quinta-feira, 18 de julho de 2013

O encontro da estrela com o figurante



Por Tony de Sousa



O problema de se fazer um filme é que você nunca se livra das pessoas que participaram dele. Principalmente dos atores e figurantes. Sou um cineasta que de tempos em tempos faz um filme. De cinco em cinco anos. De dez em dez anos. Cada vez o tempo vai esticando mais. Mas mantenho meu escritoriozinho na Rua do Triunfo sempre em ordem. Já me quebrou muitos galhos. Nos tempos das vacas magras, quando as mulheres que me sustentam me expulsam de casa, o escritório é o meu refúgio. Durmo no meio das latas, respirando o cheio de nitrato. Sim porque sou do tempo que se fazia filmes em películas. Nada de vídeo, digital, essas baboseiras modernas que têm aparecido. O escritório é relativamente grande. É o tamanho de um quitinete daqueles antigos que são maiores que os apartamentos de um quarto de hoje. Tem uma recepçãozinha com um pequeno sofá e uma mesa com telefone. Atrás da mesa fica a porta da minha sala. Depois tem um pequeníssimo banheiro que era maior mas dividi em dois para ficar um dentro da minha sala. E ao fundo uma pequena área de serviço com fogareiozinho para esquentar marmita, fazer cafezinho, etc. Minha sala é relativamente grande. Tem até janela com vista para a Rua do Triunfo. O problema é que está entulhada de latas de filmes. Fazer o quê? Minha mesa é grande e vive sempre cheia de papéis e pastas com projetos, orçamentos, fotos de testes, essas coisas todas. Parece meio caótica, mas eu entendo. Tenho uma cadeira confortável comprada na época das vacas gordas. O tempo das vacas gordas é o tempo em que você está filmando. Agora por exemplo, estou vivendo o tempo de vacas magras. Tive que mandar a mulher, que me ajudava aqui, embora. Ela fazia de tudo um pouco. Atendia telefone, fazia faxina, servia cafezinho...Agora eu mesmo tenho que fazer essas coisas todas. Mas o pior de tudo é atender o telefone. Ficar falando com os chatos que não param de ligar para saber quando vou começar uma nova fita. Eu tento dispensá-los logo, mas tem uns que insistem em prolongar a conversa. “Você não sabe quem está começando alguma fita?” “Não sei e tenho raiva de quem sabe”. Com alguns caras, você tem que falar assim. Senão eles ficam te alugando o dia inteiro. E como eu falava no início, existem aqueles que fizeram alguma figuração em um filme seu ou algum pequeno papel que te ligam sempre querendo saber como poderão adquirir uma cópia do filme. Na verdade, é uma maneira disfarçada de perguntar se você não tem uma cópia para arrumar para ele. Fazia tempo que duas dessas figuras andavam me ligando e eu sempre dando um jeito de escapar. Agora como sou eu mesmo que atendo o telefone, por mais subterfúgios que invente uma hora me distraio e a pessoa descobre quem está falando. Foi assim que dois figurantes de um filme que fiz há muito tempo me pegaram no pulo. Um dado curioso dessa história é que um desses dois figurantes é uma atriz que atualmente está protagonizando uma novela numa grande emissora de televisão. E a causa dela querer conversar comigo é para tentar me convencer a mudar a edição do filme e tirar a cena onde ela aparece como figurante. Juro que nunca me dei conta que ela tinha participado da tal cena, se não fosse a minha diretora de produção me falar um dia: “Sabia que uma figurante de um filme seu virou estrela da novela?” Só então é que fui dar uma olhada, e para ser sincero, a aparição é tão rápida, que só assistindo a cena quadro a quadro é possível perceber que é ela. Mesmo assim quer que eu modifique a edição. Vê se pode. Já o outro figurante me contou que quer mostrar para os amigos e familiares que participou da cena de um filme junto com uma atriz que hoje é estrela. Disse que ninguém acredita que isso seja verdade.

Marquei o encontro dos dois no mesmo horário de propósito. Queria dar uma canseira neles para ver se paravam de me encher o saco. Mas o figurante chegou antes. Mandei-o entrar. Eu tinha desencavado uma cópia do filme em questão, uma VHS bem vagabunda e como Diva Leone, a tal atriz que agora era estrela, ainda não havia dado o ar da graça, fiquei fazendo hora com o figurante, ouvindo o lenga lenga todo que ele ia me contando. Que finalmente ia poder mostrar o filme pros amigos e provar que tinha feito um trabalho no cinema do qual se orgulhava. Que q uando se aposentasse iria dedicar-se em tempo integral à carreira de ator. Que sua inspiração era o ator Jofre Soares que começou uma carreira em idade já avançada, etc. etc. etc. e quando quis contar o enredo de um filme cujo roteiro ele estava escrevendo, dei um jeito de dispensá-lo. Enquanto conversávamos ouvi o barulho de alguém chegando na recepção e tinha quase certeza que era a tal da Diva Leone. Por exigência minha, ela tinha que aparecer no escritório sozinha. Nada de advogado, guarda-costas, namorado e sei lá mais o quê. Mesmo sabendo que ela poderia estar lá na recepção, decidi dar um tempo e deixá-la esperar mais um pouco. Despedi-me do figurante a minha mesa e pedi que fechasse a porta ao sair. Acontece que quando ele saiu e deu de cara com a estrela, que tentava disfarçar o rosto com um óculos escuros e um lenço na cabeça, não se conteve e gritou alto: “Diva Leone, quanto tempo!” Ouvi o grito da minha mesa, onde permanecia sentado. Por curiosidade levantei-me e fui em direção à porta. Ele deve ter dado um jeito de abraçá-la e beijá-la demoradamente pois enquanto eu me aproximava não ouvi a voz de nenhum dos dois. Até que Diva falou ansiosa:

“Seu Antoninho, podemos conversar noutro lugar?”

Ela o estava confundindo comigo. Juro que não planejei essa cena. Foi tudo obra do acaso. O figurante demorou um pouco para se recuperar da confusão, mas assim que o fez já tinha avaliado a vantagem de ter sido confundido comigo e respondeu rápido:

“Claro! Aonde?”

“No meu carro. Ele está estacionado lá embaixo na entrada do prédio”, ela respondeu.

“Então vamos”.

Embora eu só tenha ouvido o diálogo deles imaginei a cena. Os dois ansiosos para sair logo dali. Ele com medo de ser pego na mentira e ela por achar que ali não era lugar para uma estrela estar. E o figurante ainda teve a manha de encostar a porta na saída.

Fui correndo ater a janela que dava para Rua do Triunfo e vi que lá embaixo, na entrada do prédio, havia realmente um Mercedes estacionado, com um segurança tipo armário do lado de fora aguardando. Atrás do Mercedes havia uma Van também estacionada. Como era um sábado à tarde, a rua estava tranquila e quase não havia movimento. Não demorou e o figurante e a estrela apareceram na entrada do prédio e seguiram na direção do carro. Não sei porque tive a nítida sensação de que estava vendo um lobo em pele de cordeiro conduzindo sua vítima para o holocausto. E não estava errado. Outros dois armários saíram rapidamente de dentro da Van, pegaram o figurante e o jogaram dentro dela como se joga um boneco. Fecharam as portas e saíram em disparada. A estrela tranquilamente, deu a volta pela frente do Mercedes, ela mesma abriu a porta e entrou. Enquanto isso o primeiro armário já estava no volante. Deu a partida e saiu sem pressa.

Lembrei-me de que um amigo havia alertado, quando a estrela começou a me importunar para cortar a cena, que ela tinha ligações com gente da pesada, que eram agora responsáveis pela sua “segurança” e talvez usasse métodos violentos para me intimidar. Não sei o que fizeram com o figurante. Ao que tudo indica, devem ter chegado a um bom entendimento, pois durante muito tempo nenhum dos dois me ligou mais. Por via das dúvidas, fechei meu escritório e sumi de circulação por uns tempos.

Retirado de: Sousa, Tony. O Perseguidor de Fantasmas. São Paulo: LCTE Editora, 2011.

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