terça-feira, 11 de setembro de 2012

O cinema popular de Clery Cunha



Homem de irrestrita versatilidade, Clery Cunha tornou-se um dos mais célebres personagens do Cinema da Boca. O rádio e a televisão foram os órgãos formadores deste empenhado realizador. Os dois veículos estão presentes em diversos de seus longas-metragens, especialmente nas fitas policiais. O jornalismo policial transmitido para as classes baixas foram fundamentais na formação do diretor. Isso fica evidente quando Clery convidou o radialista Gil Gomes, então um astro do veículo para ser o narrador de O Outro Lado do Crime. Com produção do jornalista Moracy do Val, o longa contou com a presença do ator José Lewgoy, nome conhecido das chanchadas e novelas brasileiras.

Clery iniciou-se na sétima arte como coadjuvante. Fez filmes com Carlos Coimbra, Ary Fernandes, Edward Freund. Mas foi o austríaco Konstantin Tkachenko foi a primeira pessoa a dar chance ao jovem goiano na área de direção. Neurótico de guerra e um tanto turrão, o europeu não fazia ideia que estava iniciando a carreira de um dos mais audaciosos diretores paulistas de todos os tempos. Em 1972, Cunha conseguiu concluir seu primeiro longa-metragem: Os Desclassificados. A fita tratava de um tema polêmico para a época: um jovem que se apaixona pela própria madrasta. O elenco foi encabeçado por atores de renome como Hélio Souto e Joana Fomm ajudaram no bom desempenho da produção nos cinemas. Lançado em duas das principais salas do centro de São Paulo como o Art Palácio e Rio Branco, Desclassificados conseguiu encontrar um público próprio. As publicidades da época exploraram moças em trajes sumários. A Censura deixou o filme liberado somente para maiores de 18 anos. A propaganda era interessante: “Nas bocas, cortiços e vielas...nas mansões luxuosas...nas boates, restaurantes e “inferninhos”...ou no meio da multidão”.

O cinema policial de Clery é diferente das produções do mesmo gênero do Cinema Novo como Assalto ao Trem Pagador (1962) de Roberto Farias. Com influência do cinema internacional, os personagens de Farias são vítimas da sociedade. Moram em favelas e querem a ascendência social. O crime acontece como algo justificável. Os personagens de produções de Clery Cunha, Francisco Cavalcanti e Tony Vieira não. Os bandidos são maus por sua própria natureza. Não são nunca vítimas da sociedade. A influência dos diretores cinema-novistas são filmes esquerdistas de diretores internacionais.

Os cineastas da Boca paulista são inspirados pela rua. São pessoas sem nenhuma formação acadêmica ou formal. Dessa maneira, os programas populares de rádio e televisão exerceram decisiva importância nessas pessoas. Sem contar os jornais popularescos como o Notícias Populares.

No ano seguinte, Cunha dirigiria uma fita livre inspirada numa novela de sucesso da TV Excelsior paulista (A Pequena Orfã). O ator Dionísio Azevedo e o cantor Noite Ilustrada fazem participações importantes. Apesar da boa produção, percebe-se que Clery nasceu mesmo para fazer filmes policiais. 
 
Em 1974, o realizador goiano desenvolve um de seus melhores trabalhos: Pensionato de Mulheres. O filme trata de uma pensão para jovens que chegam para morar na cidade grande. Seus dramas e suas vivências. O corajoso filme trata de aborto, machismo e solidão urbana em plena Ditadura Militar. Se esse trabalho fosse dirigido por qualquer realizador estrangeiro, teria recebido prêmios em diversos festivais. A veterana Silvana Lopes interpreta a dona da pensão feminina com maestria. No ano seguinte, Clery dirige uma comédia (Eu Faço...Elas Sentem) e em seguida um faroeste com a dupla sertaneja Léo Canhoto e Robertinho (Chumbo Quente). Apesar dos bons resultados de bilheteria, não são trabalhos tão autorais de Cunha. No final da década de 1970, Clery retorna para o gênero que havia adotado no início de sua carreira cinematográfica: o policial. O Outro Lado do Crime é um longa-metragem inventivo e bem dirigido.

O caprichado roteiro é assinado pelo próprio diretor e pelo ator Jesse James Costa, colaborador do cineasta goiano em inúmeros trabalhos. Narrado por Gil Gomes, o filme conta a história de um marido (José Lewgoy) que planeja a morte da própria esposa para ganhar rios de dinheiro. Feito sem grande orçamento e com inventividade, O Outro Lado é um dos mais instigantes exemplares do filme policial nacional. Embora explore certo erotismo das jovens atrizes em suas películas, Clery é um realizador do cinema de gênero. Em 1980, o realizador lança seu filme mais conhecido: Joelma 23º Andar. Trata-se de um dos primeiros longas-metragens nacionais baseado numa obra literária espírita. A fita conta a história real de um incêndio que aconteceu no edifício Joelma, no centro de São Paulo. O acidente resultou na morte de 174 pessoas. A obra cinematográfica obteve sucesso de público e elogio dos críticos.

O filme posterior de Clery Cunha é mais um policial: O Rei da Boca. Protagonizado pelo ator Roberto Bonfim, o longa-metragem conta a trajetória do personagem ficcional Pedro Cipriano da Silva. De homem simples a um dos líderes da bandidagem paulista. Prostituição de menores e tráfico de drogas são alguns dos crimes em que o protagonista se envolve. O elenco feminino é encabeçado por Claudete Joubert e Zilda Mayo. O interessante da obra é que O Rei da Boca mostra a prostituição sem romantismo. As moças atendem os clientes de maneira rápida, sem nenhum prazer. Apenas por motivos econômicos.

A década de 1980 é considerada o período final das utopias. A segunda metade do período também foi meio cruel para o cinema brasileiro. O cinema de gênero feito por artesãos como Alex Prado, Clery Cunha, Francisco Cavalcanti e Tony Vieira perdeu espaço. As salas que passavam este tipo de película fecharam. Em 1987, Clery codirigiu com o amigo Francisco Cavalcanti seu último filme para o cinema: Horas Fatais- Troca de Cabeças. Desde então, Clery vem tentando terminar mais um longa-metragem. Um dos seus projetos atuais é inspirado nas histórias policiais da Cidade Tiradentes, bairro periférico da Zona Leste de São Paulo.

O cinema brasileiro perde quando não produz filmes de gênero. Perde também por não ter realizadores autodidatas. Uma cinematografia rica é construída por pessoas com diferentes formações. Clery Cunha é um realizador brasileiro por excelência. Ele e seus filmes merecem a nossa atenção.

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