Foto: Rafael Spaca
Um
dos roteiristas mais conhecidos do cinema brasileiro em todos os tempos. Aos 83
anos, Rubens Francisco Lucchetti mantém uma memória impressionante. Relembra
fatos distantes e atuais com notável precisão. Intelectual, ele mantém um vocabulário
rico que combina com sua educação refinada. “Eu que te agradeço por ter me ligado”,
declarou após uma hora de conversa por telefone. Este artista múltiplo continua
longe dos holofotes. Lucchetti mora numa casa com ampla biblioteca em
Jardinópolis, cidade do interior de São Paulo localizada a 330 quilômetros da capital paulista.
Houve
um tempo em que este simpático senhor e o cineasta José Mojica Marins, o Zé do
Caixão, eram quase sinônimos. A parceria entre os dois resultou em nove
longas-metragens (O Estranho Mundo de Zé
do Caixão; Finis Hominis; Sexo e Sangue na Trilha do Tesouro; Quando os Deuses Adormecem; O Exorcismo Negro; A Estranha Hospedaria dos Prazeres; Inferno Carnal; Delírios de
Um Anormal, Mundo, Mercado do Sexo)
e dois curtas-metragens (Pesadelo Macabro,
episódio do longa Trilogia de Terror
e A Praga). “Nos relacionamos muito
bem. Foi um período difícil porque ele trabalhava com poucos recursos e muitas
dificuldades. Ele mal conseguia me pagar”, admite.
Difícil
é tentar rotular Lucchetti devido as suas múltiplas funções: agitador cultural,
desenhista, escritor, jornalista, novelista policial, roteirista de histórias
em quadrinho. Além do cinema, este artista pulp
colaborou intensivamente para o rádio e televisão. O roteirista atribui á leitura
de autores clássicos como Conan Doyle, Edgar Allan Poe e Robert Louis Stevenson
como algo decisivo na sua formação intelectual.
Nessa
entrevista, Lucchetti recorda suas incursões na sétima arte, comenta as opções
de carreira do amigo José Mojica Marins e dá conselhos para os jovens que
queiram seguir carreira como roteiristas: “Eu tive tudo, tudo veio ao meu
encontro. Depende da sua própria sorte. A pessoa precisa ter aquela
predisposição pra correr atrás, ter conhