sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

A história do Jogral: capítulo dois



Capítulo 2



OS FESTIVAIS



Por Marcus Pereira



                                           Luiz Carlos Paraná e Alaíde Costa


O “Jogral” passou a ser frequentado por artistas de expressão e consagrados, e também pelos novos. Sua fundação coincidiu com uma fase de revalorização da música do Brasil, quando se realizaram os primeiros festivais. Essa fase tem como marco o primeiro festival da TV Excelsior que lançou Edu Lobo e Elis Regina com Arrastão. Depois veio o segundo, em seguida os dois importantíssimos Festivais da TV Record, o de 66 e o de 67. O de 66 consagrou Chico Buarque, Geraldo Vandré, lançou Caetano Veloso. Nesse festival Carlos Paraná concorreu com De Amor ou Paz, que foi interpretada por Elza Soares. O Brasil inteiro passou a interessar-se por música. As três eliminatórias, que apresentavam doze músicas cada, transmitidas pela televisão, atingiram níveis inéditos de audiência para programas musicais. O altíssimo nível das músicas concorrentes proporcionaram shows musicais de uma qualidade que nunca houvera sido atingida antes e nem foi atingida depois pela televisão no Brasil. Selecionadas as doze finalistas, o interesse pela batalha musical final tomou conta do Brasil. Ninguém, rigorosamente ninguém, ficou á margem. Formaram-se partidos em torno das duas primeiras músicas que logo se definiram como candidatas ao primeiro lugar: A Banda, de Chico Buarque, e Disparada, de Geraldo Vandré-Théo de Barros. A escolha era realmente difícil. Lembro-me bem que minha preferência era, um dia, por uma, outro dia por outra. A Banda tinha um tema de sentido múltiplo, era evocativa, de enorme beleza musical e literária. Era, mais do que tudo, nova, nova na sua proposta brasileira, nova ao incorporar aquilo que os narcotizados pelo iê-iê consideravam pieguice. Disparada era também uma obra-prima de música e letra, era também nova como estrutura e forma literária, como música e, principalmente, como tema. Ela tinha beleza plástica até, uma música em 35 mm, feita de terra, de brio e de sonho. Afinal, filiei-me ao partido de Disparada e comecei a detratar os defensores da Banda, alimentando calúnias e espalhando boatos sobre sua probidade pessoal e familiar.



Finalmente chegou o dia da grande final. O Brasil parou. O teatro Record, na Rua Consolação, em São Paulo, não conseguiu receber nem a metade dos interessados em assistir diretamente à grande final. Uma multidão imensa postou-se diante do Teatro, exibindo faixas, fazendo ameaças. A Banda contava com uma pequena margem de favoritismo; era, talvez, um pouco mais universal, em termos do heterogêneo público que, repentinamente, passou a interessar-se por música. A tendência do júri, dizia-se, era reconhecer esse favoritismo. Os defensores da Disparada ameaçavam incendiar o País se a música não fosse classificada em primeiro lugar. O confronto das duas facções era o iminente, quando Blota Júnior e Sônia Ribeiro, apresentadores do festival, pediram calma ao público que lotava o Teatro, repetiram várias vezes o pedido quando começaram a anunciar as músicas classificadas, a partir da quinta colocada. Eu havia reunido em minha casa um grupo de amigos para assistir à grande final e nós todos tínhamos, a partir de informações de alguns membros do júri, muita esperança de que a música do Carlos fosse classificada. Nossa tensão era enorme e parecia que estava em jogo muito mais do que apenas uma alegria musical ou cultural. Quando foi anunciada a quinta colocada nossa esperança diminuiu um pouco. Anunciada a quarta, diminuiu mais ainda. Quando foi anunciada a terceira colocada, Carlos disfarçadamente sai da sala, para não nos constranger com seu desaponto. Evidentemente, sua música não tinha sido classificada, pois só restavam duas a serem anunciadas que eram, sem dúvida, A Banda e Disparada. Sônia Ribeiro pede, então, muita calma e compreensão ao público e anuncia: “em segundo lugar, de Adauto Santos e Carlos Paraná...” Não esperei que ela terminasse, corri a uma sala onde o Carlos tinha se refugiado, agarrei-o pela cintura, coloquei-o no meu ombro e entrei com ele, triunfalmente, na grande sala onde os amigos estavam reunidos. O anúncio que se seguiu depois que Elza Soares cantou De Amor ou Paz, solene e patético como se estivesse anunciando alguma coisa de extremamente grave, e que era a decisão do júri de considerar empatadas as duas músicas, classificando-as em primeiro lugar, nem se interessou. Fomos para o “Jogral” que tinha transbordado para a Galeria e, até amanhecer, bebemos, cantamos e dançamos.



