quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

Amores de Noel: Clara


CLARA





A 12 de outubro de 1912, à rua Teófilo Otoni, nasceu Clara, filha de Clara Souza Netto e Serafim Corrêa Neto, vidraceiro. 

Com seus 15 anos, menina prendada, inteligente, já órfã, residindo então á rua Teodora da Silva (defronte ao Externato Sta. Rita de Cássia), começou a auxiliar dona Rita e dona Marta.

Contato direto entre Clara e Noel deu motivo a um namoro de crianças. Dona Marta anelava um casamento feliz para seu filho: ele médico e a esposa talvez professora.

Em 1930, porém, a família de Clara mudou-se para a rua Barão do Bom Retiro número 487. Logo aos primeiros dias, Clara percebeu que existia ali uma séria concorrência para sua vida sentimental. Após conversas no 487, Noel despedia-se e, ao invés de voltar para seu chalé, demorava-se em palestras com várias criaturas femininas, residentes a rua Moju...

Clara (então com 18 anos), com sua indiscutível superioridade moral, afastou-se logo e completamente de Noel, dedicando-se somente aos seus trabalhos no Externato Santa Rita de Cássia.

Assim terminou o antigo namoro. Continuaram apenas amigos. 

10 de novembro de 1931. No largo de São Francisco de Paula (episódio então recordado por Graça Melo e que após apurei com todas as minúcias), Noel esperava um bonde para Vila Isabel. Por acaso encontrou Clara, que dirigia o bando de seus 9 irmãos e 5 irmãs. Acontece que Noel não possuía o dinheiro necessário para a viagem de bonde. O impasse era desagradável. Noel, porém, resolveu o problema de maneira simples: pediu que Clara e seus irmãos aguardassem ali um instante e partiu imediatamente à casa de músicas Viúva Guerreiro, à rua 7 de Setembro número 169. Encontrou ali o conhecido pianista J. Machado e ofereceu-lhe a venda de um dos seus sambas:

- Que samba é este, Noel?- indagou J. Machado.

- É meu, mas por enquanto só fiz os versos.

Versos de Noel já representava um indiscutível valor, razão porque o pianista aceitou o negócio. E, no mesmo instante, Noel “fabricou” um estribilho e duas estrofes que ele próprio rabiscou, assinando recibo com estampilhas, de acordo com a lei. Recebeu o valor estabelecido, partiu e com aqueles 5 mil réis pagou a passagem de bonde do bando todo...

Infelizmente tais versos perderam-se completamente, mas seu título dá uma ideia perfeita d desprezo que Noel revelava diante de certas situações: “Que se dane!”.

1932. Festa na rua Conde de Bonfim, Tijuca.

A certa altura, cercado de amigos, chega Noel. Houve um natural reboliço nas fãs, que desejavam ver e conhecer o já notável compositor.

Clara estava presente com seu novo namorado, estudando médico-veterinário militar, Jorge, ciumento, que evitava todos os possíveis contatos com Noel, já informado de suas relações anteriores.

Na alegria de anunciar a presença do “filósofo do samba”, a dona da casa o apresentava a todos os convidados, um a um. E coube a vez de Clara e Jorge. Desajeitada, sem graça, com a surpresa, Clara preferiu adotar um recurso compreensível, somente cumprimentando Noel formalísticamente:

- Prazer em conhece-lo.

Noel compreendeu tudo, num relance. E, sem fita-la, respondeu-lhe secamente:

- O prazer foi todo meu.

Noel não se demorou na festa, e alegando qualquer compromisso urgente, despediu-se. Em companhia do velho amigo Arnaldo D´Araújo, alfaiate, dirigiu-se para o Boulevards, sentou-se em uma das mesas do Café Ponto Chic (ao lado da Estação dos Bondes) e escreveu uns versos para os quais posteriormente Custódio Mesquita completou a melodia já iniciada pelo poeta:

PRAZER EM CONHECÊ-LO
Quantas vezes nós sorrimos sem vontade
E escondemos um rancor no coração
Por um simples dever de sociedade
No momento de uma apresentação.
Se eu soubesse que em tal festa te encontrava,
Não iria desmanchar o teu prazer,
Porque, se lá não fosse, eu não lembrava
Um passado que tanto nos fez sofrer.
Lá num canto vi o meu rival antigo,
Ex-amigo
Que aguardava o escândalo fatal;
Fiquei branco...amarelo...furta cor,
De terror,
Sem achar uma ideia genial.

Ainda lembro que ficamos de repente,
Frente a frente,
Naquele instante, mais frios do que o gelo,
Mas, sorrindo, apertasse a minha mão
Dizendo, então:
- “Tenho muito prazer em conhece-lo”.
Eu, notei que alguém, impaciente,
Descontente,
Ia, mais tarde, te repreender,
Ciumento que até nem quis saber
Que mais prazer
Eu teria em não te conhecer...


Retirado de ALMIRANTE. No tempo de Noel Rosa. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1963.

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