quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Memórias de um Cafajeste- parte II: Os Cafajestes e a repercussão internacional





Por Jece Valadão

O CAFAJESTE NA ITÁLIA

Quando eu fui com Os Cafajestes para Berlim, em 1961, para participar do festival, resolvi parar em Roma; ficar uns dias lá para mostrar o filme para o Carlo Ponti.

Nessa época, o futebol brasileiro estava no auge, com a vitória da Copa de 58, na Suécia. Os italianos adoravam Pelé, Garrincha, esse negócio todo. O Brasil estava com tudo na Itália e em toda a Europa.

Chegando em Roma, fui no estúdio do Carlo Ponti e mostrei o filme para ele. Ele adorou. Conversamos sobre Pelé, Garrincha, futebol. E por conta disso, eu acabei ficando em Roma uns quinze dias.

(...)

OS CAFAJESTES NO FESTIVAL DE BERLIM

A chegada em Berlim

Saltei no aeroporto de Berlim sem um tostão no bolso e sem falar uma palavra de alemão. A primeira coisa que eu vi foi uma banquinha no aeroporto com uma placa: “Festival”, que é igual em todos os idiomas.

Apresentei-me para um dos recepcionistas, que falava espanhol. Ele me botou dentro de um carro e mandou seguir para o hotel.

Chegando lá, mostrei um carnê que eu recebi noa eroporto e me levaram para o apartamento. O cara que carregou a mala até meu quarto olhou feio. Eu não tinha um tostão para dar para ele.

Sentei na casa e pensei: “E agora? Puta que o pariu. O que eu vou fazer? Sem dinheiro nem para comprar cigarro”. Na época, eu fumava três maços por dia.

A única coisa que eu tinha era um tíquete refeição que a organização do Festival tinha me dado.

Atrás dos tíquetes tinha uma relação com os nomes dos restaurantes em que eu podia comer de graça. E isso era tudo o que eu tinha. Café de manhã servido no hotel e um talão de tíquete refeição.

Na hora do almoço, peguei um tíquete refeição e vi que tinha um restaurante indicado que era em frente ao hotel. Foi um alívio. Eu não podia nem me locomover na cidade por falta de dinheiro.

Peguei o cardápio, em alemão, é claro, e apontei qualquer coisa para o garçom. Era uma sopa doce. Fiquei mais puto ainda, mas tive que comer aquela merda assim mesmo.

No jantar, fui no mesmo restaurante, sentei na mesma mesa e apontei o cardápio para o mesmo garçom.

Depois de três duas sem falar com ninguém, sem fumar, sem um tostão no bolso e comendo “por eliminação”, tive uma surpresa.

Na Alemanha existe um costume de pessoas desconhecidas sentarem na mesma mesa, sem nem pedir licença. E estava eu no restaurante de sempre, sentado sozinho na mesma mesa em que ficava todos os dias, servido pelo mesmo garçom, quando chega uma família de alemães e senta do lado.

Quando o garçom respondeu alguma coisa para eles, percebi que a família sorriu. Pensei na hora: “Esse garçom não é alemão, porra nenhuma”. Fiquei observando. Ele ia e voltava. Numa dessas vezes, falei alto: “Puta que o pariu, eu não acerto uma comida nessa merda desta terra”.

Aí o garçom: “Ah, tu és português?”, “Não, meu irmão, não sou português, mas sou brasileiro. Mas vem cá, meu irmão, me dá um abraço, pelo amor de Deus. Eu estou nessa e nessa situação”.

Na hora, fiquei amigo dele. O cara era um estudante português; só que o desgraçado tinha cara de alemão. Bom, minha vida mudou: ele me recomendou vários pratos, me deu cigarro...Fumei com um prazer desgraçado. Foi um alívio. Agora, dinheiro que é bom, continuei sem.

Dois dias depois a Norma Bengell chegou. Contei a história toda da italiana e ela morreu de rir: “Levou um suadoro, o malando. Malandro de terceiro mundo”. Ainda me gozou paca. Mas me empresotu cem dólares..Foi aí que eu fui comprar cigarro, tomar um chope; estava louco para tomar aquele chope alemão.

Saída triunfal

Terminada a apresentação dos Cafajestes no Festival, eu e a Norma ficamos ali, dentro do cinema, sentados, totalmente abobalhados, com a receptividade do público em relação ao filme.

Quando resolvemos ir embora, tivemos mais uma surpresa.

Saindo na rua vimos uma fila de alemães: umas vinte pessoas, formando um corredor polonês. Olhei para aquilo e não entendi nada. Minha primeira reação foi de medo, achando que ia levar porrada se passasse no meio daqueles alemães.

Só que não tinha jeito; era a única saída. Peguei a Norma pela cintura e fomos em frente.

Para nossa total surpresa, ao pisar no passeio público, fomos aplaudidos. Ali, naquela avenida de Berlim: eu, cidadão cachoeirense, sendo aplaudido por alemães enormes, que eu nunca tinha visto na minha vida.

Comecei a chorar. Foi a maior emoção que eu senti até hoje.

