segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

MEMÓRIAS DE UM CAFAJESTE


Por Jece Valadão

Desde a tenra infância, brincando com as priminhas nos fundos dos quintais de Cachoeiro do Itapemirim, no Espírito Santo – de onde teve de fugir do pai de uma moça – Jece Valadão já trazia o germe do grande cafajeste. Neste texto de sua autoria, ele lembra as mulheres com quem transou, defende sua teoria antivirgindade e garante que, em certas circunstâncias, todo homem já foi, um dia, cafetão.
                            
As coisas difíceis me dão tesão. Gosto de tudo o que é difícil – como uma paciência que Napoleão Bonaparte jogava – porque as coisas difíceis satisfazem meu ego. E conquistar o que parece impossível. Em tudo na  vida. Se alguém está interessado em saber se foi assim que ganhei a primeira mulher da minha vida, é bom saber que eu não me lembro quem foi a primeira mulher da minha vida. Só posso dizer que foi assim que eu conquistei a Vera, uma mulher difícil, até hoje. Pelo fato de ela ser uma mulher muito bonita. Na razão direta, ela é muito desejada; e, na razão direta em que ela é desejada, mais me desperta a necessidade de mantê-la junto a mim, presa a mim, entendem?

Vamos fazer um flash-back até Cachoeiro do Itapemirim, uma cidade muito incrível, onde existe o Caçadores Carnavalescos Clube, lugar de elite, onde eu não podia entrar porque era menino pobre, filho de ferroviário. Mas eu tinha uma namorada que frequentava o clube. Era um namoro ás escondidas, porque a família dela não queria de jeito nenhum, porque eu já trazia em mim aquele germe do cafajeste. Um cafajeste meio inibido, morando no interior ainda, porém com o germe do grande cafajeste, que não é outra coisa senão uma desinibição diante da mulher, que eu sempre tive, e e que a maioria dos homens não tem. Não é bem audácia: é desinibição. E, por essa atitude de desinibição diante da mulher do interior, onde ela é resguardada, cercada de todo cuidado, eu representava um perigo para as moças.

Tem o seguinte: não existe mulher honesta, só existe mulher mal cantada. Sempre tive essa opinião: a de que mulher honesta é aquela que nunca foi cantada direito, nunca foi cantada no ângulo certo que ela exige. Desinibidamente. Porque, pelas próprias circunstâncias da sociedade, a mulher sempre foi tratada com um certo recato, em relação aos próprios irmãos, que são homens; em relação ao próprio pai. Hoje, é evidente, isso mudou muito, elas têm um tratamento quase de igualdade em relação aos homens. Mas não vão nunca se igualar porque é impossível mesmo, é um problema até biológico, mas a mulher agora tem acesso a coisas que, na minha época, não tinha, muito menos no interior. E eu era o único rapaz da cidade que, se tivesse desejo de beijar uma moça, beijava, estivesse o pai presente, o tio, o ex-namorado, qualquer coisa. Eu beijava, simplesmente, desde, é claro, que houvesse uma reciprocidade por parte dela. Isso causava escândalos na cidade. Então eu era proibido de me aproximar de qualquer tipo de moça mais chegada à classe A de Cachoeiro do Itapemirim. Por isso, tive de sair de lá. De família pobre, sem nenhuma tradição de nome, sem nenhum acesso aos mais poderosos, tive de me mudar para tentar ser alguém.

Na verdade, não tive de fugir da polícia, mas tive de fugir dos pais de uma moça de lá. Olha, desde que eu me entendo por gente, acho que a virgindade é um negócio tão arcaico, tão superado, que cheguei à conclusão de que, ao nascer uma criança, menina o médico deveria fazer, imediatamente uma pequena cirurgia, entende? Uma incisão para que o grande problema da virgindade deixasse de existir. As cuecas melhorariam, inclusive, porque a mulher cresceria com muito mais liberdade de ação, com muito menos preconceito. É uma membrana ridícula, que cria problemas incríveis, medievais mesmo. Essa minha teoria anticabaço, eu a tenho desde rapazola de 14 ou 15 anos do interior do Espírito Santo, já usando meu sexo. Porque comecei muito cedo. Me auto-usando, mais ou menos dos 13 aos 14 anos, depois comecei a usar mesmo. E só com as menininhas. Sempre tive alergia a homens. Continuo tendo, e espero morrer tendo.


