quinta-feira, 24 de outubro de 2013

“Encarnação do Demônio não tem nada a ver com o cinema do Mojica”


Foto: Rafael Spaca

Um dos roteiristas mais conhecidos do cinema brasileiro em todos os tempos. Aos 83 anos, Rubens Francisco Lucchetti mantém uma memória impressionante. Relembra fatos distantes e atuais com notável precisão. Intelectual, ele mantém um vocabulário rico que combina com sua educação refinada. “Eu que te agradeço por ter me ligado”, declarou após uma hora de conversa por telefone. Este artista múltiplo continua longe dos holofotes. Lucchetti mora numa casa com ampla biblioteca em Jardinópolis, cidade do interior de São Paulo localizada a 330 quilômetros da capital paulista.

Houve um tempo em que este simpático senhor e o cineasta José Mojica Marins, o Zé do Caixão, eram quase sinônimos. A parceria entre os dois resultou em nove longas-metragens (O Estranho Mundo de Zé do Caixão; Finis Hominis; Sexo e Sangue na Trilha do Tesouro; Quando os Deuses Adormecem; O Exorcismo Negro; A Estranha Hospedaria dos Prazeres; Inferno Carnal; Delírios de Um Anormal, Mundo, Mercado do Sexo) e dois curtas-metragens (Pesadelo Macabro, episódio do longa Trilogia de Terror e A Praga). “Nos relacionamos muito bem. Foi um período difícil porque ele trabalhava com poucos recursos e muitas dificuldades. Ele mal conseguia me pagar”, admite.

Difícil é tentar rotular Lucchetti devido as suas múltiplas funções: agitador cultural, desenhista, escritor, jornalista, novelista policial, roteirista de histórias em quadrinho. Além do cinema, este artista pulp colaborou intensivamente para o rádio e televisão. O roteirista atribui á leitura de autores clássicos como Conan Doyle, Edgar Allan Poe e Robert Louis Stevenson como algo decisivo na sua formação intelectual.

Nessa entrevista, Lucchetti recorda suas incursões na sétima arte, comenta as opções de carreira do amigo José Mojica Marins e dá conselhos para os jovens que queiram seguir carreira como roteiristas: “Eu tive tudo, tudo veio ao meu encontro. Depende da sua própria sorte. A pessoa precisa ter aquela predisposição pra correr atrás, ter conhecimento, cultura. Tudo isso aliado a sorte”.

Violão, Sardinha e Pão- Como se iniciou a parceria do senhor com o José Mojica Marins?

Rubens Francisco Lucchetti- Eu conheci o Mojica por um amigo meu que trabalhava como secretário da Cinemateca Brasileira, o Sergio Lima. Ele tinha me falado sobre o Mojica e acabou nos apresentando em São Paulo. Isso acabou iniciando a nossa parceria. Ele me pediu um roteiro pra um filme do Zé do Caixão. 

VSP- Ele escrevia um argumento pro senhor?

RFL- Não. Ele dava uma ideia do que queria e eu desenvolvia o roteiro. Nossa parceria durou cinco, seis anos numa boa. Nos relacionamos muito bem. Essa foi uma época muito difícil pro Mojica...entre 1966 até 72 mais ou menos. Foi um período muito difícil porque ele trabalhava com poucos recursos e muitas dificuldades. Ele mal conseguia me pagar. Quem me pagava mais era a televisão. Por isso, eu sempre tive um emprego paralelo. Nunca me dediquei somente a ele. Eu escrevia roteiro de história em quadrinho, dirigia a revista Projeção dirigido aos exibidores. Também fazia freelances, escrevia contos, novelas.

VSP- Dos roteiros escritos pelo senhor, existe algum preferido?

RFL- Do Mojica eu gosto do Estranho Mundo do Zé do Caixão e Ritual dos Sádicos. Do Ivan (Cardoso) gosto bastante dos três primeiros. Ele seguiu mais friamente o meu pensamento. O Mojica teve muitos problemas né? Os roteiros não se completavam e tinha que reescrever. Muitas vezes o resultado ficava diferente do roteiro. Isso acabava acontecendo porque ele não tinha recursos disponíveis para completar o roteiro. Os filmes acabavam ficando incompreensíveis...muitas cenas acabavam não sendo filmadas. Outras eram feitas de maneira diferente. Isso prejudicava o resultado final.