Lembro-me de Sérgio Buarque de Holanda, eufórico e grandiloquente, comemorando com todos a vitória da Banda, lembro-me de Luís Lopes Coelho que caiu, derrubado por uma de suas grandes gargalhadas, e que levantou-se lépido e continuou rindo, e bebendo, e cantando, e dançando, porque a vitória do Carlos era um pouco de todos nós e a alegria do Carlos fabricava alegria em cada um de nós. Ás seis horas da manhã, o Antoninho, garçom do “Jogral”, veio me dizer que tinha um sujeito completamente bêbado no banheiro querendo beber detergente líquido, pois não havia mais uma gota de bebida.



No começo de 1966, “O Jogral” já era famoso no Brasil inteiro. Um dia Carlos me contou que o Chico Buarque, cujo talento já era reconhecido, tinha estado lá um fim de noite e cantara A Banda, que pretendia inscrever no festival da Record. O Chico aparecia sempre, meio esquivo, mostrava as músicas novas e os frequentadores habituais ficavam atrás do Carlos e do Adauto para ouvir os trechos que eles tinham conseguido memorizar. E Paulo Vanzolini, de quem Chico se confessou filho musical na contracapa do disco que gravamos com músicas do Paulo em 1967 profetizava: “Seu Francisco vai longe, eu conheço a raça”. Nessa ocasião, Gilberto Gil defendia uns trocados num bar da Galeria, chamado “Bar-Bossinha”. E aparecia sempre também. A música de Gil que nos chamou a atenção foi Procissão.



O Festival de 1967 se beneficiou da repercussão e da qualidade do de 66. Tinha-se a impressão de que o que se convencionou chamar de opinião pública tinha encontrado na música uma saída para a sua marginalização no processo político e para as frustrações decorrentes do estado de coisas, a partir dos acontecimentos de 1964. O público, impedido de participar da escolha dos dirigentes do País, em todos os níveis, passou a participar da escolha de seus líderes musicais. Na verdade, o envolvimento de grande parte da população de alguma forma participante da vida do País, em termos de consumo, nível cultural e acesso às fontes de informação, tinha um caráter extramusical ou, em outras palavras, a música passou a ocupar um espaço mental antes ocupado com coisas mais consequentes. O festival, sendo uma forma de participar, ganhava a participação integral de muitos, que passaram a se interessar e a opinar, com grande antecedência, nos acontecimentos de bastidores, desde músicas e letras concorrentes, até arranjadores, intérpretes e composição de júri. “O Jogral” era, então, o ponto de reunião dos compositores, músicos e de todos que tinham participação direta no prélio musical.




   Praça no bairro do Itaim Bibi recebeu nome em homenagem  a Luiz Carlos Paraná  


Em 1967, “O Jogral” já era um negócio definitivamente bem sucedido. Carlos Paraná chegou, então, ao auge de sua carreira artística. Nosso convívio era diário. Em 1965, eu comprara um pequeno e encantador sítio perto de Atibaia, onde passava os fins de semana. Frequentemente, Carlos ia passar o domingo comigo. Fechava “O Jogral” no sábado ás cinco da manhã, apanhava um ônibus na Estação Rodoviária e descia na estrada que levava ao sítio, a três quilômetros. Fazia esse percurso a pé, nunca quis que eu fosse espera-lo em Atibaia, essa caminhada era mais um testemunho seu do nascer do dia, ele que, vezes sem conta, lá na roça, surpreendera o dia nos trajes menores de suas madrugadas. Passávamos o dia conversando, Carlos almoçava seu regime, certa vez chupamos setenta laranjas.



Logo depois que conheci Carlos Paraná soube que ele tinha uma doença gravíssima e que estava praticamente condenado à morte. Por causa que, só depois da operação que ele fez, em outubro de 1970, foi descoberta, ele tinha varizes nas veias do esôfago e teve a primeira grande hemorragia em 1960. Essa anomalia biofísica é, em regra, provocada pela esquistossomose, por paralisia que se contra em águas contaminadas e que, devido ao seu grande porte, diminui a capacidade de vazão das grandes veias abdominais provocando aumento da pressão “hidráulica” e consequente rompimento das veias superiores. Uma outra causa comum desta anomalia é a cirrose, que provoca crescimento do fígado e consequente compressão das veias do abdome. Carlos houvera feito exame para apurar se tinha contraído esquistossomose, que deu negativo. Depois, Paulo Vanzolini internou-o no Hospital das Clínicas para colheita de tecido hepático que mostrasse o estado do seu fígado, mas este exame – biopsia – é extremamente dolorido e como o primeiro não deu certo, Carlos fugiu do Hospital antes de fazer outro. De qualquer forma, a causa mais comum da cirrose – o alcoolismo – estava afastada porque Carlos só bebia leite. Quando teve uma grande hemorragia, em outubro de 1970, a operação que fez revelou a causa: estreitamento congênito da veia esplênica, que recebe o sangue do baço. Os médicos que acompanharam sua doença – inclusive Paulo Vanzolini – convenceram o Carlos que ele tinha úlcera de estômago. Nunca tive certeza se ele acreditava ou se simulava acreditar, para poupar-se e poupar-nos do compadecimento inevitável. O fato é que ele fazia regime rigoroso, como se tivesse úlcera no estômago.



Quando Carlos não ia ao sítio e eu estava em São Paulo, eu e minha filha Luciana, que então tinha cinco anos, íamos acordá-lo no seu pequeno apartamento de solteiro da Rua Gravataí 23, ap. 68, que Paulo Vanzolini chamava de apartamento “quase-quase”: quase gravata, a rua, e os números, quase outras coisas. Almoçávamos juntos na casa da minha mãe, Carlos já tinha se transformado numa pessoa de nossa família. Aos domingos, no fim da tarde, reuníamos amigos na minha casa da Rua Novo Horizonte, a maioria era de compositores e cantores. Nesta ocasião, 66-67, meu primeiro casamento tinha se desfeito, eu estava solteiro. Carlos era solteiro e nós curtíamos nossa disciplina social, organizando reuniões todas as semanas. Carlos dizia: “não podemos perder tempo senão não vai sobrar nenhuma mulher bonita e inteligente pra nós. Paquerar é a primeira prioridade, o resto é secundário”. Para nós, a qualidade mais importante numa mulher era a inteligência e a sensibilidade. E quando se juntava a beleza, nós dávamos o melhor de nós.



Carlos cantava, eu cantava ás vezes, com o Adauto Santos não me acompanhando, mas me perseguindo – como dizia o Paulo Vanzolini – eu declamava poemas de Carlos Pena Filho, um poeta pernambucano genial, que morreu em 61, com 30 anos. Lembro-me de que uma vez disse para o Carlos uma coisa que o fez rir longamente, a propósito de um amigo que tinha sempre namoradas lindíssimas: “Olha Carlos, eu cheguei à conclusão de que mulher muito bonita ou é neurótica ou é burra ou é mau caráter”. E nos consolamos...



Em 66 tive um romance complicado com uma moça que estava estudando na França. Carlos envolveu-se desde o começo, queria saber de todos os detalhes, fazia previsões, dava conselhos. Era seu assunto predileto. Eu ia quase todas as noites ao “Jogral”, chegava cedo não tinha ainda chegado ninguém. Carlos ia logo perguntando, ansioso: “Tem carta, tem carta?” Quando daquele enredo romântico, apanhava um abajur portátil e sentava-se a um canto para ler a carta. Depois, conversávamos longamente, tentando extrair das dubiedades do jogo romântico conclusões que alimentassem meu sonho. Em seguida, ele me inteirava das novidades sobre sua paixão de ocasião, solitária e não correspondida algumas vezes, outras correspondida mas contraditória, instável ou impossível. Foi nessa ocasião que ele compôs, de parceria com Adauto Santos, De Amor ou Paz:



“Quem anda atrás

De amor e paz

Não anda bem

Porque na vida

O que tem paz

Amor não tem

Seja o que for

Sou mais do amor

Com paz ou sem

Sei que é

Demais

Querer-se paz

E amor também.

Já que se tem que sofrer

Seja a dor só de amor

Já que se tem que morrer

Seja mais por amor.

Vou sempre amar

Não vou levar

A vida em vão

Não hei de ver

Envelhecer

Meu coração

Vou sempre ter

Em vez de paz

Inquietação

Houvesse paz

Não haveria

Essa canção”.



Esta canção lindíssima é o retrato sentimental de Carlos Paraná, que eu transformo em proposta de uma receita milagrosa que, como certos remédios populares, cura todos os males da alma. Sartre, na sua entrevista dos setenta anos, afirma que todos os males do mundo se resumem num só: a reserva, o egoísmo e o desamor. Carlos fez uma proposta para um sentimento de amor específico. Que todos comecem por aí, para ir aprendendo, para chegar à abertura total de amor aos próximos e aos distantes.



A música De Amor ou Paz não tem sequer um adjetivo, e permite concluir que o adjetivo foi inventado não para enriquecer a linguagem, mas para dar lucro aos linotipistas, editores e fabricantes de papel.



Voltando ao Festival de 67, do qual o “Jogral” foi o quartel-general extra-oficial, Carlos concorreu com Maria, Carnaval e Cinzas, que uma noite me mostrou recém-composta. Os interesses que envolviam o festival transformariam sua organização numa verdadeira batalha política. Certa noite, cheguei ao “Jogral” e encontrei o Carlos indignado e disposto a aceitar uma proposta de O Globo de dar uma entrevista denunciando a manipulação de interesses nos bastidores do Festival. Carlos era tímido, quase sempre fechado, e tinha enorme pudor de tratar de seus próprios interesses. Abro um parêntesis e para ilustrar o comportamento de Carlos Paraná e para mostrar um aspecto raro de sua personalidade: seu brio.



Nos tempos em que vivemos, não sei quantos anos, décadas ou séculos antes que o tempo termine sua tarefa de fabricar o Homem e que seja, afinal, promulgada a Lei Definitiva da Vida, em que os equívocos, os preconceitos e os erros, o desamor e a reserva, o egoísmo e a solidão que fazem com que a vida seja uma tragédia para os que a natureza dotou, prematuramente, de sensibilidade – nestes tempos, o valor de cada um é estabelecido, em regra, pelo que cada um possui e não pelo que cada um é. Carlos Paraná tinha uma aguda consciência disso. E, por tê-la, seu comportamento era muitas vezes estranho aos olhos de quem o conhecia superficialmente. Ele se recusava a cantar quando os ouvintes não estavam atentos e, por dinheiro nenhum, se apresentava onde não estivesse absolutamente à vontade. Recusou sempre convites para cantar em festas grã-finas porque, com frequência, nesses ambientes, as pessoas, preocupadas em encher os bolsos, esqueceram-se de encher a cabeça. Também, em meios que se convencionou chamar de aristocráticos ou conservadores, muita gente considera o artista uma espécie de marginal, na melhor das hipóteses curioso, e que, por não gostar de trabalhar, arranjou um jeito de se encostar na sociedade. A verdade é o oposto, o artista é uma raridade humana e é fabricante de emoções para consumo geral e para as pessoas sentirem que estão vivas ainda. Muitos homens – a maioria quem sabe – depois de cumprir a sentença que é a vida, morre sem ter sequer nascido. Não apenas os privados do alimento para o corpo, mas também aqueles privados dos estímulos e das condições para a vida espiritual e emocional, que é o que se distingue a espécie humana das demais. E como se convencionou que é virtude ocultar os sentimentos – o amor, a lágrima, a vaidade até, que é um sentimento sadio e não mórbido – os artistas são, em certos meios, altamente inconvenientes. O brio pessoal de Carlos Paraná e sua extraordinária dignidade pessoal e artística são, seguramente, os aspectos de sua personalidade que mais me impressionam.



Voltando ao Festival de 67, dispus-me a apurar o que estava se passando pois a principal queixa era a de que todos os grandes e bons intérpretes já tinham se comprometido com outros concorrentes, que isso fora decidido na sombra, em prejuízo dos concorrentes de boa-fé. Procurei Paulo Machado de Carvalho Filho, o Paulinho que, apesar das vicissitudes que sua TV enfrentou depois, ganhou um lugar de destaque na história da nossa música popular. Eu houvera, antes, feito uma boa camaradagem com o Paulinho, quando tratei de interesses de Geraldo Vandré, na condição de seu amigo, que houvera se incompatibilizado com a TV Record e cuja contratação consegui, dele e de seus músicos, para um programa musical na Record, Paulinho expôs-me, então o que estava pensando. Compositores mais expeditos e menos tímidos que o Carlos já haviam conseguido comprometer os melhores intérpretes. Do primeiro time, restava apenas Elisete Cardoso, que houvera declarado que só cantaria no festival para defender a música de seu filho que era concorrente. Os demais, ele reconhecia, eram de menor expressão.



Evidentemente, o prestígio, primeiro e, depois, o talento do intérprete tinham grande influência na classificação e depois na premiação da música. Paulinho estava desolado, mas não podia fazer nada. Continuou, porém, interessado, por minha causa e por causa do Carlos, a quem ele estimava muito. E propôs-me procurarmos juntos uma solução, Recordamos todos os grandes cantores do Brasil, e cada um tinha um impedimento ou um inconveniente sério. De repente, Paulinho me disse: “Para você ter uma ideia do meu interesse, estou disposto a convencer o Roberto Carlos que não admite participar de um festival, a defender a música do Carlos. O que você acha?”. Roberto Carlos estava no auge de sua carreira, era um rei no Brasil. Nós todos fazíamos sérias reservas ao seu comportamento artístico, líder que era de um movimento espúrio e alienante chamado “Jovem Guarda” e que cultivava a versão cabocla do iê-iê que nos era imposto. Mas ele tinha grande prestígio popular e era excelente intérprete. Respondi de pronto que concordava e que iria tentar convencer Carlos.



                                               Roberto Carlos  em 1967

Reunimo-nos em minha casa eu, Carlos, Aluísio Falcão e Paulo Vanzolini. Quando fiz a proposta, Carlos reagiu quase indignado. Mas nós argumentamos com paciência e ênfase e mostramos a ele que, se Roberto Carlos aceitasse, ele é que estaria fazendo uma concessão e não nós. Que seria uma forma de atraí-lo para a música brasileira de qualidade e comprometê-lo com a nossa linha. Carlos afinal, concordou. Paulinho conseguiu convencer Roberto Carlos e no sábado seguinte, a tarde, fomos à casa dele – um apartamento na Rua Albuquerque Lins, a gente precisava entrar na cozinha batendo na porta segundo um código, tal o assédio da meninada requebrante. Roberto Carlos gostou muito da música que se harmonizava perfeitamente com o seu estilo de cantar. Nesse festival, Maria, Carnaval e Cinzas ganhou o quinto lugar, Roberto Carlos, com ela, um “Disco de Ouro” pela venda de centenas de milhares de cópias. Foi o maior sucesso popular do festival, como registram os jornais da época.


As intrigas, boatos e calúnias que antecederam o Festival de 67 davam bem a dimensão dos interesses em jogo. Antes da primeira eliminatória, um radialista, cujo nome me escapa, que tinha um programa de grande audiência, denunciou que Maria, Carnaval e Cinzas era plágio de uma milonga argentina chamada Negra Maria. Carlos ficou acabrunhadíssimo e durante alguns dias sumiu de nós aquele Carlos irônico, sensível, doce-amargo que conhecíamos. A calúnia atingira-o fundamente. Até que, uma noite, ele me entregou uma folha datilografada esclarecendo que, para ele, importava a opinião e o juízo de pouquíssimas pessoas. E que eu era uma delas. Reproduzo a seguir o que Carlos escreveu:



Peço licença para contar como nasceu e como querem que morra Maria, Carnaval e Cinzas, samba de minha autoria, inscrito e classificado no Festival da TV Record.



Nasceu assim: Elza Soares havia defendido muito bem De Amor ou Paz no festival anterior. Pensei fazer, por isso, um samba especialmente para Elza, um samba que se adaptasse melhor ao seu estilo quente. Imaginei-a cantando sua própria vida de sambista. Comecei, é óbvio, por onde se começa qualquer vida: pelo nascimento.



Onde deve nascer uma sambista? No morro



Em que época do ano lhe fica melhor nascer? No carnaval é claro, durante a festa máxima do samba.



O que lhe fica melhor como enxoval de batizado? Uma fantasia. Real ou imaginária.



Está pronta a primeira estrofe.



Agora eu precisava batizá-la. Tinha que ser Maria. Não só porque Maria é o mais-comum dos nomes em todo o mundo, mas porque é o mais belo e puro de todos os nomes de mulher. Não sou pai, mas se o fosse, minha primeira filha chamar-se-ia Maria. Maria somente, sem ser das Dores, das Graças ou de uma flor qualquer, ainda que essa flor fosse a rosa. E para completar a segunda estrofe, Maria quer ser motivo de muito amor e muito samba.



Agora a terceira estrofe. É lenda, creio que universal, que quem nasce de dia tem sorte, fortuna, vida alegre, favores do destino. Quem nasce de noite, tem tudo ao contrário. Minha Maria não nasceu de dia, nem de noite, mas de madrugada, ao fim da primeira noite de carnaval. Então seu destino seria incerto. Daí o “Quem sabe a sorte lhe sorriria...” da terceira estrofe.



Na quarta e última estrofe da primeira parte, Maria chegaria ao máximo que pode chegar uma criança nascida no morro, em pleno carnaval e destinada a ser sambista. É porta-estandarte, rainha do samba, cobiçada por todos os foliões. E estará em todos os sonhos.



Mas como o que se sonha para uma menina pobre, nascida no morro e destinada ao samba, dificilmente se realizava, quis a sorte, uma vez que o seu futuro era incerto, que Maria morresse criança, no mesmo carnaval em que nasceu. Daí toda a segunda parte da letra, onde todos os sonhos se desmoronam. Ela não seria a gloriosa porta-estandarte, mas também não teria o destino infeliz de toda a criança nascida nas condições em que ela nasceu.



Mas, à medida em que meu trabalho chegava ao fim, comecei a notar que o samba não serviria para a interpretação de Elza Soares. Carecia de interpretação mais contida e mais triste. Ficou então para Roberto Carlos, um dos melhores, mais sóbrios e tristes dos nossos cantores.



Quanto ao fato de o samba conter uma coincidência temática com a milonga Negra Maria, eu não poderia evita-la, mesmo conhecendo, como de fato conhecia essa música.



O único ponto coincidente é: Negra Maria nasceu e morreu no carnaval.



A coincidência temática é uma ocorrência comum na arte. A morte do poeta Garcia Lorca, por exemplo, inspirou Aragon, Guillen, Neruda, Vinícius, Paulo Mendes Campos e sei lá quantos outros poetas no mundo inteiro.



A morte no carnaval, antes e depois de mim e do autor da milonga, já foi tema de inúmeras músicas (lembram-se daquele samba que começava assim: Quero morrer no carnaval, na Avenida Central...?). E a morte de uma porta-estandarte de escola de samba inspirou um dos mais belos e famosos contos de Aníbal Machado.


Agora, para finalizar, uma única pergunta: Maria, Carnaval e Cinzas é ou não é um legítimo samba, assim como Negra Maria uma típica milonga argentina?”.



Alguns meses antes do Festival, cuja comemoração só desagradou aos nossos fígados, uma noite eu estava no “Jogral”, que sempre foi uma espécie de dependência na minha casa, quando Carlos se aproximou e me entregou um violão com a sua capa, dizendo: “É pra você”. E eu respondi: Mas, Carlos, eu tenho violão...”. E ele completou: “Tem uma coisa na barriga dele pra você”. Tirei a capa do violão e encontrei um papel dobrado lá dentro. Neste papel, estava escrito o que reproduzo:



“Marcus,

este meu companheiro de tantos anos, parceiro de minhas canções de amor até aqui, eu gostaria de oferece-lo à mulher amada. Mas ela passou e passará sempre. Fica então para você, porque os amigos passam menos e até há os que nunca passam. 

Carlos,  S.P. 6/3/67.”



Paulo Vanzolini andou espalhando que eu choro até no Dia das Mães, o que nunca ficou provado. Mas tenho várias testemunhas que ele chorou no casamento do Adauto Santos. O fato é que a maioria das pessoas pensa que sentir, e revelar, é uma deformação, é um desvio de conduta. Assim então as coisas nesta altura da História da Civilização. Depois de milhões de anos da chegada do Homem á Terra, acredita-se que a principal virtude da vida é esconder os sentimentos. Macho mesmo é o que não chora, que não ama, que não sofre. O grande laboratório desta teoria foi o Vietnã do Sul, como os americanos confessaram em Corações e Mentes.



Naquela noite não me lembro se chorei, nem importa. Lembro-me que senti a vida na sua densidade máxima, lembro-me que brotou dentro de mim uma qualidade nova de alegria, e ela continua lá intacta, lembro-me de uma sensação muito clara de enriquecimento de quem conseguiu fazer treze pontos no jogo mais importante da vida, que é o da relação humana. Desde então, o violão está dependurado na principal parede da minha casa, o bilhete emoldurado está embaixo, o corpo do Carlos deve estar reduzido aquilo que o tempo não conseguiu ainda resgatar, mas seu espírito está definitivamente preservado e ele mora dentro do velho violão pendurado na parede, lá onde, um dia, faz tempo, Carlos depositou um bilhete feito só de amizade, a forma de amor que é a substância básica de todos os sentimentos humanos. E esse espírito associou-se a mim para fazer coisas que ouço dizer que são muito importantes, como começo a relatar a seguir.

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

A música e a interpretação do Roberto Carlos são ótimas.