Por Jece Valadão
O
malandro
O malandro não é
necessariamente um cafajeste. Ele pode ser um bom malandro ou um vagabundo. O
malandro que eu fiz no Rio 40 Graus era um malandro de morro; bo bom sentido
carioca.
Para fazer esse
malandro, nós frequentamos a favela durante muito tempo, por mais de um ano.
Aproveitei aquele convívio para estudar bem a malandragem, os malandros de
morro, não o marginal ou o assassino.
E esse malandro me deu
meu primeiro prêmio como ator, em 1956.
O
prêmio
Eu interpretei tão bem o
malandro que quando meu nome foi sugerido para ganhar o prêmio de melhor ator
do ano, o Juraci Camargo, que era o presidente do júri, protestou. Ele disse
que não podia, porque aquele prêmio era destinado a atores profissionais. Ele
achava que eu era um malandro de morro de verdade, que tinha sido escolhido lá
na favela pelo Nelson Pereira dos Santos.
Até então, eu tinha
feito pouca coisa: alguns filmes na Atlântida, umas duas ou três chanchadas e
Nobreza Gaúcha; por isso o Juraci Camargo não me conhecia.
Quando ele soube que eu
era ator, que já havia feito outros trabalhos, não teve dúvida: me deu o
prêmio.
É um dos prêmios que eu
guardo até hoje com o maior carinho.
Além da estatueta, uma mulher nua- o que é bem significativo-, ainda ganhei um cheque, que consertou minha vida por um bom tempo.
Alma
lavada
Na saída do cinema,
depois da entrega do prêmio, encontrei nada menos que o Watson Macedo.
Háháháhá... Junto com ele, Eliana, Cyll Farney e toda a turma da chanchada.
O Macedo, sem se
lembrar do que tinha me dito dois anos antes, me convidou para fazer um filme
com ele.
Respondi que não podia,
que para fazer um filme com ele tinha que ser um galãzinho de merda, que saí
nas ruas e as mulheres corriam atrás
Não sei se ele
entendeu, não sei se ele se lembrou. Só sei que lavei minha alma.
O
FILME
Quando conheci o Nelson
Pereira dos Santos, ele tinha já um projeto de fazer o filme Rio 40 Graus. Em função da nossa
participação no congresso, ele me convidou para participar. Topei na hora.
Rio
40 Graus foi um marco na história do cinema do Brasil. Tinha
uma linguagem e uma temática totalmente novas no cinema nacional.
O
apartamento
Para fazer o filme,
toda a equipe se mudou para um apartamento de dois ou três quartos, não lembro
bem, na praça da Cruz Vermelha.
Morávamos eu, que era
ator e assistente de direção; o Nelson, que além de diretor também era o
roteirista do filme; o Hélio Silva, diretor de fotografia; o Ronaldo Carvalho,
que era assistente do Hélio; o Zé Keti, que era ator e fazia a música do filme;
o Olavo Mendonça, diretor de produção; a Marlizinha, que era uma espécie de
quebra-galho do Nelson; e a mulher do Hélio Silva, que depois de um tempo saiu
e foi até lavar roupa para ajudar o marido.
Era um negócio
impressionante. Eram oito pessoas, uma equipe inteira, nesse apartamento. E a
gente só saía para filmar quando tinha dinheiro.
O Hélio Silva conseguiu
uma câmera do Ministério da Educação; e só que era uma câmera de cinema mudo, e
ele teve que adaptá-la para fazer um filme falado. A luz, quatro ou cinco
refletores, foi emprestada por um amigo do Nelson que consertava refletores.
Junto com a luz, ele emprestou também uns tripés velhos, que ninguém usava
mais; e o resto era rebatedor e sol.
Para conseguir algum
dinheiro montamos uma cooperativa, e uns amigos nossos do Banco do Brasil, o
Ciro e o Mário, vendiam cotas para os funcionários do banco.
Com esse dinheiro a
gente pagava o aluguel do apartamento, comprava comida, quer dizer, comprava
macarrão, que era só o que a gente comia. Só dava macarrão, que era só o que a
gente comia. Só dava macarrão, pão e café. Todo dia a mesma coisa. E, ainda,
claro, comporava negativo com esse dinheiro.
Os outros atores – a
Glauce Rocha, o Roberto Bataglin, o Mauro Mendonça, a Cláudia e os três
garotinhos -, trabalhavam para receber depois.
Curso
de cinema
Primeiro escolhemos o
morro em que íamos filmar. Era o morro do Cabuçu, que tinha uma quadra de
escola de samba, a nossa base. A gente deixava todo nosso material lá. A equipe
só tinha uma kombi à disposição; e ainda por cima, uma kombi bem velha, caindo
aos pedaços.
Para filmar, a gente
sempre dependia de três fatores: sol, dinheiro e dos ensaios da escola de
samba.
Quando chovia e a gente
não podia filmar, ficava dentro de casa. Acabava o negativo, ficava dentro de
casa. Aí alguém conseguia uma lata de filme, a gente saía para filmar.
Quando a escola de samba ensaiava, a gente ia filmar. Se a escola de samba não marcava ensaio, não filmávamos, porque o suor era da escola de samba mesmo.