VSP- Nos anos 1970, a Boca do Lixo era o centro da produção cinematográfica paulista. O senhor freqüentou muito esse ambiente?


RFL- Não. O Mojica não frequentava. Ele ia mais porque o produtor dele (Augusto de Cervantes) tinha um escritório ali num prédio na esquina na Boca do Lixo. os estúdios dele ficavam no Brás. Eu acabava indo na Boca mais por força dele ir. Mas eu não frequentava. Em compensação, eu tive um grande amigo que trabalhei junto que era dali, o Jean Garrett. Esse era dali mesmo.

VSP- O senhor fez uns dois roteiros pro Nelson Teixeira Mendes?

RFL- Ah fiz, fiz. Um pra um filme do Tonico e Tinoco chamado A Marca da Ferradura e também outro chamado A Herdeira Rebelde. Foi algo muito mal feito, depois ele nem me pagou. O Nelson era um cara cheio de problemas. Nisso, ele encomendou outros dois roteiros que eu acabei nem fazendo. Ele sempre tinha uma desculpa pra não me pagar. Ser roteirista é uma coisa muito ruim. Muito ruim. Os dois filmes ficaram com um resultado abaixo da crítica. O Nelson podia ser até produtor, mas não diretor. Os dois filmes ficaram péssimos. Abaixo da crítica, sabe?

VSP- Entendo. O senhor trabalhou diversas vezes com o cineasta Ivan Cardoso. Trabalhar com ele é muito diferente do Mojica?

RFL- Não. O Ivan é o seguinte: ele é mais exigente no que ele quer. Com o Mojica não tinha muito problema, o que eu fazia estava feito. Com o Ivan muitas vezes eu tinha que fazer duas, três versões num mesmo roteiro. Mas isso é natural, ele queria produzir o filme bem ao estilo que ele estava sentindo. Não ficando do gosto dele, ele preferia corrigir. Foi muito bom ter trabalhado com o Ivan. Ele não tinha condições de produzir sem a Embrafilme. Mas nossos filmes sempre se pagaram. Depois, o Collor acabou com tudo. Ele era um inimigo ferrenho da cultura brasileira e acabou com tudo. A nossa cultura foi pro brejo, pro vinagre. Não sei como foram eleger uma pessoa como esse homem. No Brasil só sobrevivem os ruins, os bons naufragam.

VSP- O senhor diz isso na política ou na cultura?

RFL- Nos dois. Não vejo distinção nisso.

VSP- Quais escritores estrangeiros mais influenciaram seu estilo?

RFL- Conan Doyle, Edgar Allan Poe e Robert Louis Stevenson. Esses três foram os principais. Tem outros...mesmo o Bram Stoker que foi o criador do Drácula me influenciou. Muita coisa desses autores eu comprei nos sebos e pela leitura acabei me influenciando por eles.

VSP- São 53 contos e cinco romances do personagem Sherlock Holmes escritas pelo escritor escocês Conan Doyle. Qual história é a preferida do senhor?

RFL- Faixa Molhada. Nessa história, o Conan Doyle mescla mistério e terror. É uma das melhores. Essa é a preferida...mas eu gosto de várias.

VSP- Seus roteiros são nos gêneros de aventura, fantasia, terror. O senhor não acredita que esses gêneros são pouco explorados pelo cinema brasileiro?

RFL- São gêneros praticamente inexplorados. Embora o Mojica, Ivan Cardoso e esporadicamente outros façam algumas coisas. Nessa temática do extraordinário, eu só conheço o Mojica e o Ivan. E veja que o nosso país é rico em superstições, lendas. Mas aqui esse gênero não sobrevive. Mesmo os quadrinhos dessa temática são sempre baseados em temas do Exterior. É complicado porque essas coisas podem ser consideradas um subgênero, mas não existe subgênero. Existe filme ruim e filme bom. A literatura não pode ter fronteiras. Como a música. Pode ter música boa que seja italiana, alemã. A literatura não pode ter fronteiras. É praticamente tudo uma coisa só. Existe livro bem escrito e livro mal escrito. Prestigiar somente o que é brasileiro e desprezar tudo que é estrangeiro é uma grande besteira. Respeito as outras opiniões, mas essa é a minha visão. Mas eu não faço média. Dou uma banana pros outros e fico com as minhas ideias.

VSP- Como é essa profissão de roteirista cinematográfico no Brasil?