Acontece que sempre há uma prima disponível para a gente brincar de médico. Não conheço nenhum homem que não tenha tido uma prima na vida dele, disposta a iniciação. Foi o que aconteceu comigo. Mas, atenção, que não foi da família da minha prima, ou seja, de minha própria família, que eu tive de fugir, senão não poderia voltar até hoje. E gosta de voltar lá de vez em quando, principalmente pelo fato de eu antes não poder entrar no clube e tal. Em compensação, tive a satisfação de voltar, uma vez, como homenageado principal, no aniversário da cidade que deu tanta gente importante, como Roberto Carlos, Danusa Leão, Darlene Glória, Carlos Imperial, Nélson Ned. Vou muito à minha cidade. E constatei que o pessoal continua criando mulheres bonitas. Aliás, eu sempre reparo em todas as mulheres bonitas, sou um esteta, sou de opinião que todas as mazelas devem ser extraídas da vida, ou pelo menos disfarçadas. Sou absolutamente favorável à beleza total. Eu e Joãozinho Trinta, que disse que intelectual é que gosta de pobreza. E eu concordo plenamente com ele. Porque intelectual é sadomasoquista, né?

Agora, é preciso esclarecer uma coisa: o nome cafetão – quem é que não foi, um dia, em certas circunstâncias? – tem um sentido assim tão pejorativo, mas que pode ser mudado para uma colaboração entre um homem e uma mulher. Ora, se eu estou com uma mulher e ela está melhor do que eu, nada mais justo do que a mulher me ajudar. E a recíproca é verdadeira, certo?

Sabem de uma coisa? No fundo, no fundo, eu devo ser um feminista. Porque sou tão machista...e os dois extremos sempre acabam sempre se encontrando, acabam se completando. Outra coisa: quanto mais liberada a mulher, mais chance tem o machista de sobreviver. Na verdade, acho que a mulher deve ter acesso a tudo, para que ela independa do homem, entende? Na razão direta da independência dela, o machismo pode ser muito mais cultuado. Olha, com esse negócio de eu ter saído de Cachoeiro meio desnorteado com aquela perseguição da tal família importante de lá, cheguei ao Rio ligeiramente apavorado, garotão ainda...E agora já posso voltar, numa boa, a moça já casou, tem filhos e tal, não há mais problemas, quer dizer, o mal foi sanado, entende? Apareceu um boboca, encheu ela de filhos, a família se sentiu recompensada e esqueceu a vingança jurada...

Mas, como eu ia dizendo, cheguei ao Rio meio tumultuado, evidentemente, mas me deu uma louca, eu jogava muito bem sinuca e ronda, aquele jogo de malandro, tanto que hoje tenho pavor de jogo, porque sou um jogador em potencial – se eu me deixar levar, viro jogador profissional, principalmente de cartas...Olhem, hoje não sou um marginal, não sei por que, condições para isso tive...naquele tempo me deu vontade de sair por aí, então fui tão São Paulo, olhava o jornal procurando emprego, arranjava uma pensão até me enturmar, de São Paulo fui pra Curitiba, de lá para Florianópolis, depois Porto Alegre, Uruguaiana, acabei atravessando a fronteira e fui parar na Argentina, em Paço de los Libres, menos de idade, só com uma carteira profissional sem qualquer emprego registrado, jogando minhas sinucas e minhas rondas, pulando por janelas para não pagar as contas, viajando de carona – enfim, eu era um hippie daquela época.

Em Paço de los Libres, lá estou eu tomando uma água, um refrigerante, sei lá, um troço qualquer, sai uma briga, chega a polícia e prende todo mundo, inclusive eu, que não tinha nada a ver com a história. Quando descobriram que eu era clandestino, menor de idade, sem profissão, sem lenço nem documento, me devolveram a Uruguaiana e me entregaram ao Juizado. Dai me perguntaram de onde eu era. Eu disse de onde. O juiz me mostrou o mapa do Brasil e perguntou: “O que é que você está fazendo aqui?”. Eu disse que já tinha vindo andando, e que tinha chegado lá. O papo começou a ficar agradável, eu falei da minha cidade, da minha família, do que tinha acontecido, de como eu tinha ido parar ali, o cara ficou tão impressionado com tudo que acabou me dando um dinheiro, uma verba especial lá do Juizado de Menores, para eu voltar para Cachoeiro.

