segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Biografia de Capitão Furtado VI de VI: Como era e como ficou



Por J.L. Ferrete

Seleção e transcrição: Matheus Trunk


Falsos valores

Tomam conta do mercado!...

Quem é bom, é afastado

Por um falso ou um bicão!

Mas, felizmente,

Ainda há rádios como esta,

Que, na onda desonesta,

É uma honrosa exceção!

(trecho de Peço a Palavra, letra inédita do Capitão Furtado)

 

Quando a música caipira finalmente apareceu em discos no Brasil, em 1929, não havia profissionais nesse campo. Na música urbana ainda havia um ou outro que fazia disso meio de vida. Como Francisco Alves, Vicente Celestino, Paraguassu, Gastão Formenti e outros poucos mais, cujos nomes não nos ocorrem no momento. Caipira, no entanto, sequer podia pensar em ganhar o pão de cada dia com a vida artística. Sua arte não era considerada arte.

 


Dentro os primeiros intérpretes, todos revelados somente como curiosidade por Cornélio Pires, havia os que trabalhavam na lavoura (Mariano, Caçula e Ferrinho), um que era motorista (Zico Dias), outro que fazia corte de cana (Bastiãozinho), um artesão rural (Arlindo Santana) e um cocheiro com ponto no Jardim da Luz em São Paulo (Raul Torres).

 

De originalidade todos eles só tinham uma coisa em comum: cantavam coisas diferentes do que se ouvia na cidade e sua pronúncia não tinha nada a ver com o dialeto português que a gente culta falava. Pronúncia, aliás, que até hoje intriga os estudiosos quanto às causas. Usavam, ademais, apelidos estranhos e nomes em diminuitivo, hábito que se conservou até os dias correntes.

 

O certo, porém, é que essa arte interiorana viveu escondida por muito tempo em seu habitat de origem (salvo, logicamente, por deturpadas contrafações citadinas), só vindo a conquistar alvará definitivo de liberação total a partir dos anos 60, quando houve ensejo, afinal, para a profissionalização.

 

A roupagem dos intérpretes iria aderia ao ‘visual’ dos chamados shows urbanos, a moda de viola teria de tudo a acompanha-la, menos viola, e os gêneros típicos cederiam lugar a ‘mexinizações’ ou ‘paraguaísmos’, gradativos, em clara demonstração de adaptação cultural ao que era comercial. Chegou-se a introduzir guitarras elétricas no acompanhamento, com a justificativa de ‘modernização’ ou ‘adaptação à nova realidade’.

 

Alguns analistas veem nisto o que eles qualificam de ‘progresso’ ou ‘coerência com os novos tempos’. Outros discordam: ter-se-ia descaracterizado um gênero, deputando-se sua tipicidade. A polêmica não para por aí, incluindo até mesmo a desvairada comercialização por que vem passando ultimamente o gênero, a ponto de já contarmos com cerca de oitenta duplas em atividade por aí, sem falar em intérpretes solistas ou trios.


“Dois autênticos – confidenciou-nos certa vez Ariovaldo Pires – só vejo Tonico e Tinoco e Téo Azevedo. Este, por sinal, tem uma bela carreira pela frente. É jovem, estudioso, faz pesquisas e é realmente interessado na coisa. Não quero dizer com isso que não haja outros bons. O Tião Carreiro, por exemplo. No geral, entretanto, quase todos andam apelando para absurdos que nada têm a ver com o verdadeiro homem do campo. Os discos dessa gente, ademais, ou têm de ser muitíssimo malfeitos (com capas canhestras, péssimo equipamento sonoro de estúdio, quase todo amadorístico) ou incluem sofisticações inadequadas. Andam pondo até pistões de mariachi mexicano nas gravações!”.

 

Historicamente, após os registros pioneiros de Cornélio Pires na Columbia, foi a Victor (a partir de junho de 1931, RCA Victor) que primeiro se interessou em ingressar no mundo da música rural em discos. Isso ocorreu no fim de 1929, primeiro através de um grupo denominado Turma Caipira Victor (que tinha como destaque a dupla Lourenço e Olegário) e depois por meio de Zico Dias e Ferrinho, dupla especializada em gêneros característicos rurais.

