domingo, 9 de dezembro de 2012

Cantinho do Marcos Rey: Fantoches!


Muito cedo deixei a quitinete para tomar café com leite no bar. Meu pai dormia sem produzir o menor ruído. Era como um homem de papelão recortado, um display produzido pela JKL. Se o levasse debaixo do braço, talvez nem notaria. Repeti a xícara de café com leite, o que raramente fazia. Estava com alguma ressaca do sábado. Com tanta coisa na cabeça não suportaria regressar à quitinete. Resolvi descer a avenida. O ato de andar reaproximava as emoções da véspera. No quarteirão seguinte me vi deitado sobre Dulce e revi seus olhos fixos, com aquele brilho animal. Consegui, inclusive, capturar uma fração do cheiro bárbaro da tarde. Tive a impressão de que, se corresse, alcançaria totalmente a realidade do sábado, voltaria à cama triunfal de Dulce. Como se acometido da neurose de andar, andar, cheguei ao fim da avenida, atravessei a praça Marechal e fui ao Pacaembu. Quando voltei, meu pai já estava vestido e fomos almoçar. Ele gostava de um restaurante da avenida, o Papai, onde ás vezes encontrava profissionais de seu ofício. Era um homem rotineiro e, por isso, sempre reconhecido por garçons, jornaleiros e engraxates. Frequentou durante décadas a mesma barbearia, atendido pelo mesmo profissional. A vida para ele era apenas um circuito, com alguns pit stops, que percorria diariamente. Lia um único jornal, só ouvia a Rádio Record e somente ia a cinemas para rever velhos sucessos como ...E o vento levou e Ben Hur.

Retirado do romance Fantoches! de autoria de Marcos Rey

Um comentário:

antonico disse...

Marcos Rey é tudo de bom. O cara escreveu uma quantidade incrível de títulos e só com muito esforço pode-se dizer que tem algo descartável na sua produção literária. Belo post Matheus !