terça-feira, 26 de outubro de 2010

Gigantes do Jornalismo Esportivo: José Maria de Aquino

                                           Juca Kfouri e Zé Maria de Aquino nos bons tempos da Placar

José Maria de Aquino (1933-) é um dos maiores repórteres brasileiros de todos os tempos. Em quase 50 anos de carreira profissional, ele já atuou em diversos órgãos de comunicação. A grande marca profissional de Zé Maria é ter sido um dos grandes nomes da primeira geração do Jornal da Tarde e da revista Placar.

Vejam a ironia do destino: Aquino originalmente formou-se em Direito. Mas com o tempo se sentiu decepcionado com o mundo da advocacia e entregou-se de corpo e alma ao jornalismo.

Em 1966, ele empenhou-se na cobertura do primeiro casamento do Rei Pelé no JT. O grupo Estado tinha mais de catorze profissionais escalados para conseguirem notícias exclusivas sobre o casório. Em depoimento ao livro Os Donos do Espetáculo de André Ribeiro, Zé Maria relembrou esta cobertura: “Eu, por exemplo, cheguei a namorar uma empregada que ia constantemente visitar a costureira da noiva. O Bataglia chegou a namorar a irmã do Pelé, que aliás ficou tempos sem falar com ele por causa desse fato”. O Jornal da Tarde tinha grandes jornalistas na área esportiva nesse período. Gente do quilate de Michel Laurence, Roberto Avalone, Mário Marinho e Vital Bataglia.
  
Entre 1970 e 82, Zé Maria foi um dos grandes nomes da revista Placar. Ele participou inclusive da primeira edição da célebre publicação. A cobertura da Copa de 1970  no México pela revista foi um dos marcos da carreira dele. Este empenhado profissional também passou pelas redações e tribunas do O Estado de São Paulo, TV Globo, SporTV, CNT e Rede Brasil de Televisão.

Aos 77 anos, este mestre do texto continua ativo. Sua grande paixão continua sendo o São Paulo, seu clube do coração. Separei aqui um perfil escrito por Zé Maria nos bons tempos da Placar que é uma grande aula de jornalismo literário.

O CAIPIRA MILONGUEIRO



Por José Maria de Aquino

Aos 62 anos, José Agnelli é um ídolo, em todo o interior paulista. Uma figura de folclore, mas que tem a perfeita consciência dos pequenos dramas do futebol brasileiro. Sua vida, seus casos, dariam um saboroso – e sempre irônico – romance.

Chapéu coma ponta quebrada sobre os olhos, cigarro barato entre os dedos, pigarro no peito, pouco dinheiro nos bolsos, nenhuma mágoa, muitos amigos, filosofia de vida diferente – produto das milongas de quem nasceu em Buenos Aires e foi amigo de Gardel com a ingênua malícia do caipira paulista -, de Jundiaí para lá, pegando o sul de Minas, Goiás e Mato Grosso, não há quem não conheça ou já não tenha sofrido com os truques e os conhecimentos de José Agnelli, técnico de futebol.

Seis vezes no Botafogo de Ribeirão Preto, quatro na Ponte Preta, três no Comercial, quatro no XV de Piracicaba, três na Ferroviária de Araraquara. No Noroeste, no XV de Jaú, no Guarani, no antigo Mogiana, no Vila Nova e no Goiânia, de Goiás, salvando alguns do rebaixamento e promovendo outros à divisão especial, ele é uma lenda e parte do nosso folclore. Nunca assinou contratos, nunca fez maiores exigências, gastou bem tudo que conseguiu ganhar, ajudou a formar muitos jogadores, é mestre e conselheiro dos técnicos mais novos e, quando for para morrer, na certa estará num quarto de pensão barata ou na enfermaria de um pequeno hospital.

- Meus contratos sempre foram a coisa mais linda deste mundo. É só na palavra. Não peço dinheiro e só exijo a condição de sair ou ser mandado embora quando uma das partes já não estiver contente. Não tenho família e por isso não preciso ganhar muito. Quando era mais novo, mais disposto, ganhei bom dinheiro mas perdi tudo. Deixei tudo nos cavalinhos e nas bolsas das mulheres bonitas. Mas não me arrependo de nada disso. Tinha alguns ternos de linho 120, do melhor, vários chapéus panamá e só frequentava bons lugares. Quando a gente tem dinheiro e mora na cidade grande, duas mulheres é pouco. Aqui no interior é diferente. Longe da tentação a gente muda. Só se pára com essas coisas saindo de perto delas. Eu parei há uns dez anos.

Agnelli começou jogando no River Plate e em 1939 veio para o Vasco da Gama juntamente com Dacunto, Gandula e Emear. Logo estourou o menisco e precisou parar. Um dia foi até Campinas passar uma temporada e acabou ficando para treinar o Mogiana, um time que existia naquela época.

A boa terra

- O Vasco do meu tempo (1939): Nascimento, Agnelli e Florindo; Figuerola, Zarzur e Dacunto; Lindo, Villadonica, Niginho, Gandula e Emear. Uma vez perdemos de 1 a 0 para o Fluminense e eles, com um ataque formado por Pedro Amorim, Romeu, Russo, Tim e Hércules, quase nos mataram de tanto correr. Depois do jogo o Figuerola disse que nos pulmões e de brônquios nós estávamos bem. Se a gente tivesse corrido aquilo tudo em linha reta, teria chegado tranqüilamente à Argentina. O Flamengo também tinha um bom ataque. Se dessem três bolas e meia hora de prazo para o Perácio chutá-las, ele acabaria derrubando uma casa. Era uma ignorância.

Treinando o Mogiana, depois a Ponte e o Guarani, sempre perto de São Paulo, Agnelli logo se juntou aos outros argentinos que viviam no futebol paulista. E todos moravam numa república movimentada na rua Conselheiro Crispiniano. Ele, Jim Lopes, Cambom, Magri e uns outros.

- Um dia alguém comentou que as coisas aqui não estavam boas e resolvemos que alguém deveria ir até a Argentina para sondar como é que estavam por lá. Ele voltou dizendo: “O negócio é ficar por aqui mesmo. Lá, se colocarem uma nota de 50 no alto de um pau-de-sebo, vai aparecer mais de duzentos caras tentando agarrá-la”. Esta terra aqui é muito boa, moço. Só não come quem não tem fome. Em quinze minutos você faz um amigo que te oferece comida, sua casa e até empresta a própria cama. É tudo uma questão de jeito e de honestidade. Eu nunca perdi a linha. O Jim Lopes chegou a ser tratador de cavalos. Mas ninguém fez coisas erradas como o Filpo Nuñez. Ganhou e jogou tudo pela janela. Dos gringos que anda por aqui eu sou o único com quem ele pode conversar mais do que alguns minutos.

Muitas vezes recebeu convites para treinar times grandes, da Capital, mas nunca aceitou.

- Lá há muita interferência de cima e aqui se trabalha mais limpo, mais tranqüilo. Tem tipo que aceita interferência mas eu não me incluo nesse grupo. Tenho sangue grosso. Prefiro ensinar moços e trabalhar com gente mais pura.

Um dia, quando ainda treinava o Mogiana, apareceu um garoto dizendo que estava ali mandado por seu pai. Ele queria que Agnelli ensinasse tudo sobre futebol e tudo sobre a malandragem da profissão para o garoto. Agnelli não gostou de como a coisa foi colocada.

- Peguei dez mil-réis, uma daquelas notas grandonas, mandei o garoto ir comprar um maço de cigarros para mim e disse a ele para fugir com o cigarro e com o troco. “Depois diga ao seu pai que essa é a única malandragem que te posso ensinar”.

Para ele é mais fácil ser técnico no interior do que na Capital, em time grande. Acha que o Corinthians precisa ser campeão para o bem de todos; e não entende por que não deixam um time pequeno ganhar um título – sempre surgindo alguma confusão, alguma coisa que só em São Paulo ficam sabendo.

- Aqui a gente só luta para não ser o último e, fugindo disso, tudo está bom. Lá é diferente. Todos querem ser o primeiro e não percebem que apenas um pode ser. O Corinthians e o Palmeiras movimentam o interior quando jogam aqui. Trazem tanta gente de fora que acabam com a comida dos restaurantes, com as cervejinhas; gente que suja a rua, mas gente que acaba sendo importante porque deixa rendas para cobrir três ou quatro meses de folha de pagamento. E gozado é que todo mundo sabe disso, sabe como fazer o Corinthians campeão, mas ninguém toma providência.

O dono da casa

Em 1957 Agnelli colocou o Botafogo na divisão especial, em 58 foi terceiro colocado com a Ponte Preta, em 59 repetiu a dose com a Ferroviária de Araraquara e em 60 o Botafogo terminou o turno em primeiro lugar, ao lado do Santos. O famoso time da Ferroviária tinha Rosã, Antoninho, Dirceu, Dudu, Bazzani, Amaral, Beni e outros, foi formado por ele. E houve uma época em que Agnelli merecia crônicas e comentários inteiros dos melhores comentaristas de São Paulo. Sempre que o via entrar em campo com suas calças de linho branco e seu chapéu de bico quebrado, Mário Morais repetia que lá ia o pai de Pedro Álvares Cabral. E completava dizendo que aquele caipira argentino sabia tudo da profissão.

- Na Ferroviária, sempre que eu tentava transmitir alguma coisa ao Bazzani, ele dava o contra. Antes mesmo que eu acabasse de dizer o que queria, já estava falando o que não ia dar certo. Era um bom menino mas estava de peito cheio porque estudava e queria mostrar-se bem capacitado. Nunca me importei com aquilo. Sempre passava numa farmácia, comprava uns cremes, uns perfumes. E ia à casa da Inês, que era sua noiva. Dava-lhe o presente, batíamos um papo e ela sempre acabava perguntando como iam as coisas. Eu falavam que iam mal, ela queria saber por quê, eu dizia que o Bazzani não estava concordando com isso e com aquilo. E logo ia embora. No dia seguinte ou dois dias depois, o Bazzani sempre chegava para mim e dizia que tinha pensado bastante no assunto, sobre nossa conversa. E acabava dizendo que eu tinha razão, que ele tinha mudado de idéia. Eu sou quase seu padrinho de casamento.

Agnelli, talvez por só ter trabalhado no interior e há alguns anos estar apenas como gerente da concentração do Botafogo, acha que não se deve deixar jogador ficar pensando muito. Eles logo ficam com a cabeça cheia de bobagens, tristes, querendo ver a família, sentindo saudades da noiva, inventando uma dorzinha aqui ou ali. E, diz Agnelli, se lhes dão licença para ver a mãe, eles passam todos os dias na casa da noiva ou da outra.

- Da mãe e da família eles só se lembram mesmo é quando estão duros ou com a pena quebrada. Num dos times que treinei tinha um lateral chamado Carrapato. Uma vez o time foi viajar de trem e, quando passamos por um local onde estavam velas acesas e uma cruz, um passageiro, por não vê-lo fazer o sinal da cruz, perguntou se ele era ateu. O Carrapato disse que não. Que seu nome era Carrapato e que ele era lateral-esquerdo marcador de ponta-direita. É por gente assim que até hoje não deixo jogador pensar por muito tempo.

- Eu já tive jogador que sonhava casar com a Greta Garbo. Uma vez ele foi ver um filme em que ela era a estrela e depois ficou na porta do cinema esperando-a sair. Falei que aquilo era impossível, que ela não poderia casar-se com ele porque não o conhecia nem morava aqui no Brasil. Ele respondeu: “É, mas pelo menos eu mostrei bom gosto. Você viu como ela é boa?”.

Amigo dos técnicos mais novos do interior e incentivador dos jogadores que estão aparecendo, Agnelli já ensinou a muita gente.

- O João Avelino vive falando que eu sou o professor, o cara certo, o pai dos técnicos do interior. Eu gosto dele mas acho que ele fala demais. Um  dia ele estava falando mais do que a boca e eu, depois de muito tempo de paciência, entrei com esta: “Você realmente me escuta? Atende o que eu digo e quer me agradecer por tudo isso? Então cale a boca e me deixe tranqüilo, como se fosse um surdinho, pelo menos por uns cinco minutos”.

Lançou Dudu convencendo Nei Blanco, o mais velho e dono do time, de que não devia xingá-lo, criticá-lo quando errasse, e aproveitando uma pneumonia que acabou com a carreira de Dirceu. Já perdeu a conta de quantos jogadores sentaram ao seu lado para ouvir seus conselhos, como se estivessem um confessionário.

- O negrinho ficou sem camisa no sereno e eu avise que podia se resfriar. Ele riu, disse que era gaúcho, negro duro na queda, cabra macho, mas não adiantou nada disso. Pegou a pneumonia e perdeu lugar no time. Acabou indo para o México.

É sócio benemérito da Ponte Preta, amigo da família Lucarelli e quando vai a Campinas dorme no próprio estádio.

- Uma vez – entre as várias que já fui chamado – estive lá para ajudar o time num jogo contra o Guarani. O Cilinho tinha conversado com o Omar Cardoso, que arranjou um aparelhinho com dois microfones para ele ficar lá em cima vendo o jogo e transmitindo ordens para o Maurinho, que ficou no banco. Uma hora lá o Cilinho mandou que o Maurinho tirasse o Alan e colocasse o Ditinho. Ele, não sei por quê, não gostava do Manfrini. Aí eu perguntei ao Maurinho o que ele queria, fiquei sabendo e mandei que tirasse mesmo o Alan, mas que colocasse o Manfrini. O Manfrini fez o gol, ganhamos o jogo e eu saí correndo para a rodoviária. Se o Cilinho me pegasse, teria me dado uma surra. Ele é meio bravo. Depois me mandaram um bicho, mas naquele dia não dava para ficar esperando por ele.

Palpite infeliz

Dizem que Agnelli usa chapéu para ter melhor visão do jogo, concentrando-se no que está acontecendo sem se importar com a torcida, com o que se passa fora do campo. Mas ele nega, dizendo-se que é apenas para evitar o sol quente do interior e também uma homenagem ao amigo Carlos Gardel. Gosta de que o jogador seja sincero e que nunca apele para a mentira. Acha que técnico não tem nada para ensinar a quem é craque, mas que pode ajudar muito orientando-o sobre como cuidar da parte fisiológica.

- Uma vez apanhei um garoto que vivia lendo revistas impróprias para menores e indo muitas vezes ao banheiro. Mandei que lhe fizessem todos os tipos de exames e resolvi aconselhá-lo a conhecer moças de verdade, não apenas aquelas das fotografias. Não lhe faria mal algum. Ele foi e três dias depois, por muito azar, apareceu com uma pequena infecção.

Com 62 anos, mais de metade metido no nosso interior, Agnelli agora é gerente da concentração do Botafogo, mas logo, logo um dos muitos times daquela região – que acreditam no seu trabalho – perder alguns pontinhos além do esperado e pensar em recuperá-los prontamente, ele será lembrado. Com seu pigarro, seu chapéu de bico quebrado e sua picardia de milongueiro.

Publicado originalmente na revista Placar 262, em 4 de abril de 1975

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