off. Quando fui falar com a imprensa
internacional, alguns jornalistas brasileiros me falaram: “Olha, a tradução
estava horrível, os fones não funcionavam, ninguém entendeu nada, a moça
traduziu tudo errado. Se ferrou, Padilha”. Deu para perceber que alguns dos
estrangeiros não tinham entendido nada pelas perguntas que me faziam.
O que você fez?
Eu falei com o distribuidor do
filme e eles organizaram outra exibição à noite. E a gente começou a perceber
quem era sério e quem não era. Porque profissionais sérios não escreviam a
crítica de um filme visto naquelas circunstâncias. Até compreendo que os
jornalistas que falam espanhol, português e alemão tenham feito suas críticas,
porque eles conseguiram compreender o filme. Agora, os caras que só falam
inglês não poderiam ter escrito. Foi um equívoco.
Por isso as críticas negativas
ao seu filme no dia seguinte?
As próprias críticas mostram
bem o que eu acho que aconteceu. O cara viu o filme, não entendeu, entrou na
internet, saiu pesquisando o que foi dito sobre o Tropa de Elite em
outros lugares e reproduziu no texto dele. Fez um samba do crioulo doiro.
Isso inclui a revista Variety,
que falou mal do seu filme?
Não foi só ela, a Hollywood
Reporter também falou mal. Eles falaram muita besteira. A Variety
disse que o Brasil tinha 10 milhões de habitantes e 11,5 milhões de brasileiros
tinham visto o filme. O cara não sabia fazer nem conta (risos). Nem me
incomodei, porque a crítica era tão burra que ela se desqualificava sozinha. O
cara falava que por algum motivo os policiais brasileiros tinham que trabalhar
em oficinas. Ele não entendeu que a oficina era dentro do batalhão, que fazia
parte do trabalho do policial. E a Variety já tinha visto o filme no ano
passado, com a legenda certa, em inglês.
Foi nessa ocasião que você foi
citado como um dos dez diretores em quem se deve prestar atenção no cinema
mundial?
Sim, eu fui citado como um dos
dez diretores promissores. É uma coisa esquisita.
Já o jornal inglês The
Guardian sugeriu que os brasileiros deveriam se envergonhar do prêmio.
Teve uma crítica que falou bem
e outra que falou mal. O prêmio tá aqui guardado e eu não tenho vergonha
nenhuma dele. Eu não sei bem o que o Guardian falou.
Ele publicou que “o filme tem
enredo lamentável, diálogos fracos, é repleto de clichês e glamouriza a tortura
e a morte dos bandidos”.
O que eu posso dizer? O cara
tem direito de fazer a crítica que ele quiser. Não é assim que o Costa-Gravas (presidente
do júri do Festival de Berlim) vê o filme. Entre o crítico do Guardian
e o Costa-Gravas, eu fico com o Costa-Gravas.
A revista inglesa Screen,
por outro lado, falou muito bem de Tropa de Elite.
O filme tem essa propriedade
de gerar reações extremadas. Isso aconteceu porque a gente optou por narrar do
ponto de vista do policial violento do Bope. É uma decisão ousada e que parte
da premissa de que o público vai entender que, evidentemente, a gente não está
subscrevendo esse ponto de vista. Quinze milhões de brasileiros entenderam o
filme assim. Os intelectuais brasileiros entenderam o filme assim, em sua
enorme maioria – gente como o Arnaldo Jabor (colunista de O Globo),
o Contardo Calligaris (colunista da Folha de S. Paulo), o Zuenir
Ventura (jornalista e escritor). O júri do Festival de Berlim entendeu o
filme. O que mais eu posso querer? Nada.
Quais são as outras razões
para as opiniões tão extremadas?
Existe certo tipo de crítica
que nasce do fato de o cara estar incluído no filme. O filme diz assim: você,
usuário, quando consome drogas no Brasil, opta por comprá-las de um grupo
armado que domina uma comunidade carente no morro. Você está, portanto, optando
por sustentar esse grupo armado. É um fato. Um fato que nada tem a ver com a
ideia de que se as pessoas pararem de consumir drogas a violência vai acabar.
Em momento algum eu emiti essa opinião. A gente só disse que o cara que opta
por comprar drogas de um grupo armado está optando por sustentar esse grupo
armado, assim como o cara que compra madeira ilegal na Amazônia está ajudando a
destruir a floresta. É um fato econômico.