Peguei o tal dinheiro, entrei num bar que tinha sinuca, perdi tudo. Uma semana depois, me virando de um jeito e de outro, fazendo biscate, o cacete, encontro com o juiz na rua. Ele me conheceu e perguntou o que é que eu estava fazendo ali. Disse que tinha ficado doente, mas que iria naquele mesmo dia de volta. Resultado, peguei um navio cargueiro, desses de pequeno porte, e vim até o Rio. Uma viagem que durou uns 12 ou 15 dias. Eu nunca tinha andado de navio na minha vida, e tinha uns 200 cruzeiros no bolso. No dia 7 de setembro a gente estava em alto-mar, teve de hastear bandeira, aquilo tudo, mas o que interessa é que, quando eu saltei em Niterói, estava com mais cinco mil cruzeiros no bolso, que tinha ganho dos marinheiros, na ronda.

Desci do navio e fui para a casa de uns tios meus que moravam em Padre Miguel, meio Bangu. Logo depois voltei para Cachoeiro. Ninguém exatamente como saí. Acabei locutor da rádio de lá, voltei para cá, trabalhei na Rádio Tupi, ao lado de Ari Barroso e uma porção de gente famosa, entrei para a televisão, teatro, encontrei a Dulce, casei com ela, etcetera...Mas o que interessa é que, nessa viagem, a minha base, geralmente, era a zona de cada cidade em que eu chegava, ou seja, eu tive um aprendizado de malandragem que agora é muito válido na minha vida.

Falando sério, sou três personagens ao mesmo tempo: o empresário bem-sucedido, quando estou atrás da mesa do meu escritório; o chefe de família, quando estou dentro de minha casa; e o grande cafajeste, quando estou em cena. São três homens em um só. E, já que vocês todos estão loucos para saber, em matéria de sexo sou uma pessoa absolutamente normal, da qual, até hoje, mulher alguma reclamou. O que me leva à certeza de que sou um anormal, porque, pelo que sei, elas reclamam muito dos outros homens.

Por exemplo: quando comecei na Rádio Tupi, ganhava tão pouco que dava exatamente para pagar a pensão da dona Matilde, na Rua da Alfândega, para a minha condução e para comprar uma roupinha ou outra. Então, eu não tinha a menor condição de sobreviver. Mas acontece que conheci uma mulher famosíssima na época, estrelíssima, rainha do Carnaval, rainha do Cinema e tudo, chamada Rosângela Maldonado. Foi uma mulher que me marcou muito. Ela me sustentou, durante muito tempo. Por quê? Porque ela tinha condições e eu não. Em síntese: eu já fui sustentado por mulher. Mas quem não foi? E é preciso ser muito honesto para confessor isso! Pra culturinha geral: eu ganhava 600 mil-réis por mês, pagava 450 de pensão, o que é que sobrava de resto? Então fui morar com quem me dava casa, comida, roupa lavada, um dinheirinho, em troca de companhia, amor, prazer, mesmo porque ela gostava de mim, e só por isso é que me dava tanta coisa, porque gostava de mim. E eu contando isso, hoje, ao contrário de denegri-la, enalteço-a. Eu só tenho boas recordações dessa moça, que foi uma ajuda na minha vida, no momento em que precisei. Não sei onde é que ela está, mas se soubesse que estava precisando de alguma coisa, eu a ajudaria, entende? Retribuiria essa ajuda, com o mesmo prazer e a mesma disposição. Foi uma alma boa que encontrei na minha vida, na hora em que mais precisei.

Isto é ser cafetão?

Se essa fase da vida da quase totalidade dos homens, principalmente da minha geração, é negada por muitos, eu tenho a maior honra em confessar. Acho digno, tanto da parte dela, de ter me ajudado, quanto da minha parte, de ter aceito. Agora, se esse fato é considerado como cafetinagem, então eu me confesso um cafetão. Mas para mim é apenas uma obrigação de agradecer a Deus ter encontrado uma determinada pessoa num certo momento que mais precisava. Importante: uma pessoa disposta a ajudar alguém – coisa, aliás, bem rara, cada vez mais. E para a qual eu estou disposto a retribuir todos os favores. Se é o que o que eu dei a ela, na época, já não tinha sido uma retribuição.



Uma coisa que também marcou muito na minha vida era um concurso que havia entre os garotos da minha idade: o de ejaculação a distância, através da masturbação. Era quase todo dia. Mas a primeira sensação de orgasmo que senti, em contato com mulher – que não foi a primeira mulher da minha vida, porque essa eu nem me lembro -, foi exatamente com uma prima, dentro de um armário escondidos. Meus pais tinham saído, foi uma experiência esquisitíssima, não deu nem para entender direito. Por ironia do destino, ela se apaixonara por mim, tinha dado um problema enorme dentro de casa, eu com uns 13 anos de idade...Agora, o último orgasmo, deixa eu contar, foi há meia hora!

