Capítulo II: A dupla Boy e Formiga
Por
Willian Corrêa e Ricardo Taira
Depois
de fazer dueto com o irmão Leili, em Guaíra, cantando a capela, ou seja, sem
instrumentos, vieram as primeiras aulas de viola. A partir daí, os ouvidos
ficaram ainda mais grudados no rádio e na vitrola. O pai providenciava discos
de duplas e cantores que Boldrin queria incluir no repertório. Era copiar a
letra, treinar a batida, casar a voz com a tonalidade. Onde houvesse uma
vitrola à manivela lá estava seu Amadeu e o filho copiando música de sucesso.
Certa vez, o pai o levou durante o dia à zona de meretrício de São Joaquim,
onde entrava sem muito constrangimento. Numa das casas, chamou uma mulher e
disse: “Esse aqui é o menino. Ele veio ouvir aquela música que eu comentei”.
No canto da sala, havia um gramofone onde o pai colocou um disco 78 rotações.
Uma, duas, três voltas na manivela, começou o chiado e depois os primeiros
acordes de “Destinos Iguais”, uma toada de Capitão Furtado e Laureano. Com um
lápis e um caderno, Boldrin copiava sem se importar com o entra e sai de
fregueses na casa simples e deteriorada. (“Já foi no morrer do dia/ Quando
eu vi com alegria/ Dois canários a cantar/ Com gorjeios de
ternura/ O casal trocava juras de eternamente se amar...”).
O
gramofone ajudou Boldrin a copiar outras músicas: “Piracicaba”, de Newton de
Almeida Mello, um sucesso enorme nas vozes de Mariana e Cobrinha. A composição foi
transformada no hino da cidade famosa pelo rio das corredeiras e da grande
quantidade de espécies de peixes (“Piracicaba que adoro tanto, cheia de
flores, cheia de encantos...”). Outra letra que entrou para seu repertório
foi “Mágoa de carreiro”, de João Baptista de Oliveira Júnior, pai de Linda e
Dircinha Batista. (“O progresso me arruinou/ Ai, minha vida de carreiro/
Meu carro tá se estragando/ Ai, sem abrigo no terreiro).
Não
demorou, e na família quase sem talentos musicais surgiu uma dupla caipira: Boy
e Formiga. Boy era Rolando Boldrin, então com 11 anos; e Formiga, o irmão
Leili, com 13. Os dois ensaiavam as músicas que Boldrin escolhia e já sabia
pontear na viola. Começaram a cantar em festinhas, inaugurações e após a miss
ade domingos. Uma grande oportunidade para a duplinha surgiu quando Chiquinho
Mauad e familiares inauguraram a primeira emissora de rádio de São Joaquim da
Barra, a ZYK-4, uma potência na época que alcançava cidades vizinhas, como
Guará, Santana dos Olhos d´Água, Morro Agudo e Orlândia. O nome artístico “Boy”
foi dado pelo pai, fã ardoroso de William Boyd, famoso pelos filmes de caubói. “Formiga”
criava um equilíbrio para algo da terra e bem brasileiro.
Na
inauguração da ZYK-4, a Rádio São Joaquim, os Mauad não economizaram.
Contrataram nada menos que Orlando Silva, o cantor das multidões, que não
conseguia ir às ruas sem ser abordado pelas fãs. Algumas vezes, teve as roupas
rasgadas pelos agarrões. Contrataram também uma dupla sertaneja, Nhô Nardo e
Cunha Júnior, e chamaram cantoras e cantores da região, convidando ainda os
garotos Boy e Formiga. O sucesso da duplinha foi enorme. Eram os filhos
ilustres da cidade que se enchiam de orgulho como artistas mirins. Uma
reportagem no jornal semanal selou a consagração. A emissora fez um acordo com
seu Amadeu para a duplinha se apresentar todos os domingos, às onze da manhã,
logo após a missa do padre Eugênio. Os dois garotos ganharam um patrocinador,
as Casas Salomão, lojas de armarinhos que pagavam 50 mil réis por mês e também
davam os tecidos para a confecção de roupas, basicamente camisas xadrezes e
calças compridas. Completavam a indumentária os chapéus de palha com o nome
artístico de cada um.
