segunda-feira, 2 de julho de 2018

O Imaginário da Boca parte II: o cinema da rua do Triunfo


O Imaginário da Boca parte II: o cinema da rua do Triunfo

O cinema da rua do Triunfo

Por Inimá Ferreira Simões
Seleção e transcrição: Matheus Trunk


“Era eu à porta do Soberano. O Soberano, bar-restaurante, é na rua do Triunfo. A rua do Triunfo é em São Paulo, CEP 01212. Alguns chamam a do Triunfo de ‘a nossa Hollywood’...Lá se enfileiram todas as empresas cinematográficas paulistanas, mais o Soberano, o Hotel Copa do Mundo e os últimos bares da cidade ainda servidos por garçonetes...” REY, Marcos. O rei da pornochanchada. In: Oitenta. Porto Alegre, LPM, 1980. P. 91-101.

“A Boca existe, e uma das possibilidades de apreendê-la é conhecer sua localização geográfica. É a mesma paisagem que circunda qualquer terminal rodoviário ou ferroviário das grandes cidades brasileiras...Tudo sugere decadência, marginalidade e um certo mistério...Então subitamente, cruza-se com uma carroça de madeira onde se que equilibram dezenas de latas de filmes. E os homens que a empurram poderiam ser confundidos com mendigos. Mas são os que levam os filmes para a Estação Rodoviária (e Ferroviária), constituindo um dos elos da distribuição cinematográfica do país: são os estivadores do cinema”.

Dessa maneira se inicia o texto de um audiovisual elaborado pelo IDART sobre a chamada “Boca de Cinema” de São Paulo, o tradicional reduto do comércio distribuidor, transformando na década de 70 em núcleo mais atuante da produção cinematográfica nacional. Para quem chega pela primeira vez à rua do Triunfo, a impressão certamente não é das melhores. Os botecos, inferninhos suarentos, hotéis de alta rotatividade e a falta típica que gravita em torno desses lugares, podem sugerir ao olhar ingênuo uma imediata relação de causa e efeito com a pornochanchada. Trata-se do primeiro e grave engano. Explica-se.

A localização da “Boca” neste pedaço da cidade obedeceu motivos puramente estratégicos. Desde os tempos da Distribuidora Matarazzo (responsável pelos Programas Matarazzo), que mantinha um escritório na Rua General Osório, lá pelos anos 20, ouve-se falar de cinema por ali. Na década seguinte, os lucros obtidos pelas importadoras brasileiras se multiplicaram em razão do crescente mercado cinematográfico brasileiro (em especial o paulista), o que levou os estúdios americanos a cuidarem de sua própria distribuição.

Oswaldo Massaini, fundador e diretor-presidente da Cinedistri conhece a região desde 1937, quando ingressou no cinema através de um cargo de auxiliar de contabilidade nos escritórios da Distribuidora Brasileira de Filmes. Ele se lembra das filiais da Fox, Universal, Columbia, RKO-Radio, United, Paramount. A maioria dos escritórios ficava nas proximidades das estações ferroviárias, para facilitar a remessa dos filmes que embarcavam para o interior e estados vizinhos como Mato Grosso, Minas, Goiás e Paraná, alcançados, naquela época, pelo trem. Muito antes então do bairro de Santa Efigênia tomar a configuração atual, ali estavam as empresas ligadas ao comércio cinematográfico. Portanto, o cinema chegou antes.

Na verdade, “A Boca de Cinema” pode ser identificada com a rua do Triunfo, onde funciona o centro das atividades, um edifício de 10 andares completamente tomado por escritórios, e cujos elevadores transportam gente e latas de filmes. Produtoras, empresas de distribuição, os sindicatos- dos Produtores, Exibidores e mais recentemente, uma sala do Sindicato dos Atores e Técnicos (que timidamente procura agir na Boca), a sede da APACI – Associação Paulista dos Cineastas, Federação dos Cineclubes e outras entidades. Em volta do prédio e nas ruas próximas se espalham mais escritórios, lojas vendendo equipamento para as salas de cinemas, oficinas de manutenção e reparos e pequenos “estúdios” de fundo de quintal, onde se fabricam e constroem equipamentos. Na esquina da Rua do Triunfo com Vitória está a filial da Embrafilme.