O usuário de drogas enfrenta
um problema moral, portanto?
Sim. Ele está envolvido
eticamente com a morte de pessoas, com tiroteios nas favelas, porque ele
sustenta o grupo armado dos traficantes. Não dá pra fugir disso, assim como o
cara que compra produto feito com trabalho infantil está envolvido com o trabalho
infantil. Por que o raciocínio funciona para tudo, menos para drogas? Ninguém
discorda desse raciocínio quando ele diz respeito às árvores da Amazônia. Tanto
assim que empresas colocam selos de que o móvel foi feito com uma árvore
plantada, de que o produto não contribuiu para o trabalho infantil... As
grandes organizações, como a Unicef e a Abrinq, carimbam os selos. Eu nunca vi
nenhum argumento razoável para que esse raciocínio não se aplique ao tráfico de
drogas. Só vi gente esperneando.
E o que isso tem a ver com as
críticas?
Porque dessa maneira você
obriga um cara que é um usuário recreativo de drogas, e que escreve no jornal
sobre cinema, a falar assim: “Pô, eu tenho alguma coisa a ver com isso”. Tem
gente que lida inteligentemente com isso, tem gente que não. O cara pensa: “É melhor
eu me livrar desse filme logo”. Em vez de ficar discutindo Tropa de Elite,
vou chamá-lo de radical de direita e pronto. Eu percebi que aconteci isso com
uma parcela das pessoas que criticaram o filme. E vários atores, atrizes – não
vou citar nomes – me mandaram e-mails dizendo: “Neguinho não vai te perdoar”. E
de fato isso aconteceu.
Você previa que seu filme iria
provocar tamanho incômodo?
Se você fizer um filme que não
incomoda ninguém, qual é a graça? Incômodo eu sabia que ia ter, o que eu não
previa era que uma parte das pessoas que ficaram incomodadas fosse atribuir a
mim, ao Luiz Eduardo Soares (antropólogo, um dos autores do livro Elite
da Tropa) e a outras pessoas o raciocínio simplório – que não está no
nosso filme – de que basta acabar o consumo de drogas para acabar a violência.
A gente não fala isso em lugar nenhum, mas as pessoas argumentam como se a
gente tivesse dito.
Foi, inclusive, o que o
crítico Arnaldo Bloch escreveu no jornal O Globo: “A preocupação
obsessiva de Padilha é com o baseado que a galera queima, reforçando a tese
surrada de que os maiores culpados pela violência do tráfico são os usuários”.
Pois é, mas o filme não tem essa
tese em lugar nenhum. Qual é a perspectiva do filme? A gente cria uma metáfora
dos processos sociais que acontecem no Rio de Janeiro com a teoria dos jogos.
Isso está enunciado com clareza para quem conhece essa teoria. Para você
entender o comportamento das pessoas no Rio, você tem que entender as regras a
partir das quais essas pessoas agem.
Como assim?
Para entender um jogo de
pôquer, você tem que saber quais são as regras do pôquer e assim compreender o
comportamento dos jogadores. É um modelo de análise de processos sociais
clássico, famoso e conhecido. O que explica a enorme violência que existe no Rio
de Janeiro? São regras que a sociedade adota. Você é um policial que recebe 700
reais por mês e é mal treinado. E a sociedade pede para você o seguinte: “Vai
lá naquela favela cheia de gente armada e luta com eles”. Qual é a jogada
racional que um cara desses vai fazer?
Qual é?
Ele não tá a fim de morrer.
Então é induzido a se corromper. A gente disse: “Olha, para você ter um grupo
de policiais que não se corrompe monetariamente dentro de uma instituição tão
corrompida quanto a polícia, você tem que incutir neles uma ideologia tão
estúpida quanto a ideologia do Bope”. O Arnaldo Bloch ignorou todas as regras e
pegou só a que o incomoda. É quase uma autocrítica. Por que o incomoda eu não
sei. Selecionou o problema da droga sem entrar em todas as outras coisas do
filme. Quando o cara fala alguma coisa, ele denuncia sua posição, quer queira,
quer não. Tanto o cineasta que faz o filme como o sujeito que comenta.
Um dos aspectos mais
criticados do seu filme é a caracterização dos universitários, que muitos
consideram estereotipada.