 

A própria Victor revelaria, em junho de 1930, outra dupla de violeiros paulista: Lázaro e Machado, hoje virtualmente ignorada pelos estudiosos da música caipira. Nessa mesma época, surgiria pelo citado selo o Trio Ortega (formado pelas irmãs Mercedes, Maria e Célia Ortega), a quem caberia, sete anos antes de Tristeza do Jeca, a divulgação de trabalhos de Angelino de Oliveira: Cabocla do sertão e No rancho, por exemplo.

 

Esse tipo de iniciativa parecia ter o sentido de resposta comercial da Victor á sua concorrente Columbia, que, todavia, não se deixou abalar pela provocação. Byington Jr. fez com que Paraguassu ingressasse com mais frequência no gênero, utilizando-o como trunfo popular contra os quase desconhecidos principiantes da Victor. A Odeon, entrementes tirou Lázaro e Machado da Victor e tentou, com eles, entrar na curiosa disputa mercadológica.

 

Não existia naquele tempo a “inflação” (como dizia o Capitão Furtado) de duplas que há hoje. Quem desejasse gravar música caipira autêntica, interpretada por caipiras, passava por enormes dificuldades na busca de artistas convincentes. Havia aqueles poucos já mencionados e mais nada. Inexistiam, em outros termos, profissionais preparados para o mister. O amadorismo da maioria chegava a confundir-se com puro folclore, área que, à época, só tinha aceitação na forma de adaptações urbanas e através de vozes educadas. Na falta de cantores, portanto, gravava-se música caipira instrumental, e quase sempre com sanfoneiros.

 

Em 1933, surgiria uma dupla predestinada a animar o gênero em termos de interpretação e repertório: Mandy (apelido que se dava ao caipira paulista na época) e Sorocabinha. Começaram na Odeon, e seu reino só seria abalado pelo aparecimento de Alvarenga e Ranchinho, que, como vimos predominariam (juntamente com o Capitão Furtado) até mesmo no impenetrável Rio de Janeiro.

 

O que se percebe, entretanto, é que todo o sistema profissional da música rural gravada, ou seja, da música caipira em discos, girava em torno daquelas mesmas pessoas: Mandy e Sorocabinha, Raul Torres, Mariano e Caçula, Zico Dias e Ferrinho, Alvarenga e Ranchinho, Lourenço e Olegário e o Capitão Furtado. Era só com que o mercado especializado podia contar e, acrescentando-se, o que havia de mais expressivo. Os anos 40 não iriam revelar mais outros, constituindo Tonico e Tinoco, todavia o que ocorreu de mais extraordinário nessa década, considerando-se seu evento em termos de projeção futura.

 

Após 1960, e com a abertura propiciada pela Roda de Violeiros de Capitão Furtado, o panorama caipira iria sofrer profunda alteração. Dezenas de novas duplas começaram a aparecer (várias delas desaparecendo logo a seguir) e o comercialismo selvagem tomou conta do mercado. Essa surpreendente irrupção pareceu aos analistas a resposta enérgica da faixa consumidora relegada ao desprezo por novos estilos de música urbana (a bossa nova, em especial), tendo o sentido, enfim, de reação maciça contra os que não se entendia e era impossível de aceitar.



E, salvo honrosas exceções, é esse hoje o panorama da música rural ou caipira: uma espécie de área cinzenta, obscura, para onde convergiram os modismos populares abjurados pela revolução musical urbana, e tudo rotulado como música sertaneja, numa confusão inextricável de classificações genéricas e aglutinações específicas. O consumidor em altíssima escalda dessa maçarocada indefinível é membro da comunidade que os grandes centros industrializados formados após 1960, com a vinda para os mesmos de quase 60% dos trabalhadores rurais (segundo estatísticas oficiais), na desesperada busca de melhores condições de vida.


Que rumos essa desvairada aventura irá, tomar, ninguém sabe. Sabe-se, isto sim, que o autêntico ficou totalmente esvaziado como conteúdo e que um novo processo histórico no país levou à desintegração unidades que se mantinham coerentes como propósito ou predestinação. O Capitão Furtado ainda pegou boa parte dessa fase de arremedos meramente comerciais, totalmente despidos de pureza e boas intenções. Da tristeza que sentia, nós fomos testemunha.

 

Publicado originalmente em FERRETE, JL. Capitão Furtado: viola caipira ou sertaneja?. Rio de Janeiro: Funarte, Instituto Nacional de Música, Divisão de Música Popular, 1985.

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