Os bares merecem um parágrafo à parte. É neles que, durante uma refeição à base de PF (prato feito) um maquinista ou eletricista pode arrumar trabalho para as semanas seguintes sem garantias de continuidade, o que significa, na prática, longos períodos de inatividade a então garantir ao balconista o pagamento das contas penduradas. Atores, mocinhas, acreditando no estrelato cinematográfico, figurantes, “profissionais”, produtores, jornalistas, fotógrafos, todos se encontram ali. Pode ser o Soberano ou o Bar do Ferreira. O primeiro mais tradicional e testemunhou praticamente todos os momentos de euforia e depressão dos últimos 15 anos. Ao final da tarde os bares ficam cheios de gente e chega o momento da troca de informações. Desde “dicas” sobre uma nova produção que pode dar emprego a alguns, até projetos secretos ou fofocas sobre alguma ocorrência nas filmagens.

Voltando a Oswaldo Massaini – o mais antigo personagem local – e seu início de carreira, vale lembrar que ele monta sua própria empresa em 1949, após trabalhar e conviver longo período com Adhemar Gonzaga e a Cinédia. A Cinedistri inicia suas atividades limitando-se à distribuição, e dois anos depois muda-se para a rua do Triunfo, ponto de concentração do comércio cinematográfico. Decorrem mais três anos e Massaini se lança à empreitada mais ambiciosa: a produção. Gradativamente a Cinedistri torna-se uma das empresas cinematográficas mais sólidas do país.


Numa perspectiva distanciada percebe-se o quanto, nos anos 50 e início da década seguinte, o cinema era compartimentado. Na rua do Triunfo ficava o comércio, a distribuição. Longe dali, na rua Sete de Abril, em frente ao Edifício dos Diários Associados que obrigava a Sociedade Amigos da Cinemateca (SAC) e o Museu da Arte de São Paulo, ficava o bar “Costa do Sol” onde sentavam-se críticos, diretores, enfim, a “nata” do cinema. A divisão rigorosa começa a ser abolida a partir de 1967/1968, momento em que chegam diretores e produtores para cuidar da venda de seus filmes e terminam por se instalar ali mesmo na Boca. Caso de Luiz Sérgio Person, diretor de “São Paulo SA” (1965), que circula pela rua do Triunfo e posteriormente abre o escritório de sua produtora e distribuidora. Ali produz A Moreninha (1970) e O Caso dos Irmãos Neves (1967). Ozualdo Candeias, depois de fazer na base da amizade e poucos recursos o seu filme A Margem (1967) também passa a circular pelo Soberano e imediações. E Mojica (o Zé do Caixão), que ora monta sua escolinha de atores na Casa Verde, ora na Mooca ou Lapa, é figura constante no local.

A mudança do SAC e do Museu de Arte de São Paulo para outros pontos na cidade marca o final de uma época. E o início de outra, em que a Boca vai assumir papel central no cinema paulista. Por volta de 1967, 1968 o Soberano começa a receber estudantes de cinema, aficionados, fotógrafos e jornalistas que vão constituir o núcleo do chamado “Cinema da Boca do Lixo” (ou cinema udigrudi ou ainda cinema marginal), precocemente interrompido. Jairo Ferreira, que durante anos exerceu a crítica na “Folha de São Paulo”, participava desse grupo junto a Antônio Lima, então no “Jornal da Tarde”, Carlos Reichenbach Filho, João Callegaro, Carlos Ebert, José Agripino, J.S. Trevisan e outros. Era um pessoal jovem, não identificado com as ideias dos medalhões que viam na Boca o lugar do comércio e por isso mesmo indigno de recebe-los. Para os moços, dispostos a viabilizar suas ideias, o que importava era que ali se fazia cinema. Em meio às discussões no Soberano chegaram a postular uma estética da Boca do Lixo e redigir o manifesto do cinema cafajeste, um documento que não chegar a ter maior expressão, mas que contém ideias que serão aperfeiçoadas e transformadas nas imagens de O Bandido da Luz Vermelha dirigido por Rogério Sganzerla, hoje o clássico do movimento Boca do Lixo.

É preciso ressaltar que antes da chegada desses jovens já se produzia muito na Boca. A Cinedistri, que no início de carreira se dedicara a comédias ligeiras com Dercy Gonçalves, Ankito ou Arrelia, adquire prestígio em 1957 a partir do sucesso de crítica obtido com Absolutamente Certo e a consagração definitiva cinco anos mais tarde, quando a mesma dupla Massaini-Anselmo Duarte realiza O Pagador de Promessas, Palma de Ouro no Festival de Cannes em 1962.

Foi a época de ouro da Cinedistri. Os jornais publicavam diariamente novos projetos da empresa e as opiniões de Oswaldo Massaini, a esta altura já transformado em líder da classe. Cada lançamento de filme era um acontecimento social na cidade: bandas uniformizadas à porta dos cinemas, presença de autoridades, o traje de gala, etc. Sem falar dos réveillons promovidos na residência dos Massaini, que provocavam verdadeiro frisson, pelo menos nas colunas sociais, tanto os nomes famosos que participavam. A um gesto de desencanto do tradicional produtor (traduzido por Ignácio de Loyola Brandão em sua coluna na “Última Hora”), que ameaça abandonar a produção e distribuição de filmes brasileiros para dedicar-se exclusivamente ao comércio do produto estrangeiro, todos se sensibilizam, a ponto de Paulo Emílio Salles Gomes redigir um artigo “Herói, Massaini, Vítima”, na publicação “Brasil Urgente”. Mas eram outros os tempos, e a figura elegante da Massaini, um Selznick dos trópicios a proteger paternalmente seus contratados e jovens talentos, que contribuí para entidades filantrópicas e aparece constantemente nos jornais, está irremediavelmente superada pelos fatos subsequentes que transformam o cinema brasileiro.

Alfredo Palácios e Antonio Polo Galante se juntam em 1968 para formar a Servicine, produtora e distribuidora. Por seu lado, Manuel Augusto Sobrado Pereira, produtor de Zé do Caixão, realiza Meu Nome É Tonho sob direção de Ozualdo Candeias. Para promover o lançamento do filem Candeias bola um coquetel no bar Soberano que é anunciado assim pelo jornal “O Dia” de 6 de novembro de 1969: “Agora que o delegado Wilson Richetti limpou a Boca do Lixo, o cineasta Ozualdo Candeias pode realizar um velho sonho seu...”. Candeias que provavelmente discorda do raciocínio jornalístico, conta como foi a organização: “...na verdade, o coquetel é só um pretexto para um bom papo. Não existe razão premeditada. É que todo pessoal está aqui noite e dia. Eu bolei essa reunião para o pessoal conhecido. Haverá cachaça sim. Trouxe 10 litros de São Carlos. A Aurora Duarte telefonou perguntando se não haveria uns salgadinhos para comer. Eu lhe disse que não, porque estava duro e isso já é ultrapassado. Aí então ela se prontificou a trazer alguma coisa por sua conta. Quem vai pagar o aluguel do salão é a Bibi Vogel, que também é a atriz principal da fita. Não fora isso, não haveria nada”.

O Grupo “Cinema da Boca do Lixo” consegue realizar seus filmes. Primeiro As Libertinas em três episódios e dirigidos por Antônio Lima, Carlos Reichenbach e João Callegaro. De acordo com o depoimento de Jairo Ferreira, a ideia era inventar alguma coisa nova, um novo filão (ainda que neste caso a inspiração tenha sido o cinema erótico francês da época) que interessasse o público. Pelo visto os resultados correspondem, pois As Libertinas permaneceu várias semanas em cartaz nos cinemas centrais. Uma das atrações e inovações do filme foi sem dúvida a divulgação e as frases promocionais boladas pelo grupo e que, ao que parece, fizeram escola. Os anúncios publicados na imprensa: “um filme SEXO de João Callegaro (sexo-diretor), Carlos Reichenbach (sexo-diretor), Antônio Lima (sexo-diretor)...Três sexo-estórias: 1º sobre sexo; 2º sobre sexo; 3º sobre sexo.. “Todos gostam da beleza! Todos apreciam a ousadia! Todos vão gostar de...As Libertinas...”.

Jairo considera As Libertinas um marco, o filme que deflagrou o movimento erótico, pelo menos na sua versão paulista. É difícil avaliar o quanto um filme como este poder ser influenciado, mas de qualquer forma o modelo – produção barata + erotismo – dera certo e nenhum produtor ou candidato a..., iria ignorar o fato. Mas o que parece ser decisivo para o incremento da produção, e isso não se pode esquecer, é a criação, em 1966, do INC (Instituto Nacional de Cinema) e o surgimento da lei de obrigatoriedade reservando uma parcela do calendário ao filme brasileiro no circuito comercial. Esses fatores representam uma garantia mínima de sobrevivência do cinema brasileiro. Além disso, o final da década de 60 anuncia claramente que o cinema erótico – pelo menos nos EUA e Europa – iria tirar muitos produtores das dificuldades dos anos anteriores. O produtor brasileiro, fiel tradutor das ondas internacionais ao “nosso jeitinho” não está desatento às novas formulações. Ele só espera que alguém comece...

Para o cinema brasileiro, ás voltas com mais uma de suas crises cíclicas, a onda erótica, via filmes franceses e comédias italianas de Viccario chega no momento exato. Até 1972, ano do sucesso de A Viúva Virgem, a produção de pornochanchada se orienta por um empirismo total. O filme de Rovai (um paulista a esta altura já radicado no Rio), considerado hoje um clássico no gênero, vai afastar as últimas hesitações que porventura persistissem, em relação à viabilidade econômica desse filão que batia à porta dos produtores. Já não existem mais dúvidas quanto às possibilidades desses filmes junto ao grande público e em São Paulo – distante dos órgãos oficiais de financiamento – é hora de investir.

A confluência na Boca, de pessoas de origem humilde distinta e manifestando pontos de vista divergentes, criou um ambiente estimulante e efervescente que durou até 1972 mais ou menos. Era possível cruzar, nas calçadas da rua do Triunfo, com Roberto Santos, Luiz Sérgio Person, João Batista de Andrade, Oswaldo Mendes, Francisco Ramalho, produtores, distribuidores, gente desempregada e, é claro, o pessoal do “cinema da Boca do Lixo” ou cinema marginal, sempre o mais ativo e disposto a movimentar o ambiente, ainda mais que era integrado por dois jornalistas que divulgaram nas suas respectivas publicações as ideias de um novo cinema. Jairo Ferreira, sob o pseudônimo de Marshall Mac Gang, escrevia no “São Paulo Shinbum”, periódico destinado à colônia japonesa, que lhe concedia espaço para escrever à vontade num livre exercício da criação. O outro era Antônio Lima, do “Jornal da Tarde”. Os jornais, que já haviam anunciado amplamente o coquetel de pinga oferecido por Candeias para o lançamento de “Meu Nome É Tonho”, dão espaço a uma nova iniciativa: o “Prêmio Ferradura” (de ouro, de prata e de bronze) destinado aos piores filmes do ano, Lima, Candeias, Bernardo Vorobov, Mojica, Carlos Reichenbach, lançam a ideia com a finalidade evidente de tirar a Boca de seu comodismo e sonolência. Os críticos da imprensa paulistana convidados a participar do júri, se mostraram reticentes. Candeias, premiado com o Air France pela direção de “A Herança”, explica através da coluna de Leon Cakoff no “Diário da Noite”, que o troféu não era depreciativo, “tanto que tem muita gente gostando da ideia”, dizia. E como acho que devemos reconhecer isso, nada melhor que começar a divulgar e ‘premiar’ os piores filmes de cada ano”. Ainda no primeiro semestre de 1972, são anunciados os prêmios para os filmes exibidos em 1970/71 na capital:

1970
Ferradura de ouro (pior filme) / As Gatinhas, dirigido por Astolfo Araújo
Ferradura de prata (filme menos pior) / Uma Pistola Para D´Jeca, Mazzaropi
Ferradura de bronze (o melhor entre os piores) / Audácia, dirigido por Antônio Lima, João Callegaro e Carlos Reichenbach

1971
Ferradura de ouro / Um Certo Capitão Rodrigo, dirigido por Anselmo Duarte
Ferradura de prata / Idílio Proibido, Konstantin Tkaczenko, Cinedistri
Ferradura de bronze / Se Meu Dólar Falasse, Carlos Coimbra

“O Oscar brasileiro, instituído pela Academia de Artes do Lixão, segundo a definição de Marshall Mac Gang, foi dado a várias tendências e nomes conhecidos, provocando imediato mal-estar, principalmente entre os laureados e aqueles que consideravam a iniciativa prejudicial ao cinema brasileiro. Foi provavelmente o derradeiro lampejo de uma era marcada pela circulação de ideias novas e pouco convencionais, que dá lugar à fase da maturidade, da prioridade absoluta ao lucro ou como diria um profissional qualquer da Boca: ‘menos conversa e mais ação’.”

Nesse interím, a produção de filmes se distribuía por vários gêneros. A Servicine, de Galante e Palácios, é o próprio ecletismo vigente: de 1968 a 1971 produziu e participou de filmes tão distintos como Cangaceiro Sanguinário, A Mulher de Todos (Rogério Sganzerla), Lance Maior (Sílvio Back), Memória de Helena (David Neves), Sertão em Festa e Rogo a Deus e Mando Bala.


Encerrando um ciclo (1968-1972) com o “Prêmio Ferradura”, a maioria dos filmes doravante vai s referir ao gênero erótico, ainda sob formulações híbridas (policial-erótico; terror-erótico; etc). Na Cinedistri, a produtora que se destacou solitariamente na década de 60, Aníbal se revelou duplamente precoce. Em 1968, o filho de Oswaldo Massaini produziu Lua de Mel e Amendoim com a Sincro Filmes de Rovai, e vai atravessar a década mantendo alta contabilidade nos filmes batizados com títulos sonoros do tipo A Infidelidade Ao Alcance de Todos, A Superfêmea, Elas São do Baralho, O Homem de Itu e o recente Histórias Que As Nossas Babás Não Contavam. O pai, fundador e chefe do clã, se mantém afastado do erotismo e neutro em relação ás formulas de Aníbal, preferindo os temas históricos. Elias Curi da Brasecan, em 1973, compra filmes inacabados abaixo do preço, termina-os de qualquer maneira e faz acordo com exibidores para obter tratamento preferencial no lançamento de seus filmes em algumas salas, ente as quais o Cine Olido.

Nem mesmo empresas tradicionais como a Paris Filmes (distribuidora brasileira com filmes nacionais e importados, e responsável pela enxurrada de Kung-Fus) se omitem, deixando notar a sua presença em Macho e Fêmea, filme dirigido por Ody Fraga em 1973, que vai antecipar uma prática recorrente na Boca – a entrada do distribuidor na produção. Essas empresas, que acompanham atentamente as oscilações e tendências do mercado, tanto interno quanto externo, importam periodicamente alguns filmes problemáticos para efeito de teste. Um filme sueco ou dinamarquês com cenas explícitas de sexo seria pouco tempo atrás interditado, daí lançar-se mão de um expediente muito simples: convoca-se um produtor que é orientado para preparar um sucedâneo, uma tradução possível para “as nossas condições”. Em outras palavras, um filme com amplas possibilidades de aprovação pela censura federal. Nesse caso, a surrada argumentação de alguns críticos e jornalistas definindo a pornochanchada como mero reflexo da censura, não deixa de ter algum sentido.

O gênero erótico não se desenvolve ao acaso. Aqui ele se aclimata de tal maneira, toma expressão tão peculiar, que após o necessário tempo de adaptação seus vínculos com os modelos europeus – principalmente com o italiano – praticamente desaparecem. Como o futebol, que importado encontrou aqui sua expressão mais criativa, a pornochanchada se tornará – ainda que na condição de bode expiatório das mazelas nacionais – o mais êxito de público em toda história do cinema brasileiro.

O segredo de sua rentabilidade, apoia-se em boa parte nos esquemas de produção barata, viáveis a partir de certas medidas: tempo de filmagem reduzido, mão de obra mal paga, anúncios velados (merchandising), associações com empresários, etc...A perspectiva de lucros certos e rápidos atrai investidores alheios ao mundo do cinema: comerciantes, fazendeiros, pequenos industriais. Aumenta a oferta de trabalho para os técnicos, alguns deles remanescentes dos estúdios da Vera Cruz e Multifilmes, outros que chegam da TV (com o fechamento da TV Excelsior, em 1970) e na premência, formam-se técnicos da noite para o dia. Subitamente novos nomes se incorporam ao elenco técnico local. Produtoras são montadas, realizam um único filme e fecham logo em seguida para reabrir com nova composição e outro nome. Cumpre-se então a rotina na rua do Triunfo e imediações, onde o aluguel barato é estímulo para a instalação de escritório.

As perspectivas otimistas não contagiam os exibidores. Gilberto Ferraz, diretor de uma empresa ligada ao ramo, explicava ao jornal Folha de São Paulo, que a reserva de mercado implicava “na redução de exibição do filme estrangeiro e o que se obtém é a menor frequência ao cinema...e que a pornochanchada (cita alguns títulos) não obteve o beneplácito do público”. Uma afirmação contraditória frente aos dados fornecidos pelo INC (Instituto Nacional de Cinema) em seu relatório de 1974, onde se mostrava que 18 salas paulistanas exibiram filmes brasileiros por mais de 120 dias, enquanto o prazo obrigatório não ultrapassava 84. Já em 1973, filmes como Os Mansos (4,3 milhões), A Viúva Virgem (5,7 milhões) e Como Era Boa A Nossa Empregada (4,1 milhões), superavam a renda de filmes estrangeiros lançados sob intensa divulgação nos meios de comunicação de massa, caso de O Destino do Poseidon (3,6 milhões), Horizonte Perdido (3,9 milhões) e Essa Pequena É Uma Parada (3,6 milhões). No ano seguinte só quatro filmes estrangeiros (O Exorcista, Papillon, Golpe de Mestre e Era Uma Vez em Hollywood) superaram as renda média das produções nacionais. As Aventuras de Rabi Jacob, de origem francesa e público garantido, não suplanta, mais, por exemplo, O Descarte ou As Mulheres Que Fazem Diferente.

De maneira geral, o exibidor, indiferente às dificuldades que enfrenta o cinema nacional, não vê com simpatia a emergência de um gênero definido e suficientemente rentável para preocupar o exportador estrangeiro, que repassa a diminuição dos lucros ao negociante brasileiro. Este, organizado que está em função do cinema americano e condicionado à “lei natural” do cabeça de lote (a grande produção que dá lucros elevados e traz na sua esteira dezenas de bagulhos), se preocupa com o avanço do cinema brasileiro no mercado. Nesse contexto, periodicamente volta à carga brandindo argumentos ás vezes razoáveis, ás vezes ridículos. O estribilho é invariável, sempre lembrando que os filmes eróticos brasileiros apelam para a nudez gratuita e por isso acabam levando o gênero ao descrédito do público.

As reclamações diminuem à medida que “esses filmes, que exploram com repetição extremada a temática sexual”, rendem acima das expectativas mais otimistas e passam, agora sistematicamente, a quebrar recordes de renda nos cinemas centrais de São Paulo. Um exemplo recente, ocorrido em junho de 1980, é A Noite das Taras – com a chamada de porta de cinema: “O título já diz tudo” – produzido por David Cardoso e dirigido por ele, mais John Doo e Ody Fraga, com renda diária acima de 300 mil cruzeiros no cine Marabá.

Há um momento, na segunda metade da década passada, que o clamor contra a pornochanchada cresce e os exibidores – sempre adotando postura ambígua – já não estão mais sozinhos. D. Vicente Scherer, cardeal de Porto Alegre, adverte contra a onda de pornografia e imoralidade. O deputado Ary Kffuri da Arena paranaense “propõe a cassação de cineastas em atendimento a uma reivindicação da União Cívica Paranaense”, e até mesmo Edson Arantes do Nascimento  (Pelé) dá o seu palpite, e confirma que a pornochanchada prejudica a imagem do Brasil no exterior. Usando a expressão cunhada por Paulo Emílio Salles Gomes é possível, neste último caso, dizer que se trata do bode exultório falando do bode expiatório.

Na mesma linha de lamentações se coloca a maioria de críticos cinematográficos. “Produto espúrio”, “subproduto”, “logro” e “lixo” são algumas das expressões mais frequentes. Ely Azeredo, comentando no “Jornal do Brasil” de 15 de dezembro de 1977 a incoerência do processo censório em vigor na época, observa que os “cortes impostos a ‘O Silêncio’ (de Bergman) demonstram a falta de visão para perceber que o filme, além de circular em faixas de público devidamente informadas, poderia, na hipótese mais ousada, produzir alguns minutos de choque salutar. A Praia do Pecado (obs: filme nacional dirigido por Roberto Mauro e estrelado por Zélia Martins, que obteve grande êxito empatando nas primeiras semanas com A Profecia) só encontrará entusiastas em faixas turvas daquela intimidade com a sordidez que caracteriza personagens da Boca do Lixo paulistana, focalizada no roteiro...”.

A pornochanchada torna-se então uma distorção comercial para o exibidor, uma distorção moral para setores conservadores do clero e da sociedade brasileira, e distorção estética para os críticos. Caso a esta altura faltem ainda argumentos, resta a saída comum a todos: culpar o espectador, que na sua eterna e santa ignorância assiste a tais filmes. Aliás não é de outra coisa que falava Mario Graciosa, então diretor da Embrafilme, ao afirmar pelo Estadão que não há filmes eróticos, pois “O espectador é que é erótico, por causa de seu estado de espírito ou por ser solteiro e ter dificuldades de encontrar um companheiro”.

Mas o que importa é perceber que os exibidores logo se associam na produção de filmes, garantindo lucros para a pornochanchada. Constatado o êxito indiscutível, até mesmo o CIC – Cinema Internacional Corporation – do truste americano Gulf-and-Western que absorveu a Paramount e a Metro, passa a realizar filmes no Brasil depois de ter adquirido inúmeras salas pelo país. A CIC produz, distribui e exibe filmes como Tangarella, a Tanga de Cristal (1975) e O Motel (1975), que satisfazem a definição legal de filme brasileiro e resolvem parcialmente as dificuldades de remessas de lucros para o exterior.

A Haway, tradicional grupo exibidor, organiza sua própria produção e passa a exibir filmes “casa”, para o preenchimento do período reservado ao filme brasileiro. Em outros casos, o distribuidor tradicional de filmes estrangeiros como a Paris e a Marte Filmes que, a partir do know-how adquirido na comercialização, investem na realização de seus próprios filmes.

A momentânea identidade de interesses entre produtor e exibidor resolve grande parte dos problemas do cinema brasileiro, o que não chega a configurar nenhuma novidade. Já na época das chanchadas da Atlântida, o grupo Severiano Ribeiro (que mantém cinemas do Rio de Janeiro até o extremo norte do país) ao lançar criteriosamente, após divulgação apropriada, os filmes em seu circuito, nada mais fazia que cuidar de seus próprios investimentos, em virtude de participação acionária na produtora. O convívio entre produtor exibidor na década de 70 se aprimora, se consolida e se sofistica até o ponto de Antônio Polo Galante, que se inicia na condição de varredor de estúdios na Maristela – e chega à condição atual de “Midas da Boca” – canalizar boa parte de sua produção no atendimento de encomendas feitas pelos grupos exibidores ou distribuidores tradicionais.

Poucos como ele, souberam aproveitar os estímulos indiretos – a conjuntura favorável – que deflagraram o boom da pornochanchada. Agindo dentro dos limites de segurança, arriscando pouco em seus empreendimentos, ele conseguiu montar uma empresa sólida, construir estúdios, comprar equipamento e se preparar para qualquer eventualidade desagradável.

A atividade cinematográfica, o retorno do investimento apresenta peculiaridades específicas e exige antes de tudo experiência, macetes e uma boa dose de arrojo, e não basta essa última característica – presente em inúmeros exemplos de comerciantes, industriais ou fazendeiros que investiram em cinema – para garantir a sobrevivência e, quem sabe, prosperidade. A estória de Lincoln, o lenhador que chegou a presidência de um país, ou a versão italiana de Sofia Loren e sua trajetória do escritório ao estrelato mundial, ilustram a natureza de certas fantasias que embalariam muitos produtores improvisados que aportaram na Boca, foram mal sucedidos e voltaram aos seus negócios de origem.

David Cardoso, Cassiano Esteves, os Massaini na Cinedistri, a Titanus (produtora da Fama Filmes), Galante, Cláudio Cunha, Fauzi Mansur, Tony Vieira, Manuel Augusto Sobrado Pereira (MASP Filmes) formam o time sobrevivente no início da década atual. Por caminhos diferentes, encarnando concepções distintas de cinema, foram mais ou menos bem sucedidos, conforme o caso. Concretamente, reuniram condições para continuar ativos. Galante, por exemplo, geralmente precisa aprontar filmes com rapidez para atender o exibidor. Para isso contrata profissionais para desempenharem funções dentro de um quadro previamente definido, e sem lugar a quaisquer tipos de veleidades. A típica produção B brasileira. Massaini, pai e filhos, consolidaram a Cindistri acima das oscilações em que vive o cinema brasileiro. Cláudio Cunha se associa à Brasil Internacional Cinematográfica, de Alfredo Cohen; David Cardoso é o protótipo do jovem empresário bem sucedido, até nos blazers que mostra em suas visitas cada vez mais esporádicas à rua do Triunfo; Manuel Augusto Sobrado (Cervantes) acertou em cheio com Mulher, Mulher, direção de Jean Garrett que custou 2 milhões e rende, em menos de um ano, vinte e cinco vezes mais, o que lhe propicia oxigênio suficiente para continuar; Fauzi Mansur, através da Virgínia Filmes, encabeça um grupo de empresários incluindo até marcas populares como a Fábrica de Móveis Brasil – para um projeto ambicioso e abrangente o suficiente para incluir até a elaboração de enlatados para a TV. Fora desse grupo restrito há poucos exemplos de prosperidade ou evolução na carreira. Talvez Jean Garrett, hoje o diretor mais ambicioso da Boca, e algumas das moças que tornam tão atraentes e decisivas para o êxito comercial dos filmes, que transcendem o circuito da pornochanchada para alcançar as páginas das revistas e jornais prestigiosos – o primeiro passou para “ser dirigida por um Nélson Pereira ou Cacá...” como elas mesmas dizem.

Do restante da população desta comunidade cinematográfica, não se pode dizer que a efervescência dos anos 70 tenha trazido maiores benefícios. Os técnicos – e eles são ás centenas – continuam sem qualquer amparo trabalhista, assinando contratos em branco, convencidos, pela força das evidências, que não vale a pena reclamar. Há casos inclusive de profissionais com aproximadamente trinta anos de carreira na função de eletricista ou maquinista, sem quaisquer condições de recorrer ao INPS ou perspectivas de requerer aposentadoria. Mas houve alguma evolução quanto ao tratamento dispensado aos técnicos, antes submetidos a uma rígida hierarquia. Souza, eletricista desde os tempos da Vera Cruz  e Miro Reis, maquinista e técnico de efeitos especiais, vivenciaram a discriminação. Durante as filmagens, reserva-se para os atores e diretores o melhor hotel. Para os técnicos restava a hospedagem na mais decadente das pensões locais. Hoje, a discriminação diminuiu muito.

O quadro que se apresenta hoje em dia, mostra basicamente de um lado os distribuidores e produtores tradicionais, e de outro a massa de técnicos, figurantes, estrelinhas...Confirmando que a Boca é apenas uma “entidade” desorganizada, anárquica, um mero aglomerado onde a coincidência de interesses produziu uma contiguidade linear.

O aumento brutal do preço de material virgem, a inflação corroendo a coragem na hora do investimento – de que adianta ganhar 3 milhões hoje, se daqui a dois meses é insuficiente para começar outro filme? – fazem acreditar que a fase da produção continuada, imediatista (o chamado cinema-pauleira) já acabou. E, ao contrário do que podem supor os autores de santos necrológicos feitos para a pornochanchada, não foi nenhuma reação negativa do público, saturação de sexo, ou qualquer coisa desse tipo que veio determinar o final de uma época. É que o cinema, como outras atividades econômicas,  se orienta segundo o modelo concentracionista. E poucas chances restarão ao pequeno produtor, que no passado recente exibia aos investidores os mapas de rendimento dos filmes, apresentava uma atriz sedutora, juntava quatrocentos mil aqui, mais duzentos lá, cedia participações e finalmente chegava as telas. A ideia de saneamento do setor é evocada no argumento de J. Santana, titular da coluna “De Olho na Boca” publicada diariamente no jornal “Notícias Populares”, espaço criado para promover e divulgar os acontecimentos da Boca: “Vai ser melhor,...Vai haver uma seleção...”.

E isso não pode ser ruim, ser prejudicial? Não pode levar a polarização ainda maior?

“Não. Não vi no trabalho do pequeno produtor vôo mais alto. Também é tudo padronizado...”.

Vamos entrar então numa fase industrial?

“Acredito que sim. O custo médio de uma produção hoje na Boca (primeiro semestre de 1980) é de 4 milhões e muitos produtores pequenos não vão aguentar...”.

“...Eu não vejo com antipatia a abertura para uma produção industrial no cinema brasileiro. Porque aí eu acho que nós vamos ter condições de fazer coisa boa. Mas claro! Eu sou favorável ao livre jogo empresarial”.

Publicado originalmente em O imaginário da boca, por Inimá Ferreira Simões. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento de Informação e Documentação Artísticas, Centro de Documentação e Informação sobre Arte Brasileira Contemporânea, 1981. (Cadernos, 6)

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Eu queria ter vivido lá,de corpo presente,lá dentro,bem dentro da Boca do Lixo.