Foram
três anos de muita cantoria. A dupla Boy e Formiga se tornou a voz de São
Joaquim da Barra. Aos domingos, os locutores Lafayette Leandro e Airton Gouveia
apresentavam os meninos diante de uma plateia entusiasmada. Ainda sem
composições próprias, os dois faziam o riscado em músicas de Alvarenga e
Ranchinho, Tonico e Tinoco, Venâncio e Corumba, Cascatinha e Inhana, Raul
Torres e Serrinha, João Pacífico, e outros nomes importantes da música caipira na
época. Eles também se apresentavam em cidades onde havia sala de cinema, os
chamados cineteatros. Era comum haver apresentações artísticas no palco diante
da tela antes de rodarem a fita em preto e branco. Foi um período em que Boy
tomou uma decisão que o acompanharia para sempre: a defesa da arte brasileira.
Como chefe da dupla, ele exigia que o filme fosse nacional: “Senão não toco”.
Seu
Amadeu gostava de dizer que sua influência foi responsável pelo surgimento de
Boy e Formiga. Com o orgulho dos meninos denunciado a cada gesto, ele não
costumava economizar quando se tratava de promover os filhos. Viajava até a
capital, São Paulo, só para encomendar matrizes de retratos da dupla no sistema
offset, e assim poder imprimir cartazes e divulgar as apresentações. Um
desses cartazes dizia que a dupla da Rádio São Joaquim, Boy e Formiga, iria se
apresentar pela primeira vez no Cineteatro Santana, da cidade de Santana dos
Olhos d´Água – hoje batizada de Ipuã, que em tupi-guarani significa “água que
brota da terra”. O “monumental espetáculo” uniriam tela e palco. O filme era E
o mundo se diverte, de 1948, uma comédia com ares de obra-prima. Nada menor
que Oscarito e Grande Otelo faziam o público rolar nas poltronas de tanto rir.
A trilha sonora era de Dorival Caymmi, Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira. Para o
jovem Rolando não havia nada melhor do que ver dois dos maiores atores
brasileiros em ação ao som de nomes que entrariam para a história da MPB.
Naquela noite, também subiria ao palco José Gonçalves, apresentado como
verdadeiro intérprete das músicas de Vicente Celestino.
Era
uma vida inesperada, um acaso do destino envolvendo dois jovens interioranos,
gente propensa a ter uma rotina banal, seja no campo ou na cidade, chamada de “vidinha”.
Aquele “bom dia. Como vai?”
que tinha como resposta: “Vai levando a vidinha que Deus me deu”,
segundo os mais angustiados, os desvalidos, como se os dissabores também
tivessem origem em uma graça divina. E se era divina, quem haveria de reclamar.
Era seguir e se conformar.
Poderia
ser esse o destino dos meninos de São Joaquim da Barra, mas a viola e os
ponteios mudaram o rumo das coisas. Dos 11 aos 14 anos, Rolando Boldrin, e dos
13 aos 16, Leili Boldrin, carregavam consigo as fotos deles impressas em offset
encomendadas pelo pai para distribuir e dar autógrafos. Não iam à escola, mas
eram tratados como se fossem os gênios da tabuada, os futuros doutores e os
genros que as mães queriam. E eles só precisavam cantar. Guardadas as
proporções, lembravam aqueles times modestos de cidade minúscula quando
despontam no campeonato brasileiro e enchem os habitantes locais de orgulho.
Isso sem contar os 50 mil réis por mês e o cachê em cada apresentação,
combinação financeira que ajudou a alterar a condição da família de pobre para
menos pobre.