Qualquer filme estereotipa
qualquer pessoa. Ou será que os mafiosos são iguais ao Michael Corleone de O
Poderoso Chefão? Qualquer filme, inclusive documentários, estereotipa seus
personagens, porque quando você liga a câmera o cara já não se comporta como
antes. A ideia de cobrar da dramaturgia uma verossimilhança com a realidade é
ingênua.
Você acha que houve exagero no
caso dos estudantes, então?
Olha, os estudantes foram
interpretados por universitários. O professor universitário do filme era, de
fato, um professor universitário – ele dava aulas na PUC. Eu representei as
cenas, mostrei para todos e ouvi que era exatamente daquele jeito. Eu estudei
na PUC e os estudantes, na média, eram daquele jeito. O André Batista, que foi
do Bope e inspirou o personagem do Matias, também estudou na PUC e disse que
era muito parecido com o que está no filme. Agora, todos os estudantes são
iguais? Não. Aquele grupo de alunos que a gente mostrou não representa a média
dos estudantes do Brasil, não era esse o nosso objetivo. Isso é uma besteira.
Aquilo representa uma visão que os policiais têm dos estudantes. Os policiais
têm uma visão estigmatizada dos estudantes? Têm. E é isso que está no filme.
Por sua vez, os estudantes têm uma visão estigmatizada dos policiais? Têm
também, e isso está no filme. Os policiais têm uma visão estigmatizada das
ONGs? Têm. As ONGs têm uma visão distorcida dos traficantes? Têm. O filme é
sobre essas visões distorcidas e, portanto, elas têm que estar assim.
O incômodo não deriva do fato
de muitos justamente se identificarem com os estudantes?
Não sei... Acho que o maior
incômodo é não tratar o problema da violência urbana como uma guerra
particular. Essa não é uma guerra entre policiais e traficantes. Não é verdade
que os policiais e os traficantes estão em guerra e a gente está aqui no meio
do caminho e de vez em quando alguém toma um tiro de bala perdida.
Esse é o pensamento corrente.
Mas não está certo. A gente
não pode isolar a classe média e dizer que isso acontece à sua revelia. Nosso
filme tem o mérito de botar a classe média no meio desse quadro. E tem uma
provocação: retratar a classe média pelo modo como a polícia olha para ela.
Você é a favor da legalização
das drogas?
Sou favorável sobretudo à
liberação da maconha, que é responsável por uma parcela significativa da
receita do tráfico. Acho que a cocaína deveria ser tratada de outra forma.
Legalizada, mas não do mesmo jeito que a maconha. Se o consumo de drogas
diminuísse por algum motivo, isso reduziria a violência?
Reduziria?
Essa é uma questão complexa.
Eu acho que sim. Primeiro porque existem estudos antropológicos que mostram que
a violência é maior onde há traficantes. Existe o argumento de que a violência
não vai cair porque os traficantes vão mudar de profissão. Eles iam começar a
assaltar na rua. Pera aí, mas é muito mais difícil e arriscado assaltar na rua
que vender drogas numa favela. A ideia de que a violência associada ao tráfico
de drogas vai automaticamente se transferir para outro tipo de violência é
equivocada. Tem outra coisa implícita aí: a violência do tráfico de drogas mata
pessoas pobres e miseráveis na favela. Se a violência mudar para sequestro e
roubo, vai morrer gente rica e isso incomoda realmente. Tem essa hipocrisia no
meio no argumento dessas pessoas. Violência na rua incomoda mais que violência
na favela.
Você já usou drogas?
Já. A única droga que usei na
minha vida foi maconha, quando era jovem, várias vezes... Todo mundo usa
maconha (enfático)! Olha só: eu pesquisei muito para representar o
policial do meu filme, pesquisei todo mundo, menos os estudantes. Não precisei,
porque já fui um. Agora tem muito tempo que eu não uso porque me dei conta,
sim, de que é um equívoco usar drogas. É um equívoco comprar drogas de
traficantes armados do morro, sobretudo para as pessoas que não fazem campanha
pela legalização das drogas. Eu não vejo o usuário de droga andando na rua
pedindo para legalizar a droga porque ele quer ter o direito de escolher. O que
eu vejo é uma posição cômoda do cara. Compra e pronto, que se ferre.
Você era um estudante como o
retratado no seu filme?