Realmente, mulher dá muito trabalho.  Se vocês pararem para pensar, o ato sexual, em si, dá uma tremenda mão-de-obra, para dois segundos de prazer. Mas esses segundos são tão importantes! Aí é que vem o problema da relatividade do tempo. O tempo, que não existe. Porque se vocês pararem para pensar, racionalizar, vão chegar à conclusão de que não compensa a mão-de-obra de um ato sexual: a gente tem de tomar banho, tirar a roupa toda, ás vezes está um calor tremendo, a gente transpira paca, há necessidade de um esforço enorme para agradar, porque é o tal negócio, o bom trepador tem de agradar primeiro a mulher, depois pensar nele. E ás vezes a gente pega mulheres tão difíceis, tão duras de serem agradadas, que a gente tem de se esforçar ao máximo, tem de fazer tanta coisa, tanta coisa, para no final ter alguns instantes de euforia. Se alguém parar para pensar, vai contar até 10, antes de começar.

Eu tive um tempo – antes de conhecer a Vera, é preciso que eu diga – em que estive numa fase de euforia total, querendo comer o mundo inteiro. Mas chegou um momento de estafa, tão grande, que cheguei a desejar a impotência, porque daí tirava esse problema da minha cabeça. Só para provar que eu era macho, eu queria comer o mundo inteiro. O que é uma besteira, porque é muito mais difícil conquistar a mesma mulher todos os dias do que conquistar uma mulher por dia. Se eu sair por aí, conquisto 10 mulheres a cada dia, e isso não leva a nada. É muito mais difícil conquistar a mesma mulher todos os dias. O que existe é a perfeição da conquista.

Quando eu fiz o Boca de Ouro, nos Estúdios Herbert Richers, na Tijuca, depois do filme estreado e tal, pinta lá uma mulher, ás seis da tarde mais ou menos, uma grã-fina aí, da mais alta sociedade daquela época, tremendo carrão, dizendo que queria falar comigo. Fui. Ela perguntou onde é que estava minha boca de ouro. Disse que estava em minha casa, que a boca de ouro era um belo trabalho de um protético, então ela me fez ir para casa, apanhar o tal trabalho protético, colocar na boca e tudo, para ter relações com ela. Ela queria comer o Boca de Ouro, não o Jece Valadão. E eu não podia ir pra minha casa, não podia ir pra casa dela, hotel ela nem pensava, naquele tempo ainda não tinha motel, sabem aonde é que a gente foi fazer amor? Lá em frente ao Itanhangá, em cima de um banco, no meio do mato, perto de uma cachoeira, onde hoje há um loteamento enorme, eu com a boca de ouro, a mulher olhando pros meus dentes, formiga me mordendo de todos os lados. Nós saímos de lá todos os dois empolados, empoladíssimos.

É mais ou menos o suficiente para todos nós chegarmos à conclusão de que o Nelson Rodrigues tem razão. Todas as razões.

Vocês se lembram quando faltava muita água no Rio? Pois eu conheci a mulher de um jornalista famoso aí, linda maravilhosa, com a qual aconteceu uma das coisas mais apocalípticas que já aconteceram na minha vida. Ela me conheceu e resolveu me comer. Eu, modestamente, consenti em ser comido por ela. Marcado o encontro, no apartamento de uma amiga, solteira, em Copacabana, ela chegou primeiro, eu fui depois. Quando cheguei, a música era ambiental, as luzes estavam apagadas, à tardinha, o ambiente altamente romântico. Uma garrafa de vinho foi aberta, tudo, até a gente ir para a cama. Foi uma loucura. De repente, senti uma quentura escorrendo pelas minhas pernas. Olha, era cocô puro! Eu fui ao banheiro, abri as torneiras, nada de água. A mulher lá na cama. Apelei para uma garrafa de álcool, vesti a roupa e me mandei, cheio de bronca, muita bronca. Nunca mais vi essa mulher. Aliás, espero não encontra-la nunca mais! E acredito que ela, também, nunca mais queira me encontrar.

Mas faço absoluta questão de exigir uma ressalva, pra fim de papo: que tudo isso aconteceu antes da Vera, minha mulher, entrar na minha vida. E antes de eu me transformar num executivo, de vez em quando ator, fazendo o papel de cafajeste-padrão.


Publicado originalmente na revista Ele Ela em julho de 1980 

Nenhum comentário: