Homem de irrestrita
versatilidade, Clery Cunha tornou-se um dos mais célebres personagens do Cinema
da Boca. O rádio e a televisão foram os órgãos formadores deste empenhado
realizador. Os dois veículos estão presentes em diversos de seus
longas-metragens, especialmente nas fitas policiais. O jornalismo policial
transmitido para as classes baixas foram fundamentais na formação do diretor.
Isso fica evidente quando Clery convidou o radialista Gil Gomes, então um astro
do veículo para ser o narrador de O Outro
Lado do Crime. Com produção do jornalista Moracy do Val, o longa contou com
a presença do ator José Lewgoy, nome conhecido das chanchadas e novelas
brasileiras.
Clery iniciou-se na
sétima arte como coadjuvante. Fez filmes com Carlos Coimbra, Ary Fernandes,
Edward Freund. Mas foi o austríaco Konstantin Tkachenko foi a primeira pessoa a
dar chance ao jovem goiano na área de direção. Neurótico de guerra e um tanto
turrão, o europeu não fazia ideia que estava iniciando a carreira de um dos
mais audaciosos diretores paulistas de todos os tempos. Em 1972, Cunha conseguiu
concluir seu primeiro longa-metragem: Os
Desclassificados. A fita tratava de um tema polêmico para a época: um jovem
que se apaixona pela própria madrasta. O elenco foi encabeçado por atores de
renome como Hélio Souto e Joana Fomm ajudaram no bom desempenho da produção nos
cinemas. Lançado em duas das principais salas do centro de São Paulo como o Art
Palácio e Rio Branco, Desclassificados
conseguiu encontrar um público próprio. As publicidades da época exploraram
moças em trajes sumários. A Censura deixou o filme liberado somente para
maiores de 18 anos. A propaganda era interessante: “Nas bocas, cortiços e
vielas...nas mansões luxuosas...nas boates, restaurantes e “inferninhos”...ou
no meio da multidão”.
O cinema policial de
Clery é diferente das produções do mesmo gênero do Cinema Novo como Assalto ao Trem Pagador (1962) de
Roberto Farias. Com influência do cinema internacional, os personagens de Farias
são vítimas da sociedade. Moram em favelas e querem a ascendência social. O
crime acontece como algo justificável. Os personagens de produções de Clery
Cunha, Francisco Cavalcanti e Tony Vieira não. Os bandidos são maus por sua
própria natureza. Não são nunca vítimas da sociedade. A influência dos
diretores cinema-novistas são filmes esquerdistas de diretores internacionais.
Os cineastas da Boca
paulista são inspirados pela rua. São pessoas sem nenhuma formação acadêmica ou
formal. Dessa maneira, os programas populares de rádio e televisão exerceram
decisiva importância nessas pessoas. Sem contar os jornais popularescos como o Notícias Populares.
No ano seguinte, Cunha dirigiria uma fita livre inspirada numa novela de sucesso da TV Excelsior paulista (A Pequena Orfã). O ator Dionísio Azevedo e o cantor Noite Ilustrada fazem participações importantes. Apesar da boa produção, percebe-se que Clery nasceu mesmo para fazer filmes policiais.
Em 1974, o realizador
goiano desenvolve um de seus melhores trabalhos: Pensionato de Mulheres. O filme trata de uma pensão para jovens que
chegam para morar na cidade grande. Seus dramas e suas vivências. O corajoso
filme trata de aborto, machismo e solidão urbana em plena Ditadura Militar. Se
esse trabalho fosse dirigido por qualquer realizador estrangeiro, teria
recebido prêmios em diversos festivais. A veterana Silvana Lopes interpreta a
dona da pensão feminina com maestria. No ano seguinte, Clery dirige uma comédia
(Eu Faço...Elas Sentem) e em seguida
um faroeste com a dupla sertaneja Léo Canhoto e Robertinho (Chumbo Quente). Apesar dos bons
resultados de bilheteria, não são trabalhos tão autorais de Cunha. No final da
década de 1970, Clery retorna para o gênero que havia adotado no início de sua
carreira cinematográfica: o policial. O
Outro Lado do Crime é um longa-metragem inventivo e bem dirigido.
O caprichado roteiro é
assinado pelo próprio diretor e pelo ator Jesse James Costa, colaborador do
cineasta goiano em inúmeros trabalhos. Narrado por Gil Gomes, o filme conta a
história de um marido (José Lewgoy) que planeja a morte da própria esposa para
ganhar rios de dinheiro. Feito sem grande orçamento e com inventividade, O Outro Lado é um dos mais instigantes
exemplares do filme policial nacional. Embora explore certo erotismo das jovens
atrizes em suas películas, Clery é um realizador do cinema de gênero. Em 1980,
o realizador lança seu filme mais conhecido: Joelma 23º Andar. Trata-se de um dos primeiros longas-metragens
nacionais baseado numa obra literária espírita. A fita conta a história real de
um incêndio que aconteceu no edifício Joelma, no centro de São Paulo. O
acidente resultou na morte de 174 pessoas. A obra cinematográfica obteve
sucesso de público e elogio dos críticos.
O filme posterior de
Clery Cunha é mais um policial: O Rei da
Boca. Protagonizado pelo ator Roberto Bonfim, o longa-metragem conta a
trajetória do personagem ficcional Pedro Cipriano da Silva. De homem simples a
um dos líderes da bandidagem paulista. Prostituição de menores e tráfico de
drogas são alguns dos crimes em que o protagonista se envolve. O elenco
feminino é encabeçado por Claudete Joubert e Zilda Mayo. O interessante da obra
é que O Rei da Boca mostra a
prostituição sem romantismo. As moças atendem os clientes de maneira rápida,
sem nenhum prazer. Apenas por motivos econômicos.
A década de 1980 é
considerada o período final das utopias. A segunda metade do período também foi
meio cruel para o cinema brasileiro. O cinema de gênero feito por artesãos como
Alex Prado, Clery Cunha, Francisco Cavalcanti e Tony Vieira perdeu espaço. As salas
que passavam este tipo de película fecharam. Em 1987, Clery codirigiu com o
amigo Francisco Cavalcanti seu último filme para o cinema: Horas Fatais- Troca de Cabeças. Desde então, Clery vem tentando
terminar mais um longa-metragem. Um dos seus projetos atuais é inspirado nas
histórias policiais da Cidade Tiradentes, bairro periférico da Zona Leste de
São Paulo.
O cinema brasileiro perde
quando não produz filmes de gênero. Perde também por não ter realizadores
autodidatas. Uma cinematografia rica é construída por pessoas com diferentes
formações. Clery Cunha é um realizador brasileiro por excelência. Ele e seus
filmes merecem a nossa atenção.
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