Rolando
perderia as contas de quantas canções aprendeu a dedilhar na viola e depois no
violão. O irmão Leili decorava as modas com bastante interesse naquele trabalho
tão aguardado pelos ouvintes da ZYK-4 nas manhãs dominicais. A deixa para os
primeiros acordes era a frase do locutor “um oferecimento das lojas de
armarinho Salomão”.
Ao
mesmo tempo em que treinava as músicas Boy lia poesia, contos e prosas. Zé da
Luz, um poeta paraibano, Catulo da Paixão Cearense e Guimarães Rosa estavam
entre seus preferidos. Em sua mente, a poesia entrava como cúmplice de um
projeto maior, uma manifestação para divulgar a arte brasileira. Visionário,
nunca colocaria essa obsessão no papel, guardaria tudo na memória. Mesmo garoto
já contava “causos” para contar de situações observadas no cotidiano,
geralmente situações engraçadas. Tinha também uma tragédia no currículo. Havia
testemunhado um tiroteio, que resultara na morte do delegado, quando ainda
morava em Guaíra.
Era
manhãzinha quando o delegado Agapito deixou o Hotel São Paulo, onde residia
temporariamente, para iniciar mais uma jornada de trabalho. Vestia um terno
cinza claro e usava um chapéu de palha do tipo Panamá. Os sapatos brilhavam
depois de serem lustrados pelo engraxate que atendia os hóspedes no saguão. Ele
checou o horário no relógio de bolso com cordão dourado e caminho
tranquilamente em direção à praça central. O doutor Agapito, como era chamado,
ainda não havia decidido se ficaria na cidade e, por esse motivo, não tinha
levado a família, nem alugado uma casa. Quase no centro da praça, foi abordado
por Ermelindo Souza, um trabalhador rural que, parado diante do delegado,
cravou a frase:
-
Eu disse que você nunca mais ia bater na cara de ninguém.
O
delegado arregalou os olhos, e Ermelindo sacou a arma e disparou duas balas no
corpo do policial civil, que tombou morto, para surpresa e pânico de quem
passava pela praça ou entrava na igreja para a primeira oração do dia. Rolando
estava na fila do pão no mercadinho junto com alguns amigos. Ele se lembra de
ver o atirador parado como uma estátua diante do corpo. Foi o próprio Ermelindo
que pediu para chamarem a polícia. Quando os guardas civis chegaram , ele
entregou a arma, confessou o crime e foi levado para a cadeia.
O
trágico fim daquela contenda teve início no dia anterior. O delegado Agapito,
há poucos dias na cidade, entrava e saía dos lugares quase sem abrir a boca.
Era de pouca conversa e tinha um olhar soberbo. Na delegacia era visto como
alguém experiente, que deixou a capital para prestar um favor a um povo
atrasado, pouco afeito ás leis. Na véspera do crime, ele entrou em um boteco no
qual Ermelindo e alguns conhecidos tomavam a tradicional cachacinha do fim de
tarde para aumentar o apetite no jantar, como costumavam fazer. Ermelindo quis
fazer cortesia e ofereceu uma dose de pinga ao delegado, que naquele momento
esfregava um lenço na testa para tirar o suor. Sem responder à oferta, o
delegado guardou o lenço no bolso do paletó e, em seguida, desferiu um tapa no
rosto de Ermelindo, que só não foi ao chão porque seu corpo foi de encontro ao
balcão, onde se segurou. Um silêncio sepulcral tomou conta do ambiente.
-
Isso é coisa que se faça? Oferecer pinga a um delegado! Me respeite, caipira- esbravejou o
delegado.
Humilhado e trêmulo,
Ermelindo perguntou ao balconista quanto precisava pagar.
- Não é nada não,
Ermelindo – disse o dono do boteco.
- Faço questão. Quanto
devo?
Pagou, ajeitou as calças na
cintura e foi até a portado bar. Quando se virou disse ao delegado:
- Você nunca mais vai
bater na cara de ninguém.
Saiu a passos largos para
cumprir a sina na manhã do dia seguinte.
O jornal O Guaíra –
hoje dirigida por Maria Izildinha Lacativa, filha do fundador, Vicente Lacativa
– pesquisou sobre o assassinato e dá uma versão um pouco diferente:
- Ermelindo estava no
meretrício, ou casa de tolerância, modo mais popular de indicar uma área de
prostituição, quando o delegado Agapito chegou alertado por frequentadores que
viram Ermelindo portando uma arma. Agapito não só tomou a arma, como deu dois
tapas no rosto de Ermelindo, que deixou o local fazendo ameaças. Naquela mesma
noite, ele comprou um novo revólver com a intenção de praticar o homicídio na
manhã seguinte.
Após o assassinato,
Ermelindo foi levado para a prisão de Orlândia, a cidade próxima, de onde
escapou. Como fumava muito, deixou uma trilha de bitucas pelo chão e foi
localizado por policiais, armado com um machado margeando a linha do trem em
direção a Guaíra, onde pretendia se vingar dos que o denunciaram para o
delegado. Esse é um caso que Guaíra nunca esqueceu. Cerca de um mês após o
homicídio, dona Alzira precisou visitar uma irmã enferma na capital. Levou
consigo quatro filhos, entre eles Rolando Boldrin. O grupo foi até Agudos de jardineira
e lá pegou o trem da linha Sorocabana. Por coincidência, no mesmo vagão estava
Ermelindo, algemado e escoltado por dois policiais fardados. Anos mais tarde,
soube-se que Ermelindo havia morrido na prisão em São Paulo.
O testemunho do assassinato entrou
na vida de Boy como a experiência desafortunada que muitos tiveram ou terão na
vida. Cenas que nunca se apagam da lembrança infantil. Fazer rir ou chorar é
parte da exposição do artista. Um caso triste, e a plateia emudece; um caso
curioso, e os olhos se arregalam; um conto engraçado, e se desopila o fígado.
Com domínio de palco, Boy misturava a palavra cantada com a palavra declamada.
Dá para imaginar na voz de menino, olhos fixos na plateia, braços abertos,
peito estufado, como ficaria o monólogo de “Luar do sertão”, de Catulo da
Paixão Cearense:
Não
há, ó gente, oh não, luar como este do sertão...
Oh
que saudade do luar da minha terra
Lá
na serra branquejando
Folhas
secas pelo chão
Esse
luar cá da cidade tão escuro
Não
tem aquela saudade
Do
luar lá do sertão
Ao
final, só se ouviam os aplausos. O menino loiro tirava o chapéu e curvava o
corpo em agradecimento. Virava em direção ao irmão e dizia: “Vamos mais uma
Formiga, mais uma pra gente ir embora. Já tô ficando com fome...”.
As
moças do educandário passavam quase todas juntas pelo centrinho de São Joaquim
na entrada e saída das aulas, num desfile que mexia com as emoções da
rapaziada. Leili já tinha uma namoradinha e pensava em sair da cidade e ir se
virar em algum outro canto onde pudesse alcançar o próprio sustento, uma
iniciativa comum entre os jovens no início da vida adulta. Sem dons musicais e
obstinado por uma nova jornada, Leili anunciou à família o fim da dupla.
Terminava ali a carreira de Formiga. Seu Amadeu, inconsolável, passou dias
cabisbaixo. Estava ao mesmo tempo triste e orgulhoso do filho que demonstrava o
mesmo vigor dos pais imigrantes. Sair em busca de um novo destino. Rolando
também decidiu fazer uma pausa na carreira artística. Poderia ter seguido
sozinho, mas foi solidário ao irmão naquele momento. Imaginava, porém, que
pudessem voltar a cantar juntos maia diante. Afinal, foram três anos de intensa
atividade para dois garotos vistos como danados de bons. Todos precisavam de um
descanso.
Publicado
originalmente em CORRÊA, Willian. A história de Rolando Boldrin: Sr. Brasil.
São Paulo: Contexto, 2017.
Nenhum comentário:
Postar um comentário