RFL- É uma profissão ingrata. Ninguém consegue viver somente dela. Eu pelo menos não conheço ninguém que tenha sobrevivido exclusivamente dela. Escrevi o roteiro de 25 longas-metragens que foram realizados e nunca consegui sobreviver disso. Sempre tive atividades paralelas, escritório, tudo que você possa imaginar. Ganhei prêmio em festivais como Gramado, em Portugal e mesmo assim raramente sou procurado. Isso porque eu fiquei meio afastado no interior. Fiquei prejudicado porque culturalmente o Brasil só existe no Rio, São Paulo. Está tudo por ali. Existem outras experiências esporádicas de produzir cultura fora dessas duas cidades. Cinema é indústria. No Brasil, o cinema é visto como aventura. Os próprios cineastas muitas vezes ficam nas mãos de vigaristas e isso prejudicou. Existe preconceito, porque o cara faz cinema muitos vão ter ele como vigarista, vagabundo, que não quer trabalhar. A maior indústria dos Estados Unidos é o cinema. Depois vem o automóvel.  Cinema acaba ajudando a empurrar a venda de tudo: geladeira, sapato, tudo que você quiser. Lá eles entendem cinema como indústria econômica. Infelizmente, isso não se desenvolveu em outros países. Aqui na América Latina não existe.  Em outros países como Itália, França e Espanha até eles conseguem desenvolver uma pequena indústria, tem uma produção constante. Raramente um filme brasileiro consegue ficar muito tempo em cartaz. Mesmo que ele tenha dado bilheteria. As salas estão na mão dos estrangeiros. Agora essa coisa do DVD e da Internet, acaba ajudando no acesso. São outros espaços de exibição que as salas de cinema acabam não sendo.

VSP- Recentemente, o Mojica realizou o filme Encarnação do Demônio. O senhor acompanhou isso?

RFL- O Mojica sempre me ligava falando da possibilidade da gente fazer junto. Ele acenava com essa possibilidade, sem ele saber que eu desenvolvi o meu roteiro. Depois do Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver eu fiz a minha versão do Encarnação do Demônio. Numa entrevista, ele mostrou um roteiro encardenado pra esse filme. Nisso, eu percebi que eu tinha perdido meu tempo e aquilo não ia resultar em nada. Acabei jogando fora o roteiro que eu tinha feito. Eu não considero esse Encarnação do Demônio o final da trilogia. Não tem nada a ver com o cinema do Mojica. É cheio de efeitos especiais, o cinema do Mojica é primitivo, aquela coisa primitiva. Foi fazer algo ambicioso e deu no que deu: uma coisa grosseira, sem qualidade nenhuma. Quando ele esteve em Ribeirão Preto cheguei a falar que não considero aquela fita o encerramento da trilogia dele.

VSP- O senhor ficou magoado de não ter trabalhado nesse projeto?

RFL- Não, não. Ele que sabe. Eu não tenho problema nenhum com o Mojica. Só não concordo quando ele fala alguma besteira em uma entrevista, em algum lugar. Não sei se ele não quis eu ou se foi a pessoa que conseguiu o financiamento. Eles quiseram imitar uma cena do Orson Welles em A Dama de Xangai e isso pegou mal. Você pode fazer uma homenagem quando fica algo bem feito. Mas ficou um negócio feio, várias coisas que tem no roteiro não existem. Achei de um mal gosto tremendo várias coisas. Ficou uma coisa nojenta. Esse final de carreira dele que era pra ser um canto de cisne, acabou ficando um canto de pato porque ele colocou tudo a perder. Não tem nada dele nesse filme, ele esta irreconhecível. Depois essa fórmula dele usar o Zé Caixão acabou transformando o personagem num palhaço. Ele jogou a sorte dele no lixo. Toda a sorte, a projeção do personagem aqui no Brasil e mesmo no Exterior. O Mojica acabou se desvalorizando, entende? Lidou com pessoas...ele sempre viveu numa curriola de pessoas sem condição nenhuma, sem cultura nenhuma. Não quero me desfazer dessas pessoas, mas muitos não deviam estar nesse meio. Ele se desvalorizou freqüentando quermesse. Infelizmente, não tem como reverter mais. É algo melancólico.

VSP- Eu também achei que o filme não tinha haver com ele. Ficou muito estranho...

