domingo, 8 de setembro de 2013

Memórias de um Cafajeste- parte I: Os Cafajestes e a repercussão no Brasil



Por Jece Valadão

OS CAFAJESTES, O FILME

Em 1960, resolvi investir tudo o que tinha num filme baseado em um argumento criado por mim sobre dois malandros. Chamei o Miguel Torres, que era um roteirista maravilhoso, e o Ruy Guerra e disse: “Quero que vocês façam um roteiro com a história de um malandro pobre e outro rico que armam um esquema para fazer chantagem com a mulher de um banqueiro, que, por sua vez, é tio do malandro rico”.

O acordo entre os dois malandros era de que o rico ficaria com o dinheiro e o pobre, com o carro. Porque o carro, para o meu personagem, o cafajeste pobre, era a arma de trabalho.

Um cafajeste sem carro não é nada; tem de ter carro.

O filme foi um sucesso e criou definitivamente a imagem do cafajeste. A partir daí minha imagem foi sempre relacionada ao cafajeste.

(...)

A OUSADIA DO CAFAJESTE

Quando lancei Nelson Rodrigues no cinema, produzindo e atuando no filme Boca de Ouro, as pessoas me chamaram de louco, porque o Nelson era considera um autor de teatro maldito.

Levar o Nelson Rodrigues para o cinema era muito diferente de fazer uma peça dele no teatro. O público do teatro é muito menor e mais selecionado. O povão não vai ou, pelo menos, não ia ao teatro.

Já o cinema é outra coisa. Tem um público muito maior e mais misturado. E mesmo assim, no teatro já era uma loucura.

Cada vez que o Nelson Rodrigues lançava uma peça no Rio de Janeira era uma polêmica; o público se dividia: metade aplaudia, metade vaiava. Saiu até tiro na plateia na estreia de Perdoa-me por Te Traíres no Municipal.

Agora, eu era muito ousado, muito folgado. Apesar da censura que havia na época, capaz de proibir até a vinda do Balé de Bolshoi e da Ópera de Pequim, resolvi lançar Nelson Rodrigues no cinema.

Comprei os direitos de Boca de Ouro e produzi o filme. Foi um tremendo investimento e também um tremendo envolvimento. Por isso, a censura foi obrigada a engolir o filme.

Se bem que isso não era nenhuma novidade. Todos os meus filmes eram proibidos, e eu não queria nem saber. Ia para Brasília, discutia, fazia amizade com não sei quem, rolava para lá, rolava para cá. Aí a censura fazia um cortezinho aqui, outro ali. Eu tapeava, não cortava merda nenhuma e o filme passava; do jeito que eu queria. Era muita ousadia.

OUSADIA 2

Logo depois de lançar Nelson Rodrigues no cinema, resolvi lançar Plínio Marcos, que era outro autor proibido. Apesar de a peça Navalha na Carne estar proibida, comprei os direitos e resolvi filmar.

Aí o que eu fiz? Mandei o filme para o festival em Nova York. O filme ganhou o prêmio da crítica e a censura daqui não pode dizer nada. Quer dizer, o patrão lá aprovou, então tiveram de aprovar o filme aqui também.

Foi uma situação bastante absurda. A peça estava proibida no teatro, mas foi liberada no cinema.

Minha vida sempre foi assim. Eu não sei bem de onde vem essa ousadia; mas sempre apostei no que acredito.

(...)

OS CAFAJESTES: O FILME

A partir de vários personagens que eu fui fazendo no teatro, baseados no malandro, e, ainda, da convivência com os cafajestes reais, que foram minhas “musas” inspiradoras, encomendei um roteiro para o Ruy Guerra e o Miguel Torres sobre dois cafajestes.

Em 1960, começamos a filmar Os Cafajestes.

O filme mostra bem “quem é” o cafajeste; como ele age em função dos seus próprios interesses.

RUY GUERRA E OS CAFAJESTES

O Ruy Guerra era muito conhecido por não gostar de terminar os filmes que fazia. Gostava de começar, mas não gostava de acabar.

Um tempo antes de filmar Os Cafajestes, ele começou um filme do Carlos Niemayer, chamado Oxum não sei de que, que a atriz Irma Álvares teve que raspar a cabeça para fazer o personagem. Mesmo assim, o Ruy não acabou o filme. Quase levou o produtor à falência. Depois começou outro filme, da Vanja Orico, e também não acabou.

Mas, apesar disso, eu achava que o Ruy Guerra tinha muito talento e resolvi trabalhar com ele. Falei para ele: “Olha, você vai fazer o meu filme; mas o meu, você vai acabar”. E acabou na porrada.

ACABOU NA PORRADA

Ele não queria acabar, não. Por isso eu tive de sair na porrada com ele. Brigamos de tapa mesmo.

Ele é mais baixo do que eu e tinha mania de brigar pulando, briga de português; o Ruy é português, de Angola.

Ele pulava na minha frente, eu dava tapa no ouvido, ele pulava outra vez, mais um tapa. E assim para cada pulo, um tapa.

Deu trabalho, mas ele acabou o filme.

Só que, depois de toda essa briga, ele ficou sem falar comigo uns dez anos.

Mas isso são águas passadas, não importa mais.

Outro dia recebi um telefonema da filha dele com a Leila Diniz. Adorei conhecê-la.

OS CAFAJESTES NO BRASIL: REPERCUSSÃO

O filme foi muito mal recebido no Brasil. A crítica desceu a ripa e o público detestava. Só que, apesar de todo mundo detestar, todos iam ver. Por vários motivos.

Pela primeira vez o cinema mostrou como se enrola um baseado. Na época em que o filme foi lançado a maconha era considerada o máximo, mas ainda era tabu. Maconheiro era associado ao morro, ao pobre.

Tinha também, a própria atitude dos personagens. Os cafajestes pegavam duas meninas com a Bíblia na mão e gozavam delas, lendo com ironia trechos do livro. Era uma agressão à igreja, que na época tinha muita força.

E, pela primeira vez no cinema mundial, aparecia uma mulher em nu frontal, por um longo tempo.

Isso tudo aliado á linguagem cinematográfica do filme, avançadíssima até hoje (um mérito exclusivo do Ruy Guerra).

O resultado disso é que, mesmo sem gostar, o público ia em massa assistir o filme.

O SUCESSO DOS CAFAJESTES

O filme deu uma grana violenta e criou um problema, um caos no Brasil.

Era uma loucura. Quando Os Cafajestes ia estrear numa cidade, vinha o governo do Estado, pressionado pela sociedade, pelas agremiações, pela Igreja e proibia a fita.

Aí eu tinha que entrar com uma liminar, porque a liberação era federal, e o governo do Estado não podia proibir.

Só que, acabando a luta contra a censura em uma cidade, o filme ia estrear em outra cidade e acontecia a mesma coisa.

Como consequência, onde o filme ia eu tinha que ir junto para liberar a fita com medida liminar.

Deu um trabalho desgraçado. Mas onde estreava, estourava a bilheteria.

Por causa dessa repercussão, fomos convidados a participar do festival de Berlim, onde ganhamos um prêmio e, ainda, tivemos matérias nas principais revistas e jornais europeus e americanos elogiando o filme; colocando-o nos cornos da lua.

Obviamente, depois dessa repercussão no exterior, muita coisa mudou na carreira do filme aqui no Brasil.

A crítica, que tinha arrasado com o filme, dizendo que era uma droga, que as inovações do Ruy Guerra eram erros de continuidade e assim por diante, mudou totalmente de opinião.

Originalmente publicado em: VALADÃO, Jece. Memórias de Um Cafajeste. São Paulo: Geração Editorial, 1996.

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