JAGUAR
n.
1932. Cartunista e jornalista.
Por
Ruy Castro
O
infante e adolescente Jaguar foi expulso de sete colégios. Um deles, marista,
ao ser flagrado desenhando um gibi pornográfico, tendo os padres como
protagonistas. Não que Jaguar gostasse de desenhar. Lia Rimbaud em francês e
queria ser poeta. Descobriu o endereço de Carlos Drummond de Andrade e
mandou-lhe um poema de dez páginas, “para sua apreciação”. Surpreendentemente,
o poeta respondeu-lhe: “Tem resquícios de poesia”. Ao ver que os grandes poetas
também eram uns irresponsáveis, Jaguar preferiu voltar ao desenho.
Para
se garantir, prestou concurso para o Banco do Brasil. Tirou vários zeros, inclusive
em datilografia, mas foi aprovado na média. Em 1957, Jaguar foi mostrar seus
desenhos ao jornalista Hélio Fernandes. Este não perdoou: “Nunca vi nada tão
ruim. Você é funcionário do Banco do Brasil? Então volte para lá. Eu entendo de
desenho, porque sou irmão do Millôr Fernandes, que é o maior humorista
brasileiro de todos os tempos. Você é a maior negação vocacional que já vi”. O
próprio Millôr, anos depois, teria outra opinião: “Para mim, Jaguar é um gênio.
Os outros defeitos eu desculpo”.
Jaguar
começou na página de humor de Manchete, na qual, em 1958, foi descoberto
por Carlos Scliar e levado para a revolucionária revista SENHOR. Nesta,
conheceu Paulo Francis e Ivan Lessa. Os dois foram importantes para sua
formação, assim como Millôr, com quem Jaguar colaborou na revista Pif-Paf,
em 1964, e Sérgio Pôrto, seu colega no Banco do Brasil e na Última Hora – todos
eles mestres do ceticismo e da ironia. O golpe militar de 1964 politizou a jato
uma geração inteira de cartunistas brasileiros, mas Jaguar, que foi um dos
primeiros a tentar derrubar o regime pelo riso (no livro Hay Gobierno?,
com Fortuna e Claudius, daquele mesmo ano), sempre deu a seus cartuns políticos
a perenidade dos cartuns clássicos, na linha do francês André François.
Em
1969, começou a aventura de O PASQUIM, o semanário nanico fundado por Tarso de
Castro, Sérgio Cabral e ele. O título foi uma criação do próprio Jaguar,
prevendo que os adversários do jornal tentariam diminuí-lo chamando-o de “um
pasquim”. Jaguar foi também o único que esteve com O Pasquim do berço à
agonia, sem faltar uma semana, exceto pelos dois meses em que esteve preso com
outros oito membros da equipe, em fins de 1970. Sobreviveu a anos de
negociações semanas com os censores, a inúmeras apreensões do jornal e uma
bomba que foi atirada no jardim da redação, na rua Saint-Roman, e que ele
chutou para o lado, sem saber do que se tratava. Sobrevivei também às dívidas
do jornal, que, quando se revelaram impagáveis, obrigaram-no a vende-lo, em
1988. Livre do Pasquim, passou-se para os jornais populares, como O
Dia, A Notícia e O Povo. Em 1999, lançou com Ziraldo a
revista Bundas.
Em
seus primeiros quarenta anos de trabalho, Jaguar pode ter produzido mais de 20
mil cartuns. Mas a única maneira de reuni-los é contratando uma equipe de
arqueólogos para varejar inúmeras publicações (a maioria, já extinta) em que
ele colaborou. Jaguar nunca foi de guardar seus desenhos publicados. Os
originais, então, nem pensar – porque ele podia desenhá-los em qualquer pedaço
de papel, que depois dobrava, enfiava no bolso e entregava amassado na redação.
Mas as revistas internacionais de artes gráficas não se importam com isso –
todas já o publicaram.
Muitos
de seus personagens marcaram época: Sig, o rato-símbolo do Pasquim; Gastão,
o vomitador; Bóris, o homem-tronco e a turma do CHOPNICS, em parceria com Ivan
Lessa. Mesmo quando seu humor beirou a escatologia e o grandguignol,
Jaguar nunca foi ofensivo – e por uma simples razão: ele sempre foi engraçado.
Mas o melhor de Jaguar está fora dos personagens fixos. Seu olho para extrair o
lugar-incomum dos lugares-comuns e sua capacidade de ridicularizar uma frase ou
expressão com um desenho sempre foram extraordinários. Exemplo: o cartum que
mostra Cristo na cruz dizendo que Maria Madalena, “Hoje não dá, Madalena, estou
pregado”. É capaz de fazer rir até com ilha deserta, marido-que-chega-em-casa-de-repente
e elefante e formiguinha, que são alguns dos temas mais explorados desse
século.
Fora
da prancheta, Jaguar teria direito a toda uma biografia paralela, como um dos
responsáveis pelo mito de Ipanema. A ideia de uma “turma de Ipanema” começou a
se formar nos bailes pré-carnavalescos promovidos por sua então mulher, Olga
Savary, em fins dos anos 50 – quando Jaguar ainda detestava festa e Carnaval – ,
e evoluiu para os réveillons promovidos por ele (já convertido à esbórnia) e
por Albino Pinheiro nas gafieiras da cidade. Em 1965, surgiu a Banda de Ipanema,
da qual foi dos criadores. Logo depois, o Pasquim passaria a impressão de que
era escrito à beira-mar por intelectuais tomando uísque e cercados de mulheres.
Na visão de Jaguar, isso teria levado à invasão do bairro pelas imobiliárias e
ao fim de seu provincianismo e delicadeza – e ele se culpa por isso. Mas Jaguar
pode ficar sossegado: outros fatores, como o crescimento demográfico, a
brutalização de Copacabana e o milagre econômico dos anos 70, provocaram o
avanço sobre Ipanema.
A
famosa frase que lhe é atribuída, “Intelectual não vai à praia, intelectual
bebe”, foi dita por Paulo Francis. Jaguar usou-a numa tira dos Chopnics,
mas nunca escondeu seu autor. E sempre a seguiu à risca. Com sua impressionante
capacidade de trabalho e a disciplina que herdou de quase vinte anos como
bancário, ele calcula que já bebeu de chope: “O equivalente à lagoa Rodrigo de
Freitas”. Sua nascente favorita eram as serpentinas do Jangadeiro, enquanto
este existiu. Mas Jaguar, da escola Albino, é Ph.D. em botequins cariocas:
conhecedor de qualquer birosca de subúrbio onde um dia se tirou grande chope ou
em que inenarráveis peixinhos fritos saltaram da frigideira.
Sua
biografia está dispersa na trajetória de seus ex-companheiros do Pasquim
e nas de Hugo Bidet, Fredy Carneiro, Paulo Góes, Leila Diniz, Roniquito Chevalier,
Zequinha Estelita, Marcos de Vasconcellos, Fausto Wolff, Lan e os muitos outros
com quem dividiu mesas de bar ou de redação. E que, em tantos anos de
corpo-a-corpo ao redor de garrafas, raramente o ouviram levantar a voz um decibel
acima da suavidade.
Retirado
de: CASTRO, Ruy. Ela é carioca: uma enciclopédia de Ipanema. São Paulo:
Companhia das Letras, 1999.
Nenhum comentário:
Postar um comentário