OS CAFAJESTES E JOHN WAYNE

O John Wayne, que estava participando do Festival, no dia seguinte à essa apresentação dos Cafajestes, pediu para os organizadores respresentarem o filme.

Ele tinha lido sobre a repercussão no Brasil, sobre a apresentação no Festival (ele tinha perdido a estreia) e ficou curioso em assistir o tal filme que estava causando polêmica...

Ele assistiu e adorou. Inclusive, obrigou o Festival de São Francisco a incluir o filme na programação.

Esse episódio também foi determinante no sucesso dos Cafajestes. Por causa da reprise solicitada pelo John Wayne, assinei um contrato com a UFA, que distribuiu o filme no mundo inteiro.

Representantes da UFA e críticaos de todo o mundo, sabendo do pedido do John Wayne para que reprisassem o filme, lotaram o cinema.

O curioso é que, se não fosse o John Wayne, talvez o filme passasse despercebido no Festival.

OS CAFAJESTES NO RESTO DO MUNDO

No dia seguinte à partida da Norma Bengell, que voltou a Itália, e à exibição do filme solicitada pelo John Wayne, apareceu um comprador para o filme: a UFA, uma empresa alemã, que na época era famosíssima.

E foi também só aí que eu tive contato com a embaixada brasileira, que até então não tinha dado sinal de vida. Quando o representante da UFA me procurou no hotel, já veio com um representante da embaixada brasileira.

O contrato que a UFA me propôs era de distribuir Os Cafajestes em todo o mundo, com exceção da América Latina. Para isso me dariam um adiantamento de quatorze mil dólares; e, depois eu teria um contrato de participação e mensalmente me mandariam um relatório.

Aceitei na hora, com uma única condição: que me pagassem imediatamente em dinheiro vivo.

Não acreditei. Depois de toda a dureza em Berlim, recebi catorze mil dólares em verdinhas.

Tempos depois tive a oportunidade de ver o filme falado em alemão e depois em japonês.

Por causa desse contrato com a UFA, o filme foi visto no mundo inteiro.

A vingança do cafajeste

Peguei esses catorze mil dólares e me vinguei. Minha primeira atitude foi pedir para o cara da embaixada arrumar uma moça bem bonita para me acompanhar; e que falasse pelo menos espanhol.

Ele arrumou uma menina linda, bem novinha, com vinte e poucos anos. Pelo acordo que fiz, ela tinha que dormir comigo, dar para mim, me dar banho, ser minha secretária, minha acompanhante...Tinha que fazer tudo que eu quisesse.

Com essa menina, vi coisas totalmente desconhecidas para mim.

Quando, por exemplo, a gente pedia um café e vinham aqueles tabletes de açúcar, ela pegava as sobras e guardava dentro da bolsa. Aquilo foi me invocando, até que ela me explicou que, por causa da guerra, ela não sabia como ia ser o amanhã, se ia faltar açúcar, o que iria acontecer. Então, tinha que se resguardar.

Ela era uma vítima de guerra.

A moça era maravilhosa, muito bem-vestida, falava muito bem espanhol e no fim acabou até aprendendo português. Já que eu aprendi nada de alemão, é claro.

Foram cinco dias em Berlim com essa menina, gastando e distribuindo dinheiro. Comecei a dar gorjetas para todos os funcionários do hotel; gorjetas de cem dólares. Os caras ficaram tontos, sem entender nada.

Em cinco dias estourei os catorze mil dílares, sem comprar uma camisa para mim.

OS CAFAJESTES EM SÃO FRANCISCO

Depois de Berlim, fui direto para São Francisco participar do Festival que o John Wayne tinha indicado.

Chegando em Los Angeles, liguei para Leonora Amar, atriz brasileira que tinah abandonado a carreira ao se casar com Aleman, ex-presidente do México, e sugeri a ela que fizesse um coquetel em homeagem à participação dos Cafajestes no Festival de São Francisco.

Além de mim, estavam participando do Festival o Anselmo Duarte com O Pagador de Promessas e o Sérgio Ricardo, com um curta-metragem.

Falei à Leonora que se ela desse um coquetel, o John Wayne iria. Ela morreu de rir, duvidando do que eu tinha falado.

Resumindo, ela deu o coquetel; e conforme eu falei, o John Wayne foi.

Isso deve marcar a vida de Leonora até hoje.

Depois disso voltei com o filme para o Brasil e nunca mais me encontrei com o John Wayne.

BALANÇO FINAL

Os Cafajestes passou e ainda passa no mundo inteiro, rendendo até hoje.

Depois que foi aclamado pela crítica internacional, no Brasil o filme passou de maldito para um marco no cinema nacional.

Por causa de toda essa peripécia, de passar no mundo e só depois de ser reconhecido no Brasil, eu cheguei à conclusão: ou o filme era muito avançado para a época, 1960- se bem que eu não achava nada de mais naquele nu frontal e nem no baseado- ou as coisas evoluíram: porque hoje o filme passa em horário nobre na TV Cultura na íntegra.

Talvez eu estivesse avançado no tempo, como sempre aconteceu na minha vida.

Originalmente publicado em: VALADÃO, Jece. Memórias de Um Cafajeste. São Paulo: Geração Editorial, 1996.

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