Não, não era. Eu era diferente
em algumas coisas e parecido em outras. Mas eu já fumei maconha várias vezes,
no Brasil e fora. Por exemplo, eu não tenho problema nenhum com maconha. Se
você plantar maconha em casa e fumar, cara, qual o problema? Você plantar
maconha em casa e fumar é qualitativamente diferente de você comprar maconha de
um traficante armado que domina uma favela. Não é a mesma coisa. São transações
econômicas que têm uma natureza diferente. Teu dinheiro tá indo para outro
lugar. Você poderia entender o filme assim. Qual é a mensagem do filme no que
diz respeito às drogas? Plante sua maconha (risos). Claro que eu não tô
dizendo isso, não tô estimulando o tráfico e nem nada. Quero deixar isso claro
para não ser mal interpretado e depois processado. O problema não é a droga em
si. O problema é a regra do jogo.
Se você fosse para um país em
que a droga é legalizada, você consumiria?
Se eu estiver a fim, sim. Eu
não tenho clareza, não conheço e não sei, por exemplo, de onde vem o haxixe
vendido em Amsterdã. Não sei o que eu estou financiando, não tenho essa
consciência. Mas eu sei que não vem de um grupo armado de uma favela da Holanda,
certo?
Quando você se deu conta de
usar drogas era financiar um grupo armado da favela?
Cara, não demorou muito. Parei
de fumar maconha cedo. Fumei dos 16 aos 20 anos. Fiz documentário. Filmei
favela e você começa a pensar sobre isso.
Você fez faculdade de física.
Como foi parar no cinema?
Primeiro eu estudei
engenharia. Na verdade, queria estudar física, mas não sabia que não iria
ganhar 1 real como físico. Então fiz engenharia. Naquela época, como ainda
hoje, havia uma atração das pessoas pelo mercado financeiro, que é onde você
consegue ganhar mais dinheiro. O mercado financeiro contrata engenheiros,
economistas e muitos poucos físicos. Depois decidi: “Que se ferre, vou mesmo
pra física”. Mas isso durou pouco tempo, porque fui contratado pelo mercado
financeiro (risos). Comecei a trabalhar durante o dia, não tinha física
à noite e fui estudar administração. Mas não gostei do mercado financeiro,
achei chato.
Deu pra ganhar dinheiro?
Nada. Fiquei um ano. Daí já
comecei a querer fazer cinema.
Mas como tudo começou?
Antes de virar diretor de
cinema, o Marcos Prado, que hoje é meu sócio, era um fotógrafo reconhecido. Ele
tinha feito um ensaio fotográfico muito bacana sobre os carvoeiros e tinha tido
a ideia de expor na Eco 92, numa mostra paralela.
Vocês eram amigos?
Sim. Amigos de encontrar na
praia e pegar onda. Organizamos a mostra e no meio da história tivemos a ideia
de produzir um vídeo. Chamamos o Johnny Jardim, que é um ótimo cineasta, para
fazer a direção. E a gente fez o vídeo, tinha uma música do Caetano Veloso no
final. Tenho orgulho desse trabalho até hoje, embora não tenha feito grandes
coisas nele – fui apenas o produtor. Mas gostei. E percebi que havia uma
maneira interessante de falar sobre processos sociais por meio do audiovisual.
Falei: “Marcos, vamos experimentar fazer um filme sobre os carvoeiros? Tem um
incentivo fiscal aí, a gente consegue levantar dinheiro, já tô de saco cheio de
trabalhar pros outros... Então é uma maneira de trabalhar pra mim mesmo”.
E deu certo?
A gente decidiu fazer, mas não
sabia filmar. Resolvemos trazer um cara de fora para aprender a filmar com ele.
Fomos procurar quem seria a pessoa. Descobrimos que o Nigel Noble, que ganhou
Oscar (em 1981, com o documentário Close Harmony). Aí o contratamos.
Trouxemos o cara pra cá e ele dirigiu Os Carvoeiros (1999). Para nosso
espanto, mandamos o filme para o festival de Sundance e gostou daquele negócio
– uisquinho, cinema. Era legal. Então decidimos: vamos fazer cinema.
Você ficou muito frustrado por seu filme não ter sido indicado ao Oscar desse
ano?
Não. Primeiro porque eu acho
que O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias, sem demagogia nenhuma, é um
ótimo filme. A temática dele ajudava a indicação ao Oscar, além da qualidade do
cinema. E esse foi o critério. A única coisa que me chateou, para falar a
verdade, foi a seguinte: a gente não fez pressão nenhuma sobre a comissão do
Oscar. Não liguei pra ninguém, não falei com ninguém. Houve uma pressão do
público, porque os sites começaram a fazer enquetes e 70% da população queria o
Tropa de Elite. Algumas pessoas que estavam no julgamento, quando
saíram, foram perguntadas pelos repórteres por que não haviam indicado o Tropa
de Elite, conforme o público queria. E essas pessoas deram repostas
mal-educadas.
Como a do Hector Babenco, que
disse que seu filme não para em pé?
Eu não vou citar ninguém.
Achei deselegante, só isso, uma pena. Mas tudo bem.
Mas você ainda tem chances de
concorrer a uma indicação ao Oscar.
O Cidade de Deus não
foi indicado como filme estrangeiro. Foi indicado pela academia para quatro
categorias como filme norte-americano. Saber qual é a probabilidade de isso
acontecer de novo? Zero. É muito difícil.
Você tem uma estratégia para
isso?
A estratégia não é minha, é da
distribuidora, a Weinstein Company. Eles vão inscrever o filme, mas daí a ele
ser indicado vai uma distância muito grande. O Oscar virou um totenzinho para o
cinema brasileiro. Tem uma competiçãozinha, tem os caras que estão querendo
ganhar o Oscar, blábláblá...
Você está pouco se lixando
para o Oscar?
Se você ganha o Oscar, gera
uma série de efeitos. Um deles é que fica facílimo você financiar o seu próximo
filme. Sua produtora cresce. Então ganhar o Oscar é inegavelmente ótimo. É
claro que eu não estou pouco me lixando. Mas a probabilidade de isso acontecer
é zero ou perto disso.
Você esteve na casa do
ministro Gilberto Gil para assistir uma exibição de uma cópia pirata do Tropa
de Elite?
Eu tinha acabado de chegar de
uma viagem aos Estados Unidos. Estava sem dormir direito por causa da pirataria
e porque estavam trabalhando muito no filme. No minuto em que cheguei em casa,
um amigo me liga e fala assim: “Porra, que sacanagem, a maior galera viu o
filme no Circo Voador (casa de espetáculos do Rio de Janeiro). Compraram
uma cópia pirata de um policial e vão fazer uma sessão na casa do ministro”. Eu
estava cansado e aquilo me deu uma irritação profunda. Falei: “Cara, isso não
pode ser verdade. Não é possível que vá passar um filme pirata na casa do
ministro da Cultura!”. Mas, diga-se de passagem, ele não tinha nada a ver com a
história, só envolvia a Flora Gil.
Que é mulher do ministro.
É. Então eu tentei arrumar o
telefone da casa do Gil, mas não consegui. Aí pensei: “Cara, vou ver se eu
passo lá, eu tô muito curioso”. E fui. Toquei a campanha e falei: “Pô, tem uma
cópia pirata aí?”. E pra minha surpresa tinha. Me devolveram, peguei a cópia e
fui pra casa.
Você recebeu das mãos de quem?
Da empregada. No outro dia, a
Flora me ligou e disse que não ia passar, que não sabia que era pirata quando
deram pra ela. Tudo bem. Não liguei pra imprensa. Na verdade, quem falou sobre
isso na imprensa foi a Flora, no jornal O Globo. Considerei mais um
assunto do folclore brasileiro (risos). E guardo esse DVD pirata até
hoje.
Então você deve ter um
montinho de DVDs piratas na sua casa...
Não só tinha esse que recebi
da empregada do ministro porque eu realmente achei que tinha um simbolismo,
falava alguma coisa sobre o país (risos).
O Fernando Meirelles (diretor
de Cidade de Deus) comemorou a sua vitória em Berlim. Isso o redime da
declaração que ele deu dizendo que adoraria que o próximo filme dele, Ensaio
sobre a Cegueira, fosse pirateado? Você não ficou chateado com ele?
Eu não fiquei chateado. Eu simplesmente
falei: “Pô, posso te dar o nome do cara que pirateou o meu filme”. Mas eu
entendo a frase do Fernando. Você fica mesmo com uma reação dúbia em relação à
pirataria. A dimensão que o filme tomou no mercado pirata me deu a certeza de
que ele tinha sido acolhido pelo público.
No fim das contas, a pirataria
ajudou Tropa de Elite?
Não acho que tenha ajudado,
mas me deu uma informação: o teu filme funciona em alto estilo. Como diretor de
cinema e produtor cultural, pensei: “Pô, fiz um troço que sobrevive na
competição entre as obras culturais”. Mas, por outro lado, que merda, o filme
tá pirateado, não é a versão final...
O que Tropa de Elite
mudou na sua vida? Hoje você é um sujeito que dá autógrafos na rua?
Antes eu nunca dava
autógrafos, agora dou raramente (risos). O Tropa é muito
diferente de qualquer outro. A partir de um DVD roubado numa empresa que faz
legendagem, em três meses, segundo mediram o Ibope e o Datafolha, 11,5 milhões
de brasileiros acima de 16 anos o viram. Nunca aconteceu e nunca vai acontecer
de novo, eu acho. É um fenômeno cultural. E ocorreram coisas muito malucas. A
polícia nos processou com base numa cópia pirata – anexou uma cópia pirata nos
autos do processo! E começou um debate que me incomodou, que me fez sair da
toca. Falaram que eu e o Marcos Paulo tínhamos gerado pirataria como uma
estratégia de marketing.
O que havia de falso nessa
afirmação?
Era uma mentira, uma
leviandade. E uma burrice, porque o filme não era meu e do Marcos Prado, era
também da Universal Pictures, da Paramount, da Weinstein Company. Era como se
nós e grandes multinacionais tivéssemos nos reunido e falado assim: “Vamos vazar”.
Uma besteira! E é crime! Então escrevi um artigo para O Globo falando o
que eu achava da pirataria, porque eu acho péssimo. Estava infeliz com aquilo e
não tinha motivos para me orgulhar. Durante dois meses, fiquei debatendo
pirataria na mídia. E o debate acabou porque a polícia prendeu o sujeito que
confessou ser o pirata. Bom, então agora não dá mais pra falar que foram o
Padilha e o Marcos que comandaram a pirataria.
Houve retratação?
Eu não vi retratação, não. Aí
lançamos o filme no Festival do Rio. Isto que eu vou contar é muito
interessante. No lançamento, os atores que interpretaram os oficiais do Bope
começaram a rir e aplaudir as performances deles. Eles gritavam “Caveira”. No dia
seguinte saiu uma crítica à plateia, porque ela aplaudiu a ação do Bope.
E os aplausos tinham vindo dos
atores...
Sim. Eu li no Washington
Post que a população brasileira era radical de direita porque havia
aplaudido o filme. E começou essa crítica de que o problema não está na tela,
está na plateia. Inaugurou-se uma nova forma de crítica, em que o cara senta de
costas pra tela e olha pra plateia. Eu fui a vários debates em faculdades e
sempre perguntava: “Quem considera o capitão Nascimento um herói?”. Nesses
debates, que devem ter reunido, ao todo, uns 6 mil estudantes, só uma garota
levantou a mão. Eu me pergunto: “Cadê a enorme população que concorda com o
Nascimento?”. O Arnaldo Bloch escreveu: “Será que Tropa de Elite é
fascista?”. E 90% do texto é contra a plateia, que eram os atores. Não era um
público convencional e criou-se essa ideia, como se a população brasileira
inteira fosse estúpida e não soubesse diferenciar a ficção da realidade. E isso
gerou uma outra polêmica que me obrigou a passar um bom tempo respondendo a
essa questão estúpida: o filme é fascista?
E qual a sua resposta?
Essa é uma pergunta muito
burra, e é facílima de responder. Fascismo é um movimento político-partidário
que visa tomar o poder, controlar o Estado, criar um Estado totalitarista que
domina os meios de comunicação, domina o Congresso, a produção artística e as
escolas. O meu filme é sobre cem policiais violentos no Rio de Janeiro e uma
polícia corrupta. Não tem rigorosamente nada a ver com nada. É uma besteira. É
preciso ser muito ignorante quanto ao significado do termo fascista para dizer
isso.
Mas a palavra caiu no uso
popular que foge ao significado original.
Então por que não chamaram o
filme de stalinista? Aí você pode usar o que quiser, se for usar uma palavra
sem se preocupar com o significado que ela tem... E é bom falar que o filme é
fascista. É uma maneira de se livrar do problema. Isso tem a ver com o fato de
o filme dizer que usuário tem uma responsabilidade ética quando compra drogas.
Para não lidar com isso, o cara escreve que o filme é fascista. E aí não
precisa mais pensar nisso, acende um baseado e pronto. Não é?
Vai dormir, Padilha.
Não posso. Tenho que responder
meus e-mails.
Publicado originalmente na
revista “Playboy” em março de 2008
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