RFL- Ficou, ficou. As coisas que ele faz em televisão eu não sei porque não pega essa canal na minha residência. Estão explorando ele e parece que ele não percebe. Antes, ele tinha feito filme pornográfico. Fica difícil você analisar o Mojica. Eu não sei o que está na cabeça dele, fazer terror não é algo inato. Aconteceu, ele fez aqueles filmes e meia dúzia de cineastas endeusaram ele. Na realidade, aqueles dois primeiros filmes eram paupérrimos em termos econômicos. A qualidade se deve em grande parte ao fotógrafo (Giorgio Attili). Deve-se ao Attili, aquelas imagens criadas na tela não foram do Mojica e sim do fotógrafo. Lógico que o Mojica tem o mérito dele, não estou tirando o peso da contribuição dele. Mas houve uma grande contribuição ao fotógrafo. O roteiro desses filmes eram cheio de incoerências. Sempre procuro entender um longa-metragem pelo enredo e os dois tinham várias incoerências. Tudo bem...o mérito dele foi ter feito algo diferente no nosso cinema. Vendo o primeiro filme dele eu senti algo de impacto. Ele tem toda aquela enlouquecia. Depois, ele vai afundando cada vez mais e deixando seus filmes parecidos com circo de arrabalde. Uma pena.

VSP- O senhor acredita que os roteiristas são muito pouco lembrados dentro do cinema brasileiro?

RFL- Isso não se restringe ao Brasil. Acontece em todo cinema mundial. O grande público corre pro cinema quando tem um ator como o Tom Cruise em determinado filme ou quando tem a Sharon Stone. Todos correm para vê-los. Os roteiristas são sempre esquecidos. Quem sabe quem são os roteiristas? Meia dúzia, somente as pessoas ligadas a arte do cinema, o grande público não sabe nada. Nem sabe quem são os diretores.

VSP- Qual conselho o senhor daria para algum jovem que queira seguir carreira como roteirista?

RFL- É muito difícil. Cada caso é um caso. Mas eu vou ser sincero: eu tive tudo, tudo veio ao meu encontro. Eu nunca corri atrás. Aquilo que eu corri atrás não deu certo. Veio tudo na minha mão, entende? Nunca corri atrás. Agora, cada um é cada um...pra outro dar certo tem que ser de outra forma. Na realidade, depende da sua própria sorte. Você precisa ter aquela predisposição pra correr atrás, ter conhecimento, cultura. Tudo isso aliado a sorte. Eu nunca estudei cinema, nunca li livro técnico. É preciso muita leitura, observação, ver muitos filmes. Eu vi muita fita...filme bom, filme ruim. Tudo. Só não vi filme de guerra, gangster que esses nunca me interessaram. Agora, drama, suspense, policial, noir, esses são gêneros que eu gosto bastante. Eu procurava ver e analisar a minha maneira. Eu nunca pegava livro. Somente lia crítica de jornal, revista pra acompanhar. Mas eu não me guiava nisso. Podiam falar que determinado filme era ruim, era bom. Eu mantinha a minha concepção.

6 comentários:

Dalete Cunha - editora de filmes disse...

É uma pena que o Luccheti esteja afastado do cinema! Seus comentários são muito pertinentes! Parabéns mais uma vez Matheus, pela sua dedicação em salvaguardar a história do nosso cinema! Não desista desse seu trabalho, pois temos poucos jovens como você que se interessam em estudá-lo. Grande abraço, Dalete Cunha

Ailton Monteiro disse...

Muito boa a entrevista, Matheus!

Gomorra disse...

Maravilhosa entrevista!

De fato, há um viés conservador no enredo de ENCARNAÇÃO DO DEMÔNIO que destoa da concepção original do personagem Zé do Caixão...

teu 'blog' é primoroso, parabéns!

WPC>

Matheus Trunk disse...

Dalete: obrigado pelo seu comentário. É uma honra ter uma pessoa como você como leitora.

Ailton: valeu cara

Gomorra: obrigado. Concordo com você que destoa do restante da obra dele. Apareça mais por aqui. Abraço

Unknown disse...

Clap, clap, clap, clap, clap...

almanaque disse...

Adorei a entrevista. Infelizmente, o público brasileiro pouco ou nada conhece de cinema. A maioria assiste apenas as super produções de Hollywood, nada contra, claro, mas o roteirista tem um papel importante, pois é ele quem cria a história,as falas, e vem um diretor, que muitas vezes não sabe nada desta arte, e mexe no texto, e quando o filme fracassa, a culpa recai no roteirista. Parabéns pelo blog.