Como a gente ficava
muito tempo sem poder filmar, trancado no apartamento, tive o maior curso de
cinema da minha vida. O Nelson tinha recém-chegado do IDEC. E sempre que a
gente tinha de ficar no apartamento sem filmar, ficava fazendo num quadro-negro
os planos de filmagem com enquadramento, movimento de câmera, com toda a
cenarização do filme. Uma aula de cinema. Como cortava, de onde cortava para
onde, qual a lente que deveria ser usada, o diafragma, tudo. Foi minha
iniciação como técnico no cinema.
Nos intervalos, a gente
fazia campeonatos de xadrez.
Não havia como sair de
casa, a gente não tinha dinheiro para nada.
Aí a coisa começou a
apertar, porque o filme estava demorando muito. A gente já tinha vendido todas
as cotas; não tinha como vender mais de cem por cento das cotas; se não vira
picaretagem. Não tinha mais o que fazer; começou a faltar até comida.
A
solução
Eu, que era solteiro,
fui o escolhido para sair na rua e arrumar namorada. Conhecia a menina, levava
para casa, transava com ela. Aí ela gostava e ia ficando. Logo percebia que nem
café tinha em casa.
A menina ficava com
pena e ia comprar café, comida e cozinhava pra gente. Era aquela alegria.
Quando a menina enjoava
e ia embora, eu saía para a rua e arranjava outra.
Quando não tinha mulher
em casa, era o Nelson que cozinhava. Eu lavava os pratos e o Hélio arrumava a
casa; cada um fazia uma coisa.
A
amante do dono do supermercado
Até que de repente
mudou uma mulher com um bebezinho para um apartamento na frente do nosso.
Esse prédio tinha um poço de respiração no meio, e por isso a janela do nosso apartamento dava para a janela do apartamento dessa mulher.
Um dia eu estava na
janela e lá estava ela. Ela me viu; saiu aquela troca de olhares. Na hora fui
perguntar para o porteiro quem era aquela mulher. “Ela é mulher de um cara que
é dono de um armazém”. Eram uns armazéns enormes, equivalentes aos
supermercados de hoje. E a mulher era amante do dono de um desses armazéns.
A solução estava ali.
Imediatamente comecei a paquerar a mulher. Até que um dia ela não
resistiu...Fui lá, mas antes que acontecesse qualquer coisa, contei toda a
história para ela. Disse que éramos cineastas, que estávamos fazendo um filme,
mas que não tínhamos dinheiro para nada; contei toda a nossa miséria. E fui
para a cama com ela.
A mulher era uma
sádica; me arranhou todo com umas unhas enormes.
Detesto sentir dor, ser
machucado. Mas ali era questão de obrigação. Ela me arrancava cabelço, me
puxava, me arranhava...Quando voltei para casa, parecia que tinha vindo da
guerra. Estava todo arranhado, ensanguentado.
Em compensação, meia
hora depois chegava uma cesta básica, com tudo o que a gente tinha direito
dentro.
A reação de todos foi
imediata: “Agora você tem que ir lá todos os dias”. Era a nossa salvação. Mas
eu não queria mais aquilo de jeito nenhum. Era a mulher chegar na janela que eu
fugia, passava por baixo da janela para ela não me ver.
Minha tranquilidade
acabou no dia em que a cesta básica terminou. Na hora começou a pressão. Não
teve jeito. Tive que voltar lá. Um sacrifício.
Antes de qualquer coisa
já fui falando para a mulher que eu detesto sentir dor. “Ah, e tem outra coisa:
quando você mandar uma cesta, manda uma maior, pô, que são oito pessoas”.
Depois dessa introdução, fomos ás vias de fato. Foi a primeira; ela toda entusiasmada, se segurou. Só que chegou uma hora, na segunda, que ela não aguentou mais; se soltou, e puta que pariu: arranhou no mesmo lugar. A ferida foi pior ainda.
Voltei para casa, a
cesta chegou e fui logo avisando: “Podem se contentar, porque lá eu não volto
mais; não tem jeito”.
A mulher ficou duas
semanas sem me ver. Quando a gente saía para filmar, comia sanduíche para
economizar a cesta.
Só que a mulher não se
aguentou com o meu sumiço e começou a fazer escandalo. “Vem aqui. Se não vier
jogo meu filho pela janela”. Segurava o garoto pela perna na janela; um
bebezinho. O Nelson, vendo aquilo, falava para eu ir lá acalmar a mulher. “Vai
lá!”. “Vai você, pô!” E a mulher lá, fazendo escandalo. Acordou o edifício
inteiro. Queria chamar a polícia...um horror. Se a polícia viesse a coisa ficar
preta; o Nelson fichado no Partido Comunista; o Olavo também comunista; o Zé
Keti, favelado. Iam prender todo mundo.
Eles falavam pra eu ir; a mulher gritando...Não teve jeito. Fui; pela terceira vez. Três vezes. Fui logo falando para a mulher que era a última vez, porque eu ia mudar de lá.
Para a mulher mudei
mesmo, porque ela nunca mais me viu.
E assim nós fizemos o Rio 40 Graus, com todo o sacrifício do
mundo. E mais os meus arranhões.
Nenhum comentário:
Postar um comentário