Por Tony de Sousa
O problema de se fazer
um filme é que você nunca se livra das pessoas que participaram dele.
Principalmente dos atores e figurantes. Sou um cineasta que de tempos em tempos
faz um filme. De cinco em cinco anos. De dez em dez anos. Cada vez o tempo vai
esticando mais. Mas mantenho meu escritoriozinho na Rua do Triunfo sempre em
ordem. Já me quebrou muitos galhos. Nos tempos das vacas magras, quando as
mulheres que me sustentam me expulsam de casa, o escritório é o meu refúgio.
Durmo no meio das latas, respirando o cheio de nitrato. Sim porque sou do tempo
que se fazia filmes em películas. Nada de vídeo, digital, essas baboseiras
modernas que têm aparecido. O escritório é relativamente grande. É o tamanho de
um quitinete daqueles antigos que são maiores que os apartamentos de um quarto
de hoje. Tem uma recepçãozinha com um pequeno sofá e uma mesa com telefone.
Atrás da mesa fica a porta da minha sala. Depois tem um pequeníssimo banheiro
que era maior mas dividi em dois para ficar um dentro da minha sala. E ao fundo
uma pequena área de serviço com fogareiozinho para esquentar marmita, fazer
cafezinho, etc. Minha sala é relativamente grande. Tem até janela com vista para
a Rua do Triunfo. O problema é que está entulhada de latas de filmes. Fazer o
quê? Minha mesa é grande e vive sempre cheia de papéis e pastas com projetos,
orçamentos, fotos de testes, essas coisas todas. Parece meio caótica, mas eu
entendo. Tenho uma cadeira confortável comprada na época das vacas gordas. O
tempo das vacas gordas é o tempo em que você está filmando. Agora por exemplo,
estou vivendo o tempo de vacas magras. Tive que mandar a mulher, que me ajudava
aqui, embora. Ela fazia de tudo um pouco. Atendia telefone, fazia faxina,
servia cafezinho...Agora eu mesmo tenho que fazer essas coisas todas. Mas o
pior de tudo é atender o telefone. Ficar falando com os chatos que não param de
ligar para saber quando vou começar uma nova fita. Eu tento dispensá-los logo,
mas tem uns que insistem em prolongar a conversa. “Você não sabe quem está
começando alguma fita?” “Não sei e tenho raiva de quem sabe”. Com alguns caras,
você tem que falar assim. Senão eles ficam te alugando o dia inteiro. E como eu
falava no início, existem aqueles que fizeram alguma figuração em um filme seu
ou algum pequeno papel que te ligam sempre querendo saber como poderão adquirir
uma cópia do filme. Na verdade, é uma maneira disfarçada de perguntar se você
não tem uma cópia para arrumar para ele. Fazia tempo que duas dessas figuras
andavam me ligando e eu sempre dando um jeito de escapar. Agora como sou eu
mesmo que atendo o telefone, por mais subterfúgios que invente uma hora me
distraio e a pessoa descobre quem está falando. Foi assim que dois figurantes
de um filme que fiz há muito tempo me pegaram no pulo. Um dado curioso dessa
história é que um desses dois figurantes é uma atriz que atualmente está
protagonizando uma novela numa grande emissora de televisão. E a causa dela
querer conversar comigo é para tentar me convencer a mudar a edição do filme e
tirar a cena onde ela aparece como figurante. Juro que nunca me dei conta que
ela tinha participado da tal cena, se não fosse a minha diretora de produção me
falar um dia: “Sabia que uma figurante de um filme seu virou estrela da novela?”
Só então é que fui dar uma olhada, e para ser sincero, a aparição é tão rápida,
que só assistindo a cena quadro a quadro é possível perceber que é ela. Mesmo
assim quer que eu modifique a edição. Vê se pode. Já o outro figurante me
contou que quer mostrar para os amigos e familiares que participou da cena de
um filme junto com uma atriz que hoje é estrela. Disse que ninguém acredita que
isso seja verdade.
