domingo, 18 de abril de 2021

Bastidores do rádio, parte VII de VII: Apêndice

Bastidores do rádio, parte VII de VII: Apêndice

 

Por Renato Murce

Seleção e transcrição: Matheus Trunk

 

“Alma da Sertão”

Pouca gente sabe que, entre todos os programas que produzi, era o meu preferido. Nele sentia eu a verdadeira alma do nosso caboclo, quase sempre ignorante, analfabeto mesmo, mas cheio de qualidades que eu desejava ressaltar: argúcia, malícia, sua pertinácia lutando contra tudo e contra todos. Enfim, via no homem do interior o verdadeiro cerne de nossa nacionalidade. “Alma do Sertão”, por isso, fugia aos padrões comuns de outros gêneros. Apenas com modas de viola, conversas caipiras, cheias de tolices, etc. Sempre apoiando-me nos grandes nomes que se dedicavam ao gênero, como Amadeu Amaral, Luís da Câmara Cascudo, Leonardo Mota, Rodrigues de Carvalho, Ari de Lima, Eduardo Campos, Zé da Luz, Frei José M Audin (conviveu com o nosso homem do campo por mais de 40 anos). Encontrei assunto o mais variado. Desde poesia, os costumes, as lendas, os ditados, a medicina do sertão (diversificada conforme a região onde era usada), tudo era devidamente radiofonizado e levado até o ouvinte.

Tive a ventura de constatar que, ás quintas-feiras no horário de “Alma do Sertão”, o Brasil, no seu interior, quase que parava. Só para ouvi-lo. Explica-se, pois, a minha preferência por “Alma do Sertão”. Mesmo perdendo ligeiramente em popularidade para o “Papel Carbono”, que revelou um sem-número de astros e estrelas.

 

Catulo

Ao radiofonizar os poemas de Catulo (alguns deles muito bonitos e bem feitos) “ressuscitei” um nome que estava completamente no ostracismo. Seus livros, antes encalhados nas livrarias, esgotaram-se rapidamente. Novas edições foram feitas, e ele se animou a escrever mais dois ou três livros. Resolveu, também, vaidoso que era, ir ele mesmo divulgar seus versos na Rádio Nacional (eu ainda não estava lá), passando quase despercebido. Em pouco tempo desistiu.

Os poemas de Catulo como “A Promessa”, “A Vaquejada”, “Quincas Micuá”, “A Resposta do Jeca Tatu”, “O Lenhador”, “A Justiça do Crime”, “Terra Caída”, e tantos outros, eram muito bonitos em sua essência, mas “chatérrimos” pelo seu tamanho. Era necessário, para o rádio, transmitir somente aquilo que interessasse e prendesse a atenção do ouvinte. Intercalava-se, nos lugares oportunos, a música condizente com o assunto. Era o segredo do sucesso que fazíamos com os poemas. Catulo não se conformava. Chamava isso de “estropiar a sua poesia”. Além de vaidoso, era um ingrato de boa cepa.

Certa vez, quando estava na Transmissora, escreveu-me um bilhete pedindo para irradiar poemas do seu livro Um Boêmio no Céu. Um verdadeiro manancial do auto endeusamento. Qualquer pessoa que folheá-lo poderá constatar. Fiz, como de costume; resumi uma das partes, musiquei-a e incluí-a em “Alma do Sertão”. Ele, que já era muito popular (às minhas custas), não teve dúvida. Escreveu-me um bilhete, danado da vida, onde dizia: “Renato, estou aborrecido com você por não ter aparecido. Nem ao menos ter feito o que lhe pedi em carta anterior. Quem perde com essa desatenção é você. Desejava apenas dar-lhe umas opiniões e “guiar-lhe” nos seus propósitos de irradiações. Pois bem, você anuncia-me pelo rádio, e eu mesmo irei recitar, caso queira, uns fragmentos do Boêmio. Depois da detenção que teve para comigo não sei lhe merecerei esse obséquio. Catulo”. Isso foi em 17 de março de 1936. Diante dos termos desse bilhete, não irradiei nem respondi a coisa nenhuma.

Dias depois ele apareceu em pessoa. Ainda para reclamar. Mas disse-lhe apenas: Catulo, você está ficando muito paulificante. Para evitar mútuos aborrecimentos, resolvi não irradiar mais os seus poemas. Aí, ele caiu em si. Muito humilde, retrucou: “Não é nada disso, eu não quero aborrecê-lo! Pensei que pudesse colaborar, mas se você não quer, paciência. Mas não deixe de divulgar minha obra, que isso me tem sido muito útil”. Fiquei penalizado. Continuei incluindo seus versos nos meus programas, mas à minha moda. Só deixei de fazê-lo depois da sua morte: o herdeiro artístico, um jornalista desconhecido, um tal de Guimarães Martins, passou a exigir direitos autorais exorbitantes sobre a obra do vale maranhense...

 


As revistas sobre rádio

Tiveram influência muito grande na vida do rádio. Eram revistas especializadas no assunto: faziam a cobertura de toda a vida radiofônica. As principais foram: A Voz do Rádio (a mais bem feita), Cine Arte, Cinerádio Jornal, Carioca (do grupo A Noite), Cinelândia Alô e Revista do Rádio (esta a mais famosa e de vida mais longa, abordando todos os assuntos de modo muito popularesco). Isso convinha, aliás, ao grande público, que lhe dava preferência. Só fotos de Emilinha, Marlene, Ângela Maria, como “capa”, foram publicadas mais de 50 de cada. Era preciso vender, e assim, vendia!

 

Os técnicos

Injusto seria escrever o rádio sem uma referência elogiosa aos técnicos: operadores de cabine, contra-regras e sonoplastas. A lista é grande, não comporta a enumeração dos nomes de todos, mesmo porque não sei. Mas é a classe mais útil. E a mais injustiçada do rádio. Basta dizer que, no livro comemorativo dos 20 anos de Rádio Nacional, constam apenas de passagem uma referência aos 59 magníficos operários desse setor. Pessoas imprescindíveis ao funcionamento da emissora. Contudo nem um só nome de todos os outros departamentos foi esquecido. Infelizmente não disponho de elementos, nem de memória, nem de arquivo pessoal para reparar essa injustiça. Mas, pelo menos, os dois melhores sonoplastas e melhores contrarregras posso lembra-los aqui: Edmo do Vale, Lourival Faissal, Jorge Bico e Ivan Faria.

 

Promoção de conjuntos do interior do país

Realmente importante será contar o esforço da Rádio Nacional para trazer aos seus estúdios, no Rio de Janeiro, conjuntos atuantes no interior. Só por intermédio do programa “Papel Carbono”, vieram: Centro de Tradições Gaúchas Lalau Miranda, de Passo Fundo, com 55 pessoas; Conjunto Artístico do Liceu de Uberlândia, 30 pessoas; Orquestra Continental de Jaú, com 27 músicos e um excelente cantor, Waldomiro de Oliveira; Madrigal Renascentista, com Isaac Karabtchevsky. Finalmente, a série imensa de bandas do interior, que aqui aportaram para atuar no famoso programa de um dos maiores radialistas que o Brasil já conheceu, o Paulo Roberto: a célebre “Lira do Xopotó”.

 

Heber de Bôscoli e “Trem da Alegria”

Na citação dos programas famosos e de auditórios, merece lugar destacado, pelo dinamismo e habilidade, um grande radialista, prematuramente desaparecido: Heber de Bôscoli. Formava com Yara Sales e Lamartine Babo o famoso “Trio de Osso” (eram todos muito magros). Faziam a apresentação diária do “Trem da Alegria”. Tinha tanta frequência que precisou sair dos acanhados estúdios das rádios para ser transmitido diretamente do Teatro Carlos Gomes. Foi uma etapa brilhante nesse gênero de programas. A “Hora do Pato” (que era uma das suas secções), ao receber, de vez em quando alguma crítica, mereceu, do Heber, este slogan que ficou célebre: “Se o ouvinte prefere a “Hora do Pato”, porque discutir com o ouvinte?”.

 

O rádio evoluiu ou involuiu

É evidente que o rádio evoluiu. E muito, com o correr do tempo. Depois de luta ingente para a sua sobrevivência com o advento da televisão vem obtendo relativo sucesso. Infelizmente, porém, em alguns setores vem involuindo, assim como quem tem uma “recaída”. Reparem no grande número de programas musicais: voltou aquele costume nitidamente provinciano de “Agora vamos irradiar..., que Fulaninha de Brás de Pina ofereceu a sua amiguinha de Nova Iguaçu”. Os responsáveis por esse tipo de programação foram sempre uma das grandes “pragas” do rádio brasileiro.

 

Curiosidades do rádio

Logo depois de inaugurada a Rádio Nacional, numa reunião com as diretorias das demais emissoras, ficou resolvido: seria instituído o Dia do Rádio, a ser comemorado a 21 de setembro, data mantida até hoje. No primeiro ano, o Dia do Rádio foi comemorado: todas as estações silenciaram (no que deram uma prova extraordinária de força, pela falta que fizeram). Realizaram uma grande festa na Quinta da Boa Vista: churrascada, corridas de calhambeques, diversas gincanas, música e outras diversões.

No segundo ano, o rádio “fez meio dia”. Irradiou até ás 12 horas. Depois houve um churrasco nos transmissores da Nacional. No terceiro ano, o dia do rádio foi “comemorado” com uma transmissão de 24 horas consecutivas, trabalho insano. Ninguém sabe por quê. Depois dos festejos do Dia do Rádio foram sumindo...Hoje pouca gente sabe que 21 de setembro é Dia do Rádio.

 

Greve no rádio

Pouca gente, muita pouca mesmo sabe que o rádio já fez uma greve. Pois fez. Foi assim: a 12 de julho de 1933, as emissoras então existentes, a Rádio Sociedade, Rádio Clube do Brasil, Rádio Philips, Rádio Educadora, Rádio Guanabara, Rádio Dacuji e Rádio Jornal do Brasil saíram do ar, em represália a uma medida, que elas acharam exagerada, das Sociedades Arrecadoras: a cobrança dos direitos autorais. Devo essa preciosa informação ao meu amigo, grande baluarte do rádio em todos os tempos, Floriano Faissal. Ignorava eu os detalhes do fato.

 

Donga e o samba

Ernesto dos Santos, o popularíssimo Donga, é considerado um dos grandes do nosso samba. Autor de tantas músicas que se celebrizaram, a começar pelo tão “badalado” “Pelo Telefone”. Era muito meu amigo. Gostava muito de um bate-papo. Donga, em 1933, tinha se casado com uma moça de belíssima voz de soprano lírico, Zaíra de Oliveira dos Santos. Foi escalada diversas vezes no meu programa “Horas do Outro Mundo”. Donga, muito justamente, tinha enorme orgulho da esposa e desmedida admiração por sua arte.

Certa vez, em conversa, ele me disse (assim muito confidencialmente, como em segredo), referindo-se ao gênero que sua mulher cantava: “Renato, eu agora estou convencido: música, arte, é isso. Esse negócio de sambinhas, chorinhos, etc., é muito bom pra gente se divertir, pra gravar, ganhar dinheiro. Não chega aos pés da música clássica”. Lamento que ele tenha desaparecido, e que não haja quem possa testemunhar declaração tão original, partindo de quem partiu.

 

Francisco Alves

Certa vez apareceu em meu programa um cantor de voz admirável. Perfeitamente igual, em timbre, à do Chico Viola. Com uma vantagem: mais nova, mais potente (Chico já tinha ultrapassado a casa dos 50). Chamava-se Ericson Marta. Vítor Costa mandou que ele fizesse o programa da Casa Garson, “Quando os Ponteiros se Encontram”, ao meio-dia dos domingos, substituindo o titular, que estava de férias ou fazendo uma excursão, já não me lembro bem.

O rapaz fez uma “onda” tremenda. Todos queriam saber quem era. Muitos pensavam que era o próprio Chico rejuvenescido. O Chico, mesmo em viagem, ouviu o programa. Não gostou: tinha alguém fazendo-lhe concorrência (e dentro da própria estação). Ao voltar, dirigiu-se imediatamente ao Vítor Costa e impôs: se esse “cara” continuar me imitando saiu da rádio. E levo comigo o patrocinador. O patrocinador era o seu grande amigo Abraão Medina (então sócio da Casa Garson), a quem o rádio muito deve. Não houve dúvida. Vítor dispensou o Ericson. Pôs o Orlando Silva em seu lugar. Algumas semanas depois, o Chico trazia de São Paulo um cantor, apresentando-o ao Vítor: “Olhe, aqui está o João Dias; este é que é meu substituto. E o herdeiro da minha voz”. Depois, mais que herdeiro da voz de Chico Alves, o João Dias se tornou cantor de grande renome.

 

A ABR: Associação Brasileira de Rádio

A Associação Brasileira de Rádio (da qual sou sócio proprietário e fundador nº 8) foi presidida por Gilberto de Andrade e por Vítor Costa, depois por Manoel Barcelos (ocupei a presidência por dois meses, quando Barcelos tirou férias para se casar). Manoel Barcelos foi, um presidente eficientíssimo. Levara a cabo uma série louvável de iniciativas em prol dos associados. Porém, tinha a associação como feudo. Tanto era assim que fazia tudo sem dar satisfação a ninguém.

Anunciava sempre, como bandeira, para as suas reeleições, a construção do Hospital do Radialista. Ninguém reclamava: o hospital realmente foi construído. Serviu mesmo de padrão para qualquer iniciativa do gênero. Pomposa foi a inauguração. Teve presença até do presidente da república; altas autoridades, inúmeros radialistas e grande massa de povo. Todos se regozijavam com a obra, capaz de enaltecer qualquer administração.

Daí para frente a coisa começou a declinar. O hospital carecia ainda de ser complementado. Não prestava todos os serviços a que se propunha. Manoel Barcelos fazia questão de comparecer a todas as reuniões sobre qualquer assunto representando a ABR. Começou a faltar a essas reuniões. Até afastar-se e deixar, com surpresa para todos nós, a presidência da ABR.

 

César de Alencar

Foi, sem a menor sombra de dúvida, o mais popular e o melhor animador de programas de auditório que o rádio já teve. Já frisei o quanto seu programa era ouvido e apreciado. Basta dizer que o “Programa César de Alencar” era um dos poucos que vendia ingressos para o auditório. Os ingressos, via de regra, esgotavam com duas semanas de antecedência. Hoje, no entanto, a imagem do César – que tive como filho durante muito tempo (quem o colocou no rádio, fui eu) – está algo esmaecida; e sua popularidade um pouco esquecida.

 


Os programas gravados ao vivo na Rádio Nacional

Na época áurea da Rádio Nacional todos os grandes programas eram gravados ao vivo. Não só aqueles irradiados em estúdio fechado. Também os de auditório. Nestes, estavam marcadas, também, as ruidosas e espontâneas reações dos ouvintes. O que lhes dava um relevo especial. Mais de 5.000 discos (acetatos de 16 polegadas) foram assim produzidos.

No entanto, as direções que passaram pela Rádio Nacional pouca importância deram ao fato. Não souberam guardar e resguardar as referidas gravações. Tinham valor extraordinário; não só como documentário, como, até mesmo para possíveis e sempre desejadas reprises. Mandaram (diziam que por falta de espaço) um sem-número delas para a casa dos transmissores, em Brás de Pina. Ficaram jogadas em lugar inadequado e se deterioraram. Outras, fui encontrar mal empilhadas (e também se estragando) num compartimento, junto aos sanitários da rádio. Eram ainda cerca de 4.000 gravações. E quase a metade já estava inutilizada.

Pacientemente separei e arrumei mais de 2.000, ainda em bom estado e bastante aproveitáveis. Nesse trabalho, como que prevendo o que iria acontecer separei uma série dos meus principais programas: “Alma do Sertão”, “Piadas do Manduca” e “Tran-Chan Revista”. Copiei-os em fita para o meu pequeno arquivo. Também vários programas de Lauro Borges e Castro Barbosa com a famosa “PRK-30”.

Parece que estava adivinhando o que ia acontecer: a direção da rádio, alegando ter recebido ordens do Ministério da Fazenda, doou todas as gravações ao Museu da Imagem e do Som. Talvez estivesse certo, se aquela instituição desse ao fato o valor que ele merecia. Mas, depois de passados já cinco anos, os discos lá permaneceram. E ninguém se deu ao trabalho de arrumá-los. Qualquer consulta que se queira fazer, qualquer pesquisa sobre o assunto rádio, ficaram assim extremamente difíceis.

Destino idêntico teve a série de discos antigos da rádio (documentário valiosíssimo), e também as fabulosas orquestrações, feitas pelos maiores maestros do país (cuja relação já citei). Emolduravam programas sem paralelo que a Rádio Nacional transmitiu durante muitos anos para todo o Brasil.

No dia dessa inexplicável doação, o maestro Francisco Duarte (o dedicado Maestro Chiquinho, como era carinhosamente tratado), responsável pelas orquestrações, chorou de emoção. Como quem se separa de um filho muito querido. Também estão lá jogadas...

Além das orquestrações (especialmente feitas para todos os cantores da rádio), havia também as molduras musicais. Serviriam de modelo para qualquer rádio do mundo. Excepcionais eram os programas “Festivais GE”: “A Canção da Lembrança”, “Cancioneiro Royal”, “Um Milhão de Melodias”, “Carrossel Musical”, “Pelas Estradas do Mundo”, “Preferências Musicais”, “Um Musical Predileto”, “Dona Música”, “Clube do Samba”, “Horário dos Cartazes”, “Voz da RCA Victor”, “Alegria Meus Senhores”, “Caricaturas”, “Este Mundo é uma Bola”, “Nas Asas da Canção”, “Parada dos Maiorais”, “Quando os Maestros se Encontram”, “Seleções Musicais ABC”, e muitos outros. Do jeito como foram transportadas e “arrumadas” lá no museu, duvido muito que alguém, necessitando de alguma, especificamente, a encontre. É uma pena!...

 

Solidariedade: Campanhas através dos microfones

Não se pode negar certo espírito de solidariedade do rádio (e da TV). Isso, no sentido de colaborar: minorar efeitos de catástrofes; ou os sofrimentos e agruras dos que se sentiam ao desamparo. No entanto, muito mais poderia ser feito, se houvesse no meio um verdadeiro espírito de altruísmo. Este deveria presidir a todas as campanhas que foram feitas em diversos setores. Prevaleciam a emulação e ao empenho; ou a vaidade de uns aparecerem mais do que os outros. Além de certos promotores e auxiliares das referidas campanhas se acharem “sócios” dos que estavam sendo socorridos, pois sonegavam boa parte do que era arrecadado.

Promovi muitas campanhas: umas com maior, outras com menor êxito. Além de exigir a fiscalização das partes interessadas, prestei contas religiosamente de tudo o que pude apurar. Assim é que tenho, nos meus preciosos arquivos, os recibos autenticados de todas elas. Exemplo: campanha dos cigarros para os pracinhas, campanha do agasalho para nossos soldados (às quais já me referi noutra parte deste livro), campanha para ajudar as obras da matriz do Engenho de Dentro, que se constituiu na organização de dez shows com entradas pagas; tinha na bilheteria o próprio vigário da paróquia, tendo rendido um “dinheirão” para a época; campanha para os hansenianos de Curicica, sendo que desta tenho uma comovedora carta de agradecimento da grande dama que foi a Sra. Eunice Wave; campanha para o Asilo dos Cegos do Meiér (fizeram questão de mandar uma asilada ao Rádio Clube do Brasil passar o recibo e fazer um emocionante agradecimento lido em Braile, que também consta dos meus arquivos). Duas campanhas de Natal do sentenciado. Na segunda fomos à hoje Penitenciária Lemos de Brito. Entregamos ao diretor, da época (com a presença de jornalistas, fotógrafos, etc), a importância de 30 contos (muito dinheiro em 1943), além de objetos de uso, roupas, etc. Tempos depois recebia cartas de vários sentenciados. Tinham assistido à cerimônia de entrega, mas não tinham visto nem a cor nem o cheiro daquele dinheiro. Desconfio que quem teve um bom Natal foi o diretor do presídio.

Fiz duas campanhas para a Cruz Vermelha Brasileira durante a guerra. Vendi folhetos dos meus dois trabalhos: Regabofe dos Vândalos e Epopeia do Mundo. Renderam razoável quantia, da qual também conservo os recibos.

Enquanto estava preocupado com minhas próprias promoções não podia tomar conhecimento das outras. Talvez as demais emissoras as tivessem feito. O que me entristeceu profundamente foi, quando ao promover, pela Rádio Nacional, uma campanha em benefício da Rádio Clube de Passa Quatro (fora completamente destruída por um violento temporal que desabou naquela cidade sul-mineira), constatei a total indiferença e completo alheamento das grandes emissoras, tanto do Rio como de São Paulo. Fiz uma campanha intensa. Convoquei emissoras, ouvintes, banqueiros, enfim, toda a gente que pudesse colaborar. E o fiz por intermédio do programa “Papel Carbono”. Mas foi um fiasco tremendo! Apenas alguns ouvintes e três ou quatro pequenas emissoras do interior mandaram sua colaboração. Confesso que foi um tremendo fracasso. Tive até vergonha de anunciar o resultado.

Tive, porém, logo depois, uma compensação altamente valiosa: a Rádio Clube de Passa Quatro mandou ao Rio uma comissão de diretores. Era para informar que nosso esforço não fora em vão e a maneira como nos portamos frente aos microfones da Rádio Nacional sensibilizou os habitantes, tão só os da cidade como os de toda a região. Até mesmo o prefeito. Todos se mobilizaram. Em pouco tempo restauraram, pelo menos em parte, a emissora local. Já estava no ar. E o primeiro programa foi de agradecimento aqueles que, quase sozinhos, tinham compreendido o drama daqueles colegas. Tenho guardado, como joia preciosa, a manifestação dos meus amigos de Passa Quatro.

O leitor pode estranhar o fato de eu ter toda a documentação daquilo que fiz; mas não a exibo. É fácil explicar: primeiro essa documentação está à disposição de quem quer que dela duvide; segundo, é que, se fosse publicar tudo aquilo que tive a felicidade de fazer ou de cooperar (motivando as maiores informações de gratidão de pessoas, clubes, autoridades, etc.), teria que escrever outro livro. São três pastas cheias com o que já mais desvanecedor parta um homem que dedicou toda a sua vida ao rádio. Com a melhor das intenções. É parte importante da minha herança. Se não tiver valor material, terá, pelo menos, o mérito de um exemplo a seguir. Um pedido que faço aos meus netos e amigos: leiam o que contam essas três pastas depois que eu desaparecer. Estou certo de que ficarão me conhecendo melhor...

 

O rádio e a política

Ninguém desconhece a influência fantástica que o rádio teve em todos os movimentos políticos do país. Desde os tempos de Getúlio Vargas, sobretudo na propaganda (muitas vezes mentirosa) dos grandes feitos do governo, através dos órgãos e das horas que lhes deram disciplinadas, como em horários extras, por qualquer motivo e a qualquer pretexto. E também nas campanhas eleitorais.

O rádio, muito contra a vontade, era obrigado a ceder aqueles horários. A Agência Nacional impunha a fala dos candidatos, em sua maioria semi-analfabetos, ou, quando não, sem a menor vocação para um microfone. Isso foi repetido anos e anos; só não sei bem em que grau os resultados foram positivos.

Uma coisa, porém, é inegável: nunca as mães dos candidatos foram tão xingadas por esse Brasil a fora. Os tais horários designados pelo governo incidiam, quase sempre (eram os chamados horários nobres), nos programas da preferência do público. Quando a fala de algum candidato coincidia com a transmissão de um jogo de futebol (por mais burro que fosse o pretendente a uma cadeira na câmara ou no senado), ele abria mão daquele “direito” de falar: o público queria mesmo era ouvir o esporte. Pensava, assim, angariar a simpatia de meia dúzia de eleitores. Agora, o que não se pode negar é que as horas destinadas à propaganda eleitoral se transformaram, em pouco tempo, nos programas mais humorísticos do rádio brasileiro.

Houve uma campanha eleitoral em que o rádio se meteu. Teve sua curiosidade e não pode deixar de ser mencionada. Aliás, foi a primeira campanha eleitoral depois da ditadura Vargas já no governo Dutra, logo após ter sido votada a constituição de 1946. (Antes, como já nos referimos, houvera manifestações pelo sem-fio em prol de Armando Sales de Oliveira e José Américo, que batalhavam pela presidência em 1938: uma farsa que Getúlio armara para amainar os ânimos da opinião pública, e que ele mesmo ironizava, atrás do charuto e da barriga). O pessoal do rádio, animado com a popularidade dos seus nomes junto ao público, julgava a eleição dos nomes do sem-fio uma verdadeira “barbada”. Era só dizer pelo microfone: sou candidato a vereador, ou a deputado, e estava eleito! Puro e ledo engano.

Começou a campanha. Logo vimos vários candidatos do rádio pleiteando uma cadeira, qualquer que fosse: Manoel Barcelos, Celso Guimarães, César Ladeira, Paulo Roberto, César de Alencar, Paulo Gracindo, e até eu. Toda a “nata” da Rádio Nacional era a força indiscutível na ocasião. Entretanto, apareceu “uma pedra no meio do caminho”: sendo o rádio do governo, ficava terminantemente proibida qualquer campanha política pelos seus microfones. Nessa altura eu já tinha gasto um “dinheirão” com cédulas, cartazes, etc. Manoel Barcelos, então, que era o mais rico, já tinha dado um “rombo” bem razoável nas suas finanças.

No dia em que eu ia falar pela primeira vez ao meu “possível eleitorado”, veio a ordem taxativa: não pode” Mas não era só ao microfone da Nacional: o candidato daquela emissora não podia falar em nenhuma outra. Resultado: fizemos campanhas ridículas e inoperantes. Em colégios, nas ruas, em alguns comícios sem significação.

No fim, foram eleitos pelo rádio: Silvino Neto, o Pimpinela da Mayrink Veiga (levado pela força dos personagens humorísticos que criara); Ary Barroso, da Rádio Tupi, com a ajuda da “gaitinha” e da torcida do Flamengo; Átila Nunes, levado à “Gaiola de Ouro” pela umbanda. Este, com tal prestígio que, desaparecido, legou ao filho, Átila Nunes Filho, uma força política imensa, hoje deputado estadual.  Outro eleito foi Raul Brunini, da Rádio Globo. Além de culto e admirado pelo seu trabalho, teve a ajuda, inegavelmente ponderável, de Carlos Lacerda (nome discutido e muitas vezes contestado, mas ao qual não se podia negar inteligência e força política respeitáveis); finalmente (que me lembre), Sagramour de Scuvero, da Rádio Clube do Brasil, mercê de suas receitas culinárias, consultórios sentimentais, etc.

Como veem, nenhum da Rádio Nacional. E toda a gente a julgava, com razão, a grande força da época. Era engraçado ver a nossa ansiedade e a nossa decepção. Á medida que as apurações iam sendo feitas, nome e número de votos eram asfixiados nos corredores da Rádio Nacional. Custava a aparecer um votinho para cada um de nós. E o curioso é que, mesmo assim, consegui 727 votos (para pensar em ser eleito, ou mesmo para a suplência, precisava de pelo menos 3.000 votos). Assim mesmo, fiquei na frente de vários colegas da estação, que gastaram muito mais (julgavam-se, também, muito mais importantes).

Foi porém, uma experiência benéfica: deu para sentir que a política, salvo raras exceções, é um “troço” para quem tem um bom padrinho. Ou, então, muito dinheiro. E eu não tinha nem uma coisa nem outra. O engraçado é que me encontrei depois das eleições, com centenas, talvez milhares de pessoas, fãs e conhecidos. Mostravam-se compungidos por não terem votado em mim: “Ora, que pena! Eu não sabia que você era candidato!”. Pois sim! Uns 10 ou 15% talvez fossem sinceros; os demais queriam fazer média. Uma média que não tinha “pão com manteiga”...Tudo isso estou contando apenas com referência ao Rio de Janeiro. Como se sabe, por esse Brasil a fora o rádio teve influência monumental nas referidas eleições. Mas, mesmo aqui,m resumindo bastante. A passagem da gente do rádio pelo setor político, pode-se afirmar, foi algo melancólico. Pelo menos para a classe que representavam. Salvo Ary Barroso, que lutou denodadamente pela construção do Estádio do Maracanã. Venceu a campanha do Carlos Lacerda, que queria localizá-lo em Jacarepaguá (diziam que para valorizar terrenos em sua propriedade naquele subúrbio), segundo conta Nestor de Holanda, com detalhes, em seu livro Memórias do Café Nice.

Enfim, os eleitos do rádio nada ou quase nada fizeram para o sem-fio de nossa terra. Para si mesmo, devem ter feito algo. Além de receber os polpudos subsídios. A bem dizer, era essa a verdadeira meta de quase todos. Tudo isso, porém, não tira o mérito de alguns poucos: os que chegaram às áreas do legislativo depois de longa vida dedicada a um trabalho edificante e dignificante, com sinceridade de propósitos. É o caso do nosso tão conhecido Júlio Louzada, que foi nas últimas eleições para a Assembleia Constituinte de nosso Estado, e cuja biografia resumida o leitor encontrará no final desse livro.

 

Os horóscopos

Uma verdadeira praga no rádio. Principalmente nas estações que se dizem populares. Querem angariar audiência a qualquer preço. Uma besteira que não tem sentido. Mas que prende muita gente ignorante com o ouvido colado no receptor. Besteira, digo, não para atacar a astrologia que eu considero uma ciência. Mas, geralmente, os programas do gênero estão a cargo de charlatães, sem a menor noção do que estão dizendo. Desafiam uma série de sandices que não estão no mapa...

É fácil comprovar a charlatanice dos tais programas: é só ouvir dois ou três, no mesmo dia, em estações diferentes. Depois, testa-se o que foi dito ou “aconselhado”. Encontrarão prognósticos completamente contrários, que se chocam de maneira ridícula. Já ouvi, no mesmo dia, uma estação dizer: “Você, aquariano, terá um dia cheio de realizações. Aproveite para realizar seus projetos. Dia bom para viagens”. Outra estação prognóstica: “Para os aquarianos, o dia de hoje deve ser levado com cuidado e prudência. Dia bom para ficar em casa cuidando dos seus afazeres”.

Mas não é só no rádio que isso acontece. Qualquer pessoa poderá constatar o que aqui reafirmamos. Os jornais também, quase todos, têm os seus “astrólogos”. Vejam como “coincidem” as previsões. Por trás desses conselhos vem uma série de “contos de vigário”: venda de amuletos, livros, almanaques, etc. Os “trouxas” encomendam, e enriquecem os seus autores.

 

Os programas de calouros

De passagem já abordei o assunto. Mas este é um tema que merece capítulo especial. O primeiro programa (não especializado no gênero) que iniciou no rádio o lançamento de gente nova foi “Horas do Outro Mundo”, na Antiga Rádio Philips do Brasil. Revelou para o sem-fio: Aracy de Almeida, Joel e Gaúcho, Ary Barroso, Barbosa Júnior, João Petra de Barros, Saint-Clair Lopes, Ismênia dos Santos, Ecyla Jopert, Olga Nobre, Alda Verona, e alguns mais.

Deve esclarecer que sempre tive particular repulsa por esse termo “calouros”. Tanto que, nos 28 anos em que “Papel Carbono” esteve no ar revelou mais de 100 artistas, jamais o rotulei como “programa de calouros”, e sim apresentação de valores novos, “ilustres desconhecidos” à procura de uma oportunidade para se revelarem.

Os programas especificamente de calouros começaram em 1935, na antiga Rádio Cruzeiro do Sul. Situava-se no 10º andar do edifício do Cinema Império, na Cinelândia. Era comandado por Edmundo Maia e Paulo Roberto. Assumiu, posteriormente, a apresentação Ary Barroso, que para ali se transferira em 1936. Passou-se depois para a Rádio Tupi, numa mudança rumorosa para a época, assumindo a chefia as irradiações esportivas. Viria a se consagrar pela linguagem cheia de verve, a famosa gaitinha e a incontida paixão pelo Flamengo (demonstrada nas transmissões). Levou também o programa de calouros, que passou a se denominar “Calouros do Ar”.

Daí por diante essa espécie de espetáculo proliferou em inúmeras emissoras das capitais e do interior. Tornava-se uma das principais atrações de qualquer programação. Contudo, a grande maioria não se fazia notar pela qualidade. Muito pelo contrário. Alguns apresentadores parece que achavam quanto pior, melhor. Explica-se. O público, a grande mola propulsora de qualquer programa, estava, via de regra, animado por certa dose de sadismo (o dos auditórios, principalmente). Parece que se compraziam mais em ver um “pobre diabo” levar uma gongada, buzinada, ou coisa que o valha, do que mesmo constatar a vitória de um candidato de mérito. Aplaudiam. Mas o de que gostavam mesmo era de rir do fracasso do corajoso que se apresentava sem a menor condição.

É de se louvar, contudo, a tenacidade de alguns elementos. Quando não fracassavam de vez, mas tiravam segunda, terceira ou quatro lugar no programa, voltavam a se inscrever duas, três ou quantas vezes fossem necessárias. Até se fazerem notados. Alguns deles, nessa difícil maratona, conseguiram o seu intento. No “Papel Carbono” posso citar diversos que ali se apresentavam por mais de uma vez. E hoje são grandes cartazes dos meios artísticos: Dóris Monteiro, Alaíde Costa, Ângela Maria, Élen de Lima, Hélio Paiva, Almir Saint-Clair, Joelma, Claudete Soares, Ivon Curi, Ademilde Fonseca, e outros. Alguns, porém, tentaram e não tiveram sorte. Passaram a ser ironicamente chamados de “calouros-veteranos”. A título de curiosidade, cito apenas um. Parece que já “pendurou as chuteiras”. Tornou-se célebre pela assiduidade com que compareceu aos referidos programas durante mais de 20 anos. Houve um dia que cantor em três programas: “Aí Vem o Pato”, na Rádio Nacional; “Calouros do Ar”, na Tupi e “Papel Carbono”. Era um rapaz (depois um senhor, depois quase um velho) chamado Alexandre Belucci. Tinha bonita voz de tenor. O seu forte eram as canções napolitanas e algumas árias de óperas. Ganhou os primeiros lugares muitas vezes. Mas não teve a sorte de fazer carreira. Não sei se pelo repertório, ou se pela sua figura pouca sedutora: era pequenino, magro e feio. Tenho visto, porém, muita gente menor e mais feria do que ele vencer no rádio. Mistérios da carreira artística, onde o fator sorte também é preponderante...

Dentre os programas de calouros mais conhecidos no Rio podemos citar: a “Hora do Pato”, que passou a ser “Aí Vem o Pato”, na Nacional. Héber de Bôscoli, criador do programa e dono do título, saiu dali para a Mayrink Veiga. Ficou a apresentação a cargo de Jorge Curi, que sempre se houve com muita linha e discrição; “Pescando Estrelas”, que Arnaldo Amaral apresentou na Rádio Clube (quando deixei a PRA-3), substituindo meu “Papel Carbono”. Aliás, quero fazer justiça aquele saudoso amigo e colega. Procurou imprimir ao “Pecando Estrelas” a mesma linha de respeito pelo público que eu adotara nas minhas apresentações, coisa que repercutia favoravelmente junto aos ouvintes; e, finalmente, a famosa “Buzina do Chacrinha”, talvez o mais conhecido e o mais popular, em que pese a irreverência do seu tão discutido animador, sem dúvida um dos maiores comunicadores da nossa terra.

O interessante, nos programas dos calouros, é que cada animador atribui a si a descoberta de “todos” os artistas que por aí se exibem. Quando interrogado a esse respeito, sempre respondi, provando com datas, pormenores e, muitas vezes, com os depoimentos dos próprios artistas: “Papel Carbono”. Não para me enfeitar com as glórias que não são minhas, pois ninguém dá voz, ritmo ou afinação a ninguém. E se apareceram em maior número no meu programa era porque realmente tinham valor. Procuravam-me, sabendo do cuidado e do respeito com que os tratava. Ali não passariam os vexames tão comuns nas audições do gênero. Somente isso.

 

Os programas de variedades e de auditório

O primeiro grande programa de variedades durava mais de duas horas. Chegou, com o tempo, a três e até quatro horas de irradiação. Era o “Programa Casé”, começando em 1932. Embora transmitido em estúdios fechados, não deixava de ter um pequeno auditório. Ouvintes assistiam-no através do “aquário” (que era como chamávamos a janela de vidro que permitia ver de fora o que se passava dentro).

Um dos melhores programas de auditório que marcaram época foi “O Trem da Alegria”, de Héber de Bôscoli. Apresentava Yara Sales e Lamartine Babo, formando o tão celebrado Trio de Osso. Era assim chamado pela extrema magreza dos seus componentes, que aliás ficou comprometida, depois de algum tempo, pelo fato de Lamartine Babo, que era o mais magro, começar a engordar sem saber como nem por quê...

Era transmitido dos auditórios da Rádio Mayrink Veiga. Posteriormente, após passar pela Rádio Nacional, mudou-se novamente para a onda da Mayrink. Era, então, transmitido do palco do Teatro Carlos Gomes. A plateia tornou-se pequena para acolher os ouvintes que para lá se dirigiam a fim de assistir a duas ou três horas de transmissão diária.

Tivemos também o programa “Manoel Barcelos”, ás quintas-feiras, das 11 ás 14 horas, pela Nacional. E o “César de Alencar”, aos sábados das 15 ás 19 horas, também pela PRE-8. Estes dois últimos se notabilizaram pela rivalidade que provocavam, deliberadamente, entre asa cantoras Marlene e Emilinha Borba. Cada um “patrocinava” uma delas. Desencadeavam uma verdadeira (e ridícula) “guerra” entre as fãs das duas populares artistas. Portavam-se elas de tal modo que, merecidamente, passaram a ser chamadas de “macacas de auditório”.

O mais longo, porém, e o que mais tempo esteve no ar foi chamado “Programa Luís Vassalo”: estendia-se do meio-dia até às 21 horas. Tinha esse nome porque seu titular (o saudoso e excelente homem de rádio) era o corretor de quase todos os patrocinadores dos diversos quadros que a Nacional transmitia naquele período, e dos quais ele mesmo não participava pessoalmente. O “Programa Luís Vassalo” começava ao meio-dia com a audição de “Quando os Ponteiros se Encontram”, com Francisco Alves apresentado por Lúcia Helena (justamente considerada a melhor locutora do nosso rádio). Seguia-se o “Doutor Enfezulino”, animado por Osvaldo Elias; a “Hora do Pato”, com Héber, depois com Jorge Cúri; “Coisas do Arco da Velha”, com todo o cast humorístico da emissora, onde se destacavam Floriano Faissal, Brandão Filho, Nilza Magrassi, Walter e Ema D´Ávila, Apolo Correia, e outros; a transmissão esportiva com Antônio Cordeiro, depois Jorge Curi; “Tabuleiro da Baiana” com o quadro “Neguinho e Neguinha” (vividos por Floriano e Ismênia dos Santos); “A Felicidade Bate á sua Porta”, irradiado sempre de um bairro qualquer da cidade por grandes do cast de cantores, onde pontificava a Emilinha; “Tancredo e Trancado”, de Ghiaroni, com Brandão e Apolo Correa; “Piadas do Manduca”, com Lauro Borges, Castro Barbosa, Brandão, Alfredo Viviani, Alda Verona e eu; “Nada Além de Dois Minutos”, do fabuloso Paulo Roberto. Com tudo isso, creio que o “Programa Luís Vassalo”, pela sua duração e variedade, foi o precursor do hoje famoso “Programa Sílvio Santos”, que vemos todos os domingos...

 

Publicado originalmente em MURCE, Renato. Bastidores do rádio: fragmentos do rádio de ontem e hoje. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976.

sábado, 17 de abril de 2021

Bastidores do rádio, parte VI de VII: Rádio “versus” televisão

Bastidores do rádio, parte VI de VII: Rádio Nacional “versus” televisão

 

Por Renato Murce

Seleção e transcrição: Matheus Trunk

 


Há muita gente que afirma: a televisão matou o rádio, principalmente a Rádio Nacional. Sendo elemento novo de comunicação mais atraente, não só contratou os melhores do teatro e do rádio, como passou, por isso mesmo, a dominar os chamados “horários nobres”. Não é verdade. Primeiro porque não “matou” coisa nenhuma. Obrigou, isso sim, o rádio a procurar novos caminhos de sobrevivência. Não só valorizando horários antes desprezados, como melhorando e ampliando muito suas transmissões jornalísticas e esportivas. Nisso, a TV dificilmente competirá com êxito. Também a grande expansão do transistor e dos receptores em automóveis granjearam para o rádio um número considerável de novos ouvintes. Podem “curtir”, assim, um bom radioteatro em horários que não colidem com os da TV.

 

É preciso também notar que a TV é um “Moloch” terrível. Devorador de imagens e de programas, que em pouco tempo precisam ser substituídos. Ela não deixa nada para a imaginação do telespectador. Este acaba por se cansar. E é muito mais difícil e muito mais cara de fazer funcionar do que o rádio. Vive copiando (e mal copiado) tudo aquilo que o rádio já fez, com sucesso, há 20 ou 30 anos atrás. A prova de que a TV não acabou com o rádio, aí está: várias emissoras de rádio (Globo, Jornal do Brasil, Tupi, Mauá, e mais algumas) progrediram muito depois do surgimento da televisão.

 

Ocorreu o mesmo susto verificado quando diziam que o cinema falado “acabaria” com o teatro. Já se pensara antes que o rádio se constituiria num “desastre” para a imprensa. Nada disso! Cada um desses elementos de comunicação tem o seu lugar e o seu público. A questão é saber situar-se devidamente.

 

Regrediram, sim, as emissoras mal administradas. Estas, sim, tiveram ação que podemos chamar de suicidas. É o caso da nossa tão querida Nacional. Apesar de todos os pesares, ainda tem os seus adeptos, os seus amores fiéis; graças a um pequeno grupo de abnegados e veteranos funcionários, consegue manter no ar alguns programas de entrevistas e radioteatro, além das novelas. Também os programas musicais da Rádio Nacional (são de bom nível). Mas, programa musical de bom nível não dá prestígio; uma pequena emissora, de qualquer lugar, pode competir com os mesmos.

 

Têm as rádios, ainda hoje, melhores equipes esportivas e jornalísticas do que a televisão. No jornalismo a TV só leva vantagem na imagem. Diariamente, informa tudo com relativo atraso (quanto ao rádio). Quanto ao setor esportivo, nenhuma TV pode competir com as equipes da Globo, da Nacional, da Mauá, da Tupi, da Continental e das outras. Como se sabe, a audiência dos esportes é enorme. Talvez a maior do Brasil, competindo até (creio que com vantagem) com as novelas.

 

Humorismo é outro assunto que merece destaque neste livro. Ele começou timidamente, com um programa da Rádio Sociedade, por volta de 1930: “Manezinho e Quintanilha”. Sabíamos aqui no Rio do grande sucesso que alcançava em São Paulo o programa de Nhô Totico (mais para criança). Seguia-se aqui no Rio os quadros do programa “Horas do Outro Mundo”. Tivemos depois, a “Pensão do Salomão”, criação e apresentação de Jorge Murad; as situações e piadas incluídas no programa “Alma do Sertão”, além das “Piadas do Manduca”. Também tivemos a “Hora Só...Rindo”, de pouca duração.

 

Um dos programas de humor mais fino mais bem bolado de todos os tempos foi o “Jornal Humorístico”, de Lauro Borges. Era denominado “A Buzina” (muita gente pensa que “A Buzina”, título, é criação do Chacrinha). Esse jornal satirizava, de forma inigualável, o mundo todo; através de inúmeros correspondentes espalhados pelos cinco continentes. As notícias eram apresentadas, caricaturalmente, no sotaque do alemão, do português, do francês, do russo, do italiano, do inglês, do japonês, do espanhol. Isso, da maneira a mais hilariante possível. Era qualquer coisa fora do comum. Só mesmo um Lauro Borges poderia fazê-lo. Essa habilidade, ele iria demonstrar depois, amplamente, na celebérrima PRK-30. Foi outro ponto fortíssimo através dos tempos.

 

Outros humoristas, de amplos méritos, reconhecidos através das ondas hertzianas: Chico Anísio, José Vasconcelos, Barbosa Júnior e Silvino Neto. Houve, porém, um acontecimento no rádio que deixou os espectadores e nós mesmos, do meio, perplexos: PRK-30 era (e assim o considero até hoje) o melhor programa de humor que o rádio já transmitiu. Pois bem, o repentino e inesperado rompimento de Lauro Borges e Castro Barbosa com a Rádio Nacional, deixou todos em expectativa e dúvida. O que poderia a Rádio Nacional colocar, naquele horário das 20h30min ás sextas-feiras, para substituí-lo? Parecia impossível. Apareceu um humorista, vindo, não sei se da Mayrink ou da Tupi, chamado Max Nunes. Resolveu o problema de maneira absolutamente surpreendente: chegou com um programa. Logo, no dia seguinte à sua estreia, já era famoso: “Balança, mas não Caí”. Tão famoso, que tomou de golpe a posição de primeiro lugar que pertencia antes ao PRK-30.

 

“Neguinho e Neguinha”, “Jararaca e Ratinho”, “Coisas do Arco da Velha”, “Alvarenga e Ranchinho”: outros momentos alegres que a PRE-8 apresentou por muito tempo. Outras emissoras, como a Mayrink e a Tupi, também tinha alguns programas do gênero. Melhores eram os da Mayrink. Atuavam dois gênios do humorismo: Sérgio Porto (o inesquecível Stanislaw Ponte Preta) e o inteligentíssimo Antônio Maria, nomes que jamais serão esquecidos.

 

Local muito falado e muito badalado foi o famoso Café Nice. Sobre este, o grande jornalista Nestor de Holanda escreveu um livro. Mas há certo exagero no que se diz e no que se conta do Café Nice. Parece que aquela casa era a sede ou a filial do próprio rádio. Não era bem assim. No Café Nice juntava-se diariamente grande parte dos boêmios do rádio. Muitos elementos duvidosos ali iam em busca de vender um samba; ou arranjar uma parceria para o mesmo. Além de alguns repórteres argutos, como o próprio Nestor, o Orestes Barbosa, Nássara, e alguns mais, à cata de assuntos e fofocas (que as havia às toneladas) sobre o rádio. Os grandes nomes do sem-fio lá iam raramente. Tinham outros pontos de encontro. Grupos certos nunca antes citados frequentavam o Bar Hansiática, a Taberna Carioca, a Taberna da Glória, o Café Chave de Ouro e o Café Universo. Não estou querendo, com isso, destruir o “mito” Café Nice. A verdade é que lá prevalecia a quantidade e não a qualidade da gente do rádio.

 

E é bom que se diga: nas Memórias do Café Nice, o saudoso amigo Nestor conta muito mais coisas ocorridas fora daquele ambiente, do que mesmo na tão falada esquina. Escritor brilhante, paciente pesquisador de fatos e figuras da sua época, praticamente esgotou grande série de fatos pitorescos e inúmeras gafes da gente do rádio.

 

Falei em humorismo e humoristas, mas não falei nos cômicos. São atuações diferentes. Embora alguns artistas reúnam as duas. Mas não posso omitir alguns nomes, principalmente o do grande Brandão Filho, que desopilou o fígado de algumas gerações; Apolo Correia, Walter e Ema D`Ávila, Alfredo Viviani, Tutuca, Navarro de Andrade, Matinhos, Zé Trindade, Renato Aragão, Colé, Dedé Santana, Chocolate, Floriano Faissal (também notável diretor de radioteatro), Altivo Diniz; e outros cuja omissão peço perdoar: a memória não dá para citar todos.

 

Deixei para referência à parte um nome que merece todo o destaque. Pelo seu talento, tarimba, versatilidade e pela gloriosa carreira de mais de 70 anos: Henriqueta Brieba. Essa atriz eu a vi cantando e dançando, em 1920, nos teatros da Praça Tiradentes. Conheço-a bem. Não só pelo convívio de 26 anos na Rádio Nacional, como também pelo seu comportamento nas excursões que fiz por todo o Brasil, onde tive a felicidade de inclui-la, podendo melhor aquilatar o seu valor em qualquer gênero em que se empregasse. Henrique Brieba, mais do que qualquer outra das nossas artistas, está a merecer uma consagração, um movimento. Algo que a compense um pouco (financeiramente) do muito tempo que trabalhou por “pingues” salários. Contracenou com gente que não tinha a metade do seu valor. E que ganhava o dobro e o triplo. Não fora a minha idade, também avançada, e o cansaço de tantos anos de trabalho mal compensado, promoveria essa consagração. Na impossibilidade de fazê-lo, deixo aqui a ideia...

 

Deixo para o fim deste trabalho o quadro de honra dos que, na minha opinião, foram os maiores do rádio em seus diversos setores.

 

Faço um pequeno retrocesso: volto a um assunto que já tratei. A ojeriza da imprensa pelo rádio foi, ainda há pouco, mais uma vez demonstrada, quando da exibição do filme A Estrela Sobe. Era uma adaptação livre, baseada, segundo seus produtores em um romance de Marques Rebelo, já desparecido. Segundo alguns, ignorantes no assunto, o referido filme retratava o início da vida artística de Carmen Miranda. Nada mais falso, nem injusto. A “Pequena Notável” jamais precisou se valer dos meios relatados naquela película. Ao contrário: pelo seu inegável valor, até hoje insuperado, era solicitadíssima, não só pelo rádio como pelo cinema, a ponto de obter vantajoso contrato para filmar nos Estados Unidos. Sua conduta, podemos todos testemunhar, era das mais corretas. Além disso, seu grande amor, ao qual ela permaneceu fiel enquanto esteve no Brasil, era um esbelto rapaz, remador do Clube de Regatas do Flamengo e nem pertencia ao meio radiofônico. O que nos pareceu foi que o filme em questão pretendeu mostrar o ambiente predominante do nosso rádio. E apesar de não ter maiores méritos, salvo um trabalho razoável de Betty Faria e Eduardo Dolabella, mereceu da crítica especializada os maiores encômios. O célebre “bonequinho” de O Globo apareceu de pé batendo palmas. Dizem que foi também um grande êxito de bilheteria. Tinha seu ponto culminante numa cena grosseira de estupro, talvez ali encaixada para promover o erotismo do espectador.

 

Apesar de, em minha vida, ter sido apontado como célebre “mulherólogo” (como, certa vez, me chamou Sérgio Porto), isto é, grande apreciador do que há de melhor no mundo, a mulher, desafio quem aponte no meu procedimento com as que buscava uma posição no rádio, uma insinuação maldosa sequer. E como eu, muitos outros animadores de programas de calouros. Conduta inatacável. Por exemplo, o Arnaldo Amaral. O próprio Ary Barroso, com aquela sua intemperança, com aquela sua maneira acre de tratar os candidatos, era, sob esse aspecto, corretíssimo. Escrevo essas linhas para defender o rádio. Desfazer uma imagem falsa que o filme A Estrela Sobe pretendeu criar para as nossas artistas que, evidentemente, não eram “santinhas”, mas na sua quase totalidade não se valeram daqueles processos pra galgar suas posições no sem-fio. Algumas (poucas) que o tenham, feito, constituem exceções que confirmam a regra.

 

Um fato que ninguém sabe, ou do qual apenas muito poucos se lembram (bastante curioso, muita gente pode pensar que estamos fantasiando): a primeira experiência de TV, no Brasil, um ou dois anos antes da instalação da TV-Tupi, foi feita nos estúdios da Rádio Nacional. Como? Indagarão os mais céticos. Certa vez, no começo da década de 1950, estávamos nos preparando (domingo à noite) para a transmissão dos nossos programas. Vimos o auditório e o respectivo palco serem invadidos por uma porção de máquinas, cabos, refletores, etc. Pensamos, primeiro, que fosse uma filmagem da Atlântida, mas não. Uma empresa francesa, cujo nome ignoro, tentava vender uma estação transmissora de TV à Rádio Nacional. Aquele dia, o Vítor Costa marcara para o devido teste. Mas testar como? Ninguém sabia de nada. Nem nós mesmos. Ninguém tinha aparelho receptor. Como ia ser? A tal empresa providenciara tudo: instalara dois aparelhos receptores na cidade: um na antiga casa A Exposição, na Avenida Rio Branco esquina de São José; outro, numa ótica que ficava em frente.

 

Foi quando os locutores receberam ordem de anunciar a sensacional experiência. Quem quisesse assisti-la que se dirigisse para aqueles lugares. Juntou uma verdadeira multidão ante os receptores. A experiência foi feita. O primeiro programa a ser televisionado foi o “Nada Além de Dois Minutos”, de Paulo Roberto. Seguiu-se “Papel Carbono”. Mas a coisa não “colou”!

 

Os que foram assistir não viram quase nada, as imagens muito brancas, tudo muito confuso. Assim, a Rádio Nacional não fez o negócio. Já parecia uma profecia: jamais teríamos esse moderníssimo meio de comunicação.

 

Como já relatei, a Rádio Nacional, embora pagasse mal aos seus artistas (não aos seus diretores, estes nadavam em outro), tinha a grande vantagem de promove-los por todo o Brasil. Todos, ou quase todos, se valiam para sair em excursões que ajudassem a reforçar suas verbas escassas.

 

Todos queriam ver, de perto, aqueles que somente eram ouvidos de longe. Se muitos artistas correspondiam ao que neles se esperava, outros envergonhavam a classe com procedimentos os mais reprováveis, aí pelo interior do país. Na sua maioria ignorantes, julgavam-se deuses. Achavam-se com o direito de agir como bem entendessem. Não observavam o menor código de ética ou educação; bebiam, chegavam atrasados para os espetáculos, etc.

 

Este livro não tem o propósito de promover ninguém. Nem denegrir a reputação de quem quer que seja. Menos ainda em se tratando de gente já falecida; ou fora de circulação pela idade, ou por decadência. Sem dizer os nomes, vou contar três pequenos episódios. Podem ser comprovados nos lugares onde se passaram (se alguém ainda se lembrar), há mais de 20 anos.

 

Em Vacaria, Rio Grande do Sul, existe uma família tradicional no lugar (um renomado médico). Essa família sempre homenageava o artista que estava de passagem por ali. E isso também foi feito com a nossa caravana que ali passou: uma lauta ceia e brindes de cartões de prata e outros presentes. Certa vez, duas estrelas do rádio carioca, de passagem por ali, foram visitadas no camarim por um representante da aludida família. Queria homenageá-las, após o espetáculo. Concordaram logo. Terminada suas exibições, desapareceram em companhia de alguns rapazes. Deixaram a família esperando até altas horas da noite. Foram encontradas completamente embriagadas nos bas-fonds mais desmoralizado daquela cidade gaúcha.

 

Outra: em Rio Negro, na fronteira do Paraná com Santa Catarina, aguardavam a presença de um dos maiores cantores que o Brasil já teve. Estava habituado a cantar para plateias superlotadas. Naquele dia, não se sabe por que, o público não compareceu como se esperava. Não lotou nem um terço do auditório. O nosso artista chegou ao palco e disse apenas: “Boa noite senhores, não vai haver espetáculo porque eu não sou artista para cantar para casas vazias”. Retirou-se, debaixo da maior vaia. Foi necessária a intervenção da polícia para não ser devidamente “tascado”.


Em Araçatuba, outro grande cantor (também em seu apogeu) estava sendo aguardado, ansiosamente, para o show combinado e nada de chegar; 9 horas, 9 e meia, 10 horas, 10 e meia. O público já estava impaciente, como era natural. Chegou, embriagado, com a camisa toda suja. E sobraçando um violão onde faltavam duas cordas!...Foi um “corre-corre” dos diabos para pôr o homem “em forma”: amônia, café sem açúcar, camisa nova, tudo arranjado. O homenzinho conseguiu cantar, mais ou menos, meia dúzia de músicas para um público paciente e generoso como eu nunca vira (eu estava lá e presenciei tudo).

 

Hoje, felizmente, parece que as coisas estão um pouco melhores. É preciso que assim seja. Já é tempo de se conceituar os artistas de maneira diferente do que vem sendo feito até aqui. O artista é uma criatura como outra qualquer. Com os mesmos defeitos e as mesmas qualidades de todos os que atuam em outras profissões. Mas, como vive em função do público, os defeitos como as qualidades são vistas com lentes de aumento.

 

Em muitas classes, principalmente naquelas mais sofisticadas, os procedimentos são muito mais condenáveis, só que não são divulgados. Os deslizes, o comportamento dúbio, são muito mais frequentes. O artista é que leva a pecha de marginal da sociedade, de imoral. Ou indigno de conviver com as “santas” famílias de outras classes. Aqueles que por acaso, deslustram a sua profissão, são no mesmo número dos funcionários públicos, dos comerciários, dos profissionais liberais, e muitos mais; só que estes não têm a publicidade negativa daqueles. Estou terminando o trabalho que me propus. Principalmente depois de procurar, em todas as livrarias da cidade, algo semelhante, sem encontrar, isto é: um depoimento sobre a vida do rádio, contado despretensiosamente, sem preciosismo literário. E sem aquele alinhamento de datas e dados técnicos capazes de tornar “chato” qualquer livro. Quis contar o que sabia, valendo-me da minha memória. Quaisquer erros ou lacunas aqui encontrados, que me sejam perdoados. Levem em conta a natural esclerose de um homem que, aos 76 anos, não tem o devido preparo físico para fazer uma obra de pesquisa e bem coordenada. O rádio brasileiro, ou melhor, o rádio carioca foi mais ou menos isso que vocês leram. Se é que tiveram a paciência de chegar até aqui...

 

Se a tive para realizar este trabalho, cujo mérito, admito, é discutível, mas não de todo negativo, foi porque, ao sentir o cansaço pela idade ou o desânimo por outras dificuldades, tive sempre em mente este lindo “Poemeto” de Longfellow. Acredito que possa servir de lema para muita gente:

 

Conte seu jardim pelas flores; nunca pelas folhas que caem...

Conte seus dias pelas horas ensolaradas, não se lembre das enevoadas...

Conte suas noites pelas estrelas, não pelas sombras...

Conte sua vida pelos sorrisos, não pelas lágrimas..

E, através da vida,

Conte sua idade pelos amigos, não pelos anos!

E creiam, se eu contar minha idade pelos amigos que tive a ventura de conquistar, posso me considerar um autêntico Matusalém...

 

Publicado originalmente em MURCE, Renato. Bastidores do rádio: fragmentos do rádio de ontem e hoje. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976.

sexta-feira, 16 de abril de 2021

Bastidores do rádio, parte V de VII: Rádio Nacional

Bastidores do rádio, parte V de VII: Rádio Nacional

 

Por Renato Murce

Seleção e transcrição: Matheus Trunk

 

Fomos para a Rádio Nacional em julho de 1945. Aqui começo, então, o capítulo que aquela grande emissora merece. A Rádio Nacional foi a própria essência do rádio no Brasil por cerca de duas décadas. Desde a sua fundação, em 1936, começou a assumir a liderança das transmissões artísticas. Essa liderança consolidou-se. Não mais a perdeu até a década de 1960.

 

Teve início então o seu declínio, numa descida impressionante e lamentável. Os ouvintes, até hoje, não podem compreender como aconteceu. Nós, porém, que lá trabalhávamos, sabemos muito bem as caudas dessa derrocada.

 

Inaugurada em 1926, sob os auspícios do vespertino A Noite, jornal então popularíssimo, dispunha, ainda, de outros órgãos de divulgação, como A Noite Ilustrada e Carioca, revistas muito bem aceitas pelo público. Davam uma larga cobertura às atividades da PRE-8. Começou logo a se destacar, embora lutando durante cerca de quatro anos com as outras estações, pois a Mayrink Veiga liderava o sem-fio desde 1934.

 

Passou ela, no entanto, para a órbita governamental em 1940. A Rádio Nacional, anexada às Empresas Incorporadoras ao Patrimônio Nacional, assumiu o primeiro lugar entre as rádios do Brasil. E se manteve de maneira desacatadíssima durante mais de 20 anos. Mas com essa transformação de empresa particular em “repartição pública”, criou-se uma situação para seus artistas e funcionários. Não sabiam que terreno se situavam: continuaram como comerciários, descontando para o IAPC como tal. E como servidores públicos, servindo a uma repartição do governo. E essa dubiedade não se definiu pelos tempos afora.

 

Até os dias de hoje, quando muitos já se aposentaram, continuamos comerciários. Em todos os movimentos em favor dos inativos, nós, praticamente, “não existimos”. Acham que quem não foi servidor público (e nós, oficialmente, não o somos, apesar dos 26 anos de serviço na Rádio Nacional), não tem direito a nenhum aumento, a nenhum reajuste. Como se nós também não tivéssemos os nossos problemas, e bem sérios, para não falar em nossas necessidades, mais sérias ainda.

 

Isso, porém, não foi culpa da Rádio Nacional, mas dos inúmeros diretores que por lá passaram. Não moveram uma palha para legalizar essa posição dúbia dos seus auxiliares.

 

Feita essa digressão, não direi de ordem reivindicatória (porque não vai adiantar nada), voltemos a falar da Rádio Nacional propriamente dita. Foi um padrão de emissora. Não só para o Brasil, mas até mesmo para toda a América Latina. Chegando, em pouco tempo, a suplantar a célebre Rádio El Mundo, de Buenos Aires, tida como insuperável.

 

Tendo em seu cast o que de melhor havia no meio artístico da nossa terra, além de colaboradores experimentados e compententíssimos, a Rádio Nacional, de certa época em diante, não precisava lutar por uma liderança. A cada dia mais se afirmava. Dois anos depois, em 1942, tomou conta de quase todos os aparelhos receptores. Lançou então sua primeira novela: “Em Busca da Felicidade”.

 

Estava com o prestígio consolidado, e assim se manteria por muito tempo. Graças a uma equipe fabulosa de produtores e um cast artístico da mais alta qualidade. Encontrávamos ali nomes como: Lamartine Babo, Almirante, José Mauro, Haroldo Barbosa, Paulo Tapajós, Fernando Lobo, Nestor de Holanda, Giuseppe Ghiarone, Alizro Zarur, Oracine Franco, Ilka Labarte, Léa Silva, professora Lúcia de Magalhães, Paulo Roberto, Ary Barroso, Lourival Marques, J. Rui, Max Nunes, Mário Faccini, Pedro Anísio, Hélio do Soveral, Mário Lago, Saint-Clair Lopes, Oduvaldo Viana, Dias Gomes e Gastão Pereira da Silva. Maestros da envergadura de Radamés Gnatalli, Romeu Ghipsman, Léo Perachi, Lírio Panicali, Alceu Bochino, Alberto Lazzoli, Alexandra Gnatali, Escole Vareto, Chiquinho e mais alguns.

 


Antes, porém, de começarmos a contar as possíveis razões da queda da Rádio Nacional, deixemos de lado a nossa memória. Vamos nos valer de um bem feito catálogo que a grande emissora publicou para distribuir aos clientes e amigos.

 

Em 12 de setembro de 1956, comemorou ela com grande pompa seus gloriosos 20 anos de existência. Pairava a radiosa esperança da breve instalação da TV Nacional, prometida pelo Sr. Juscelino. O memorável despacho era de 18 de julho daquele ano. Chegou-se, até, a importar todo o material da melhor qualidade para aquele evento. Sou admirador do Sr. Juscelino, em que reconheço grandes méritos. Dei-lhe o meu voto. Julgo-me insuspeito para atribuir-lhe, em parte, a decadência da Nacional. Mas ele numa atitude, para nós, incompreensível, vetou posteriormente a TV Nacional.

 

Constava o seguinte: o Sr. Assis Chateaubriand vislumbrou o risco que correriam as Emissoras Associadas (a concorrência de uma TV). A nova TV Nacional levaria para as suas antenas toda aquela incomensurável força e o amplo know-how que sempre demonstrara. Assis Chateaubriand ameaçou o então presidente da república: iniciaria e desenvolveria uma campanha política contra o seu governo. Faria isso através de sua grande rede de emissoras de rádio, TV e jornais. Razões políticas, portanto, devem ter influído no gesto do Sr. Juscelino. Quando o material chegou à Rádio Nacional, foi encaminhado para Brasília. Está lá até hoje. Choveram promessas de mandar buscar outros transmissores. De promessa em promessa, a coisa foi caindo no esquecimento. Assunto encerrado.

 

Vale reproduzir pequenos trechos do discurso com que o diretor da Nacional, na época o Sr. Moacir Arêas, se dirigiu ao público, sob o título de “O Salto para o Futuro”.

 

“Ao folhear a última página deste livro, o leitor deverá ter uma noção, ainda que apenas em largos traços, do que é hoje a Rádio Nacional...Como broadcasting a sua curva ascendente perde-se no infinito. E a sua missão está literalmente cumprida. Os novos passos, neste terreno, serão a rotina do progresso e da adaptação às novas condições com que fatalmente se defrontará o rádio em nosso país, diante do advento da televisão. Então, meus amigos, o assunto que marca este salto para o futuro é a televisão. O presidente Juscelino Kubistcheck de Oliveira, em memorável despacho de 18 de julho de 1956, acertou definitivamente os rumos da “Nacional TV”. Muito cedo, nos próximos meses, os receptores da televisão da Capital da República e adjacências estarão assinalando a existência do Canal 4, onde se estampará a imagem da nossa TV...Com estas notícias creio encerrar este livro com fecho de outo, pois elas levarão alegria e entusiasmo a esse generoso público que sempre apoiou a Rádio Nacional...Nesse instante tão longínquo do futuro, então a Rádio Nacional, através de sua televisão, procurará estar presente, como sempre, ao lado e a serviço do povo brasileiro”.

 

Agora, pergunto eu: haverá uma só pessoa nesse imenso Brasil que possa duvidar do predomínio total que a TV Nacional iria exercer sobre o público? A larga experiência, a quantidade fabulosa de colaboradores de que dispunha, o conhecimento profundo do paladar do público em relação a programas, etc.? Não! Ninguém poderia competir com a Nacional na televisão. Também jamais pôde competir no rádio. A sua fase áurea predominou por mais de 20 anos.

 


O livro publicado para comemorar essa vintena de trabalho, é notável. Dá bem uma ideia do poder da emissora. Publica mais de 200 expressivas fotografias. Apresenta uma relação de 112 radioatores e radioatrizes; 76 cantores e cantoras; 99 músicos contratados (só os violinos eram 25); 47 músicos a cachê; 16 músicos dos conjuntos regionais; 10 solistas; 46 locutores; 5 repórteres e 22 produtores. Isso, sem contar o pessoal técnico e administrativo. Totalizava cerca de 700 pessoas a serviço da emissora. No mês de setembro de 1956 a Nacional tinha no ar: 16 novelas; 10 programas de radioteatro (não seriados); 15 programas mistos; 22 programas de auditório e 6 programas especializados.

 

Mas o livro sobre os 20 anos da Rádio Nacional está muito bom. Muito fiel no relato das suas inegáveis grandezas. Como é natural, omisso nas suas falhas, nos seus erros, que não foram poucos.

 

Na Nacional predominava a disparidade de vencimentos: uns ganhando salários fabulosos para a época; outros, a maioria salários “de fome” (como acontece ainda hoje nas grandes empresas). A caixa, atendia pela paciente e bondosa D. Maria, era procurada diariamente. Uma romaria de artistas e funcionários ia em busca de pequenos vales para atender a necessidades prementes.

 

Os ordenados da Rádio Nacional, que antes eram os mais sedutores, pararam no tempo e no espaço. Principalmente para os artistas e funcionários antigos da casa. Para os que chegavam nas caravanas de “paraquedista” acompanhando os diretores (frequentemente mudados), os vencimentos eram mesmo quatro ou cinco vezes maiores do que os dos que lá estavam. E chegavam, para “não fazer nada”.


A estação passou, então, a não ter mais atrativos. Foi, paulatinamente, suplantada pelas outras. Chegou a ocupar um lugar ridículo quanto à audiência.

 

Engraçado é que a esperança da televisão ainda se manteve por algum tempo. As máquinas importadas para nós tiveram rumo de Brasília (ordem do governo, para satisfação do Sr. Chateaubriand). Alguns tolos como eu, César Ladeira, Celso Guimarães, Paulo Tapajós, Floriano Faissal e Paulo Roberto, nos mantivemos fiéis à nossa PRE-8. Acreditávamos numa reação ou reviravolta. Infelizmente não veio. Perdemos a melhor oportunidade de ingressar na TV. Faríamos aquilo que, com sucesso, fazíamos na Rádio Nacional.

 

Toda a gente sabe que a televisão hoje está fazendo (e mal feito) tudo aquilo que já realizamos há 20 ou 30 anos passados.

 

O relato da Rádio Nacional vai só até 1956. São realmente impressionantes os dados sobre o radiojornalismo, radioteatro, setor de correspondência, seção administrativa, expansão comercial. Logo de saída vêm as fotografias dos 9 primeiros diretores gerais (dos quais não existem muitas queixas): Cauby Araújo, pegou a fase pior, de 1936 a 1940: o começo que, como em tudo, é o mais trabalhoso; o começo que, como em tudo, é o mais trabalhoso; Gilberto de Andrade, de 1940 a 1946: fez uma administração serena, sem problemas, pois a Rádio já expandia por si mesma e apoiada pelo governo; Hermenegildo Portocarrero (pai de Tônia Carrero): não teve tempo de fazer coisa alguma, não ficou nem um ano na direção da casa. Viria, depois, um bom diretor: Armando Calmon Costa, levando pelo melhor superintendente que as empresas já tiveram: o coronel Leony Machado. Esteve à testa da Nacional de 1946 a 1950. Prestigiava os seus colaboradores, e isso numa época em que Vítor Costa teve uma atuação destacadíssima que o levaria mais tarde à direção-geral, quando Getúlio voltou ao poder em 1951. De 1950 a 1951 tivemos um Sr. José Caó, como diretor, uma “piada”...Com a morte de Getúlio e a lamentável saída de Vítor Costa, tivemos no governo Café Filho, a rápida passagem, pela direção da Rádio de dois nomes que considero os melhores que por lá apareceram. Infelizmente, ficaram menos de um ano cada um: Marcial Dias Pequeno e Odylo Costa Filho. Estávamos em 1954-55. Veio, logo depois, o Sr. Moacyr Arêas. Em 1956, ainda estava lá prometendo a TV que não viria nunca.

 

Temos em mãos um exemplar, de 1950 do Anuário do Rádio. Revista especializada da época, tem dados curiosos sobre a situação das estações de rádio junto aos ouvintes. Cantores preferidos: Orlando Silva com 15%, Francisco Alves com 14, Sílvio Caldas 13, Emilinha Borba 11, Vicente Celestino 9, e Carlos Galhardo 6 (todos da Nacional). Além de outros, nacionais e estrangeiros de 3 a 2% para baixo. A referida revista faz um excelente apanhado sobre o rádio em todo o Brasil. Demonstra, inclusive, a grande expansão do mesmo em toda a parte, notadamente no Rio Grande do Sul. Exceto no Paraná, onde a Rádio Guaicará, em Curitiba, ganhava por pequena margem da Nacional, esta estava sempre na frente. Em toda a parte menos, é óbvio, na capital paulista. Mas liderando em todo o interior daquele Estado.


Numa pesquisa feita no Rio para apontar os dez melhores programas, em diversos gêneros, pertenciam todos à Rádio Nacional. Três ali fazíamos: “Alma do Sertão”, “Piadas do Manduca” e “Papel Carbono” figuravam sempre entre os três ou quatro melhores classificados. No horário das 20h30 min., por exemplo, o programa “Alma do Sertão” alcançava 35% de audiência. Logo abaixo da “PRK-30”, com 39; e da novela daquele horário, com 35,5%. “Piadas do Manduca” vinha logo a seguir, com 34%. “Papel Carbono” figurava em primeiro lugar no horário das 21h30 min, com 33%. Isso, competindo com outros grandes programas, como “Tabuleiro da Baiana”, “Nada além de Dois Minutos”, “Tancredo e Trancado” e as novelas, estas com uma força tremenda. Além de mais 65 programas irradiados no decorrer de cada semana.

 

Mas quem escreve sobre rádio não pode deixar de falar nos célebres auditórios. E nos grandes mitos que eles criaram. Serão os auditórios um bem ou um mal? Creio que são uma faca de dois gumes. Mais para melhor do que para pior. Hoje, no rádio, já não têm grande expressão. Na própria televisão foram quase abolidos; substituídos por uma claque “encomendada” que atua numa desafinação terrível. Isso está acontecendo, por exemplo, nos programas cômicos. Chega a irritar o ouvinte ou o telespectador a importunidade dos seus pronunciamentos. Principalmente quando não é hora de rir, ouvem-se gargalhadas totalmente disparatadas. E silêncio quando realmente há algo engraçado. Os “maestros” da claque (na televisão) precisam aprender muito.


Os auditórios, quando não invadidos por maus elementos, são um bem. Gente decente, famílias de parcos recursos que ali vão (ou iam) apreciar e aplaudir de perto seus ídolos. Sua presença e suas manifestações constituem elemento de alegria. E é transmitido pelos microfones: sugestiona os ouvintes de casa que se integram naquele ambiente. Eles não o veem, mas o formam em sua imaginação. Principalmente nos programas de variedades e nos humorísticos. Passam a ser um mal, entretanto, quando “encomendados” e dirigidos por uma turma de desocupados. Comparecem para se digladiarem, num comportamento reprovável, em torno dos “astros” ou “estrelas” que os contrataram.

 

Na Rádio Nacional, havia os dois tipos de auditórios: os muito bons para os chamados programas de classe, que não promoviam artistas medíocres, nem distribuíam prêmios com o fim de atrair os seus frequentadores. E os “mesclados”, muito ruins, aglutinando uma “fauna” difícil de definir. A Rádio Nacional ficava na praça Mauá. Favorecia, pelo local, essa espécie de frequência para programas “popularescos”. Além dos referidos prêmios, procurava-se promover, de qualquer maneira, certos artistas. Nunca seus méritos vocais ou cênicos poderiam provocar aquele desmedido entusiasmo dos fãs.

Esse fato não foi combatido na ocasião oportuna. Hoje seria deselegante de minha parte citar nome de artistas medíocres. É que já estão, como eu, na compulsória. Por certo, vão passar o resto da vida naquela ilusão de que foram mesmo “astros” de verdade. Enganam-se a si mesmo com uma glória que era toda falsa, que foi fabricada por eles mesmos. O público daquela geração sabe bem de quem estou falando. Chegaram a promover manifestações tão ruidosas, que as frequentadoras da Rádio Nacional eram chamadas de “macacas de auditório”.

 

Um caso singular, no entanto, não podemos deixar de citar: Cauby Peixoto, ainda hoje atuando, e atuando bem, pois tem grandes qualidades. Seu lançamento, contudo, feito pelo empresário (um tal de Sr. Di Veras), foi a coisa mais ridícula que se pode imaginar. O Sr. Di Veras chegava a vestir Cauby de casaca, em grande gala; contratava “fãs” para estraçalhar-se as roupas ao sair da Rádio Nacional. Convocava até polícia “proteger” o seu contratado...Os policiais participavam da pantomima: erguiam Cauby, já todo rasgado, nos braços, para leva-lo até o carro que deveria conduzi-lo, a grande velocidade, como que a fugir dos fãs. Estou contando isso e citando o nome do Cauby, que como artista merece todo o meu respeito, porque ele mesmo, em recente entrevista, contou tudo assim mesmo.


Os piores auditórios continham, pelo menos, 80% de desclassificados, para 20% dos frequentadores de melhor qualidade, mais educados. Já nos auditórios bons essa proporção se invertia. Não se podia, de todo, impedir o ingresso de uma minoria duvidosa.

 

No mais, em matéria de auditório, eram também notáveis os mitos criados pelos programas do César de Alencar e do Manoel Barcelos. Promoviam as famosas festas de aniversário. Digo “festas” de aniversário porque elas não aconteciam somente na data natalícia das festejadas. Entendiam-se por um mês inteiro. Eram comemoradas cerca de oito vezes na própria Nacional. E ainda recebiam, convites das outras emissoras, para programas especiais em sua homenagem. Assim, chegavam ás vezes a comemorar trinta dias de aniversário, com festas e presentes. E um mundo de outras coisas promovidas pelos célebres “fãs-clubes”. Uma “confusão” total.

 

O rádio, como ninguém ignora, criou uma série interminável de mitos. Sobre eles muita coisa se pensava erradamente. Entre elas, a de que quem atingisse aquele grau de prestígio junto ao público deveria ser, forçosamente, um artista rico! Puro engano: os artistas, com muito raras exceções, ganhavam ordenados ridículos. A única, ou maior, vantagem era a divulgação dos seus nomes por esse Brasil afora. Tornava-os conhecidos. Proporcionava-lhes também uma renda extra: atuavam em espetáculos ou faziam pequenas excursões ao inteiro do país durante as férias. Desse expediente tive que me valer: equilibrava as finanças, sempre em caixa muito baixa.


No mais, durante toda a minha estada no rádio, vivi sempre no meio de “prontos” de toda a espécie. Era difícil encontrar quem dispusesse assim, de repente, de dez ou vinte cruzeiros na carteira. Estou falando dos artistas e dos empregados, notem bem...Os componentes da cúpula e sua grei, esses viviam a “tripa fora”, no melhor dos mundos, para nós indevassável.

 

Ganhavam, também, muito dinheiro os artistas estrangeiros que aqui aportavam. Nas curtas temporadas (15 dias, um mês, no máximo) arrecadavam mais do que qualquer um de nós em um ano! Havia algum as exceções, de artistas que conseguiram contratos especiais apresentando programas com os seus nomes como César de Alencar e Manoel Barcelos. Tinham cláusulas de porcentagem sobre a publicidade apresentada nas suas transmissões. Eram várias horas por semana. Os demais eram “mitos pobres” ou “pobres mitos”. Eu, por exemplo. Além das excursões que fazia nas férias (noutras épocas não podia faze-las: trabalhava muito), precisava juntar à minha condição de produtor, ensaiador e intérprete dos diversos programas, a função de vende-los para ganhar a devida corretagem. Um outro exemplo, entre muitos: Rodolfo Mayer. Tinha ordenado muito pequeno, sendo um ator excepcional. Conseguiu fazer sua situação econômica melhor, apresentado por esse Brasil a fora, a célebre peça As Mãos de Eurídice, de Pedro Bloch. Isso, para poder apresentar-se condignamente conforme o seu valor exigia.

 

Mostrei um panorama da Rádio Nacional. Baseei-me no que vi. E no que pude colher, em dados, contidos no livro comemorativo dos seus vinte anos de atividades, que termina com a promessa, para aqueles dias, da TV Nacional.

 

De 1956 para cá muita coisa aconteceu. Depois de três ou quatro anos, quase tudo para pior. Até cerca de 1961 ou 1962, ela ainda se manteve, mais ou menos, capengando, caindo aqui, levantando ali. Mas depois, com o advento de Jânio Quadros, João Goulart, revolução de 1964, depois de uma movimentação política tão confusa (apesar do nosso esforço quase que heroico para mantê-la) a “desgringolada” foi quase total. De vez em quando, a gente chegava na rádio e encontrava um movimento desusado de pinturas de salas, mudanças de móveis e escrivaninhas, daqui pra lá e de lá pra cá. Não era preciso perguntar: era diretor-geral novo que chegava para ocupar o lugar de outro inepto que saía. Sim, não houve até hoje um diretor da Rádio Nacional (com raras exceções) que não tivesse, como primeiro ato “administrativo”, a mudança de salas e de móveis!

 

Ah...ia me esquecendo: a gente também encontrava nos corredores, em aparente febril atividade, uns “caras” que nunca tínhamos visto. Eram os inúmeros “assessores” dos novos diretores: ganhavam ordenados dez vezes maiores do que os nossos. E com a condição precípua de “não fazer nada”. Ou antes, de meter a modificar, a atrapalhar o que estava sendo feito. Foram tantos que nem me lembro todos os seus nomes. Poucos, muito poucos, não agiram dessa forma. Estou falando dos diretores gerais...Diretores artísticos, ainda podemos citar alguns bons como Paulo Tapajós, Celso Guimarães, Péricles do Amaral, poucos mais. Mas por serem bons, não resistiram muito nos respectivos cargos.

 

Certo dia apareceu na Rádio, como diretor, um jornalista e comentarista de TV, Paulo César Ferreira. Encheu-nos de esperanças. Convocou os produtores: Eu, César Ladeira, Celso Guimarães e outros. Quis saber da nossa situação, achou ridículos nossos ordenados. Prometeu, sem ninguém pedir, dobrar os vencimentos. Para que todos nós pudéssemos nos aposentar com uma quantia condigna (pelo menos, dez salários mínimos). Falou muito nisso tudo nos primeiros dias. Depois, silenciou. E até um encontro com ele se tornava difícil. Quando isso acontecia, dizia: “Não se preocupem...Estou trabalhando, vocês merecem, etc”. A coisa já estava cansando e se apresentando como realmente era: um blefe. Numa quarta-feira, César Ladeira (que sofria do coração) encontrou-se comigo no radio-teatro e disse: Renato, o Paulo César vai mesmo tomar alguma coisa? Ou está esperando a gente morrer, para tomar alguma providência?!”. No dia seguinte, o tal diretor saiu da estação. Foi ocupar outro cargo não sei onde (hoje ele é diretor da Rede Globo de TV, em Recife).

 

Na segunda-feira, após meu encontro com o Ladeira, esta falecia. Deixou-nos a todos verdadeiramente desolados. No velório, na Capela Real Grandeza, como é costume, muita gente (tratava-se de um nome excepcional do rádio): repórteres, câmeras de TV, repórteres radiofônicos (inclusive o da Rádio Nacional), pedindo impressões sobre a figura do ilustre morto. E vinha, então, aquela série de bestialógicos e lugares comuns: perda irreparável, lacuna impreenchível, o rádio está de luto, e outras mais. Quando me entrevistaram, disse apenas: “Lamento profundamente um homem como César Ladeira tenha tido um fim tão melancólico. Elogios agora, mandar fazer enterro, etc, não adianta nada! O que se devia fazer por ele teria que ser feito em vida e não agora” Disse isso ao microfone da estação em que trabalhava. Causou grande celeuma e um certo mal-estar. Fui interpretado pelo diretor de rádio jornalismo da emissora. Á interpretação, respondi com uma pergunta: “O senhor pode me informar se o que falei é verdade ou mentira?!” Ele silenciou e não preciso dizer que a conversa parou por aí.

 

No velório de Paulo Roberto, repeti a dose. Mas em outra emissora, porque ele já não pertencia aos quadros da Nacional. Na morte de Celso Guimarães, um repórter se aproximava de mim quando foi instado por um diretor presente, que disse: “O Renato Murce, não! Esse é do contra!”.


No Brasil, quem fala a verdade “é do contra”. Mas a verdade é que, ainda que pareça incrível, quando César Ladeira morreu, ganhava a ninharia de 800 cruzeiros mensais. Ainda não tinha se aposentado. Deixou uma pensão ínfima para a mulher e os filhos. Essas coisas de Instituto, por mais que eles expliquem a gente não entende nunca: tiram 20% pra isso, mais 5% praquilo, 3% praquiloutro, no fim: ficaram 400 e poucos cruzeiros para a família. Com Paulo Roberto e Celso Guimarães, não sei quanto foi. Mas deve ter sido coisa parecida.

 

Interessante é o processo adotado para que a gente se aposente, e eles livrem de nós: não nos despedem nem nos aumentam o ordenado. Esperam que a gente solicite a saída, para se aposentar. Concordam, desde que deem somente 60% daquilo a que temos direito. E a prazo, o que é uma coação econômica. A mim, que tinha direito a 50 mil cruzeiros, ofereceram 30 mil em 30 meses, ou seja, 1.000 cruzeiros por mês (ganhava 800 cruzeiros; era como se eles me aguentassem lá por mais 30 meses. E todos sabem que 30 mil cruzeiros em 30 meses, não são exatamente 30 mil...). Como fizeram comigo, fizeram com muitos outros.

 

Tive a ventura de trabalhar 26 anos na Rádio Nacional. Ou, por outra, 26 não exprimem bem a verdade. Essa ventura foi de 10 a 15 anos talvez. Os anos restantes foram de trabalho, de dedicação, mas de amargura. Presenciava o declínio da estação que amávamos como se fosse o nosso próprio lar. Por isso, sinto-me à vontade para fazer esses comentários. Não são frutos do despeito ou do fracasso. Mas da tristeza com que presenciava os acontecimentos que ali se desenrolavam. E transformaram a grande emissora, de primeira colocada de preferência dos rádio-ouvintes, em quinta ou sexta (a posição que ocupava recentemente).

 

Saí daquela casa num desencanto completo. Ali “baixou”, ninguém sabe como, um diretor artístico que retirou do ar como medida inicial (autêntica provocação) as “Audições Renato Murce”). Era um dos muito poucos que ainda carreavam ouvintes para a faixa dos 980 kclos. Suspendeu o programa sem dar explicações. No dia seguinte saía da PRE-8, aceitando o acordo que me foi proposto. Não sem antes dizer algumas verdades ao referido “diretor”. Um homem de físico alentado, que, não sei como, “engoliu-as calado”.

 

Depois desse feito, praticado à revelia do meu amigo Pandiá Pires, então superintendente, por ordem deste o competente “diretor” foi compelido a me engajar novamente na Nacional. Um programa de entrevistas que estava alcançando bastante êxito. Mas, com a saída do Pandiá e a nomeação do seu substituto, meu novo programa foi extinto quatro meses depois. A alegação para suspendê-lo foi a falta de verba (3.000). No entanto, não faltou verba para nomear, por ordenado maior, outro elemento. E no mesmo dia. Além daquela turma de “bravos assessores” que acompanha os diretores que chegam.

 

Publicado originalmente em MURCE, Renato. Bastidores do rádio: fragmentos do rádio de ontem e hoje. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976.