Muito cedo deixei a
quitinete para tomar café com leite no bar. Meu pai dormia sem produzir o menor
ruído. Era como um homem de papelão recortado, um display produzido pela JKL.
Se o levasse debaixo do braço, talvez nem notaria. Repeti a xícara de café com
leite, o que raramente fazia. Estava com alguma ressaca do sábado. Com tanta
coisa na cabeça não suportaria regressar à quitinete. Resolvi descer a avenida.
O ato de andar reaproximava as emoções da véspera. No quarteirão seguinte me vi
deitado sobre Dulce e revi seus olhos fixos, com aquele brilho animal.
Consegui, inclusive, capturar uma fração do cheiro bárbaro da tarde. Tive a
impressão de que, se corresse, alcançaria totalmente a realidade do sábado,
voltaria à cama triunfal de Dulce. Como se acometido da neurose de andar,
andar, cheguei ao fim da avenida, atravessei a praça Marechal e fui ao
Pacaembu. Quando voltei, meu pai já estava vestido e fomos almoçar. Ele gostava
de um restaurante da avenida, o Papai, onde ás vezes encontrava profissionais
de seu ofício. Era um homem rotineiro e, por isso, sempre reconhecido por
garçons, jornaleiros e engraxates. Frequentou durante décadas a mesma
barbearia, atendido pelo mesmo profissional. A vida para ele era apenas um
circuito, com alguns pit stops, que percorria diariamente. Lia um único jornal,
só ouvia a Rádio Record e somente ia a cinemas para rever velhos sucessos como
...E o vento levou e Ben Hur.
Retirado do romance Fantoches! de autoria de Marcos Rey
Um comentário:
Marcos Rey é tudo de bom. O cara escreveu uma quantidade incrível de títulos e só com muito esforço pode-se dizer que tem algo descartável na sua produção literária. Belo post Matheus !
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