Marquei o encontro dos
dois no mesmo horário de propósito. Queria dar uma canseira neles para ver se
paravam de me encher o saco. Mas o figurante chegou antes. Mandei-o entrar. Eu
tinha desencavado uma cópia do filme em questão, uma VHS bem vagabunda e como
Diva Leone, a tal atriz que agora era estrela, ainda não havia dado o ar da
graça, fiquei fazendo hora com o figurante, ouvindo o lenga lenga todo que ele
ia me contando. Que finalmente ia poder mostrar o filme pros amigos e provar
que tinha feito um trabalho no cinema do qual se orgulhava. Que q uando se aposentasse iria dedicar-se em tempo
integral à carreira de ator. Que sua inspiração era o ator Jofre Soares que
começou uma carreira em idade já avançada, etc. etc. etc. e quando quis contar
o enredo de um filme cujo roteiro ele estava escrevendo, dei um jeito de
dispensá-lo. Enquanto conversávamos ouvi o barulho de alguém chegando na recepção
e tinha quase certeza que era a tal da Diva Leone. Por exigência minha, ela
tinha que aparecer no escritório sozinha. Nada de advogado, guarda-costas,
namorado e sei lá mais o quê. Mesmo sabendo que ela poderia estar lá na
recepção, decidi dar um tempo e deixá-la esperar mais um pouco. Despedi-me do
figurante a minha mesa e pedi que fechasse a porta ao sair. Acontece que quando
ele saiu e deu de cara com a estrela, que tentava disfarçar o rosto com um
óculos escuros e um lenço na cabeça, não se conteve e gritou alto: “Diva Leone,
quanto tempo!” Ouvi o grito da minha mesa, onde permanecia sentado. Por
curiosidade levantei-me e fui em direção à porta. Ele deve ter dado um jeito de
abraçá-la e beijá-la demoradamente pois enquanto eu me aproximava não ouvi a
voz de nenhum dos dois. Até que Diva falou ansiosa:
“Seu Antoninho, podemos
conversar noutro lugar?”
Ela o estava
confundindo comigo. Juro que não planejei essa cena. Foi tudo obra do acaso. O
figurante demorou um pouco para se recuperar da confusão, mas assim que o fez
já tinha avaliado a vantagem de ter sido confundido comigo e respondeu rápido:
“Claro! Aonde?”
“No meu carro. Ele está
estacionado lá embaixo na entrada do prédio”, ela respondeu.
“Então vamos”.
Embora eu só tenha
ouvido o diálogo deles imaginei a cena. Os dois ansiosos para sair logo dali.
Ele com medo de ser pego na mentira e ela por achar que ali não era lugar para
uma estrela estar. E o figurante ainda teve a manha de encostar a porta na
saída.
Fui correndo ater a
janela que dava para Rua do Triunfo e vi que lá embaixo, na entrada do prédio,
havia realmente um Mercedes estacionado, com um segurança tipo armário do lado
de fora aguardando. Atrás do Mercedes havia uma Van também estacionada. Como
era um sábado à tarde, a rua estava tranquila e quase não havia movimento. Não
demorou e o figurante e a estrela apareceram na entrada do prédio e seguiram na
direção do carro. Não sei porque tive a nítida sensação de que estava vendo um
lobo em pele de cordeiro conduzindo sua vítima para o holocausto. E não estava
errado. Outros dois armários saíram rapidamente de dentro da Van, pegaram o
figurante e o jogaram dentro dela como se joga um boneco. Fecharam as portas e
saíram em disparada. A estrela tranquilamente, deu a volta pela frente do
Mercedes, ela mesma abriu a porta e entrou. Enquanto isso o primeiro armário já
estava no volante. Deu a partida e saiu sem pressa.
Lembrei-me de que um
amigo havia alertado, quando a estrela começou a me importunar para cortar a
cena, que ela tinha ligações com gente da pesada, que eram agora responsáveis
pela sua “segurança” e talvez usasse métodos violentos para me intimidar. Não
sei o que fizeram com o figurante. Ao que tudo indica, devem ter chegado a um
bom entendimento, pois durante muito tempo nenhum dos dois me ligou mais. Por
via das dúvidas, fechei meu escritório e sumi de circulação por uns tempos.
Retirado de: Sousa, Tony. O Perseguidor de Fantasmas. São Paulo: LCTE Editora, 2011.
Nenhum comentário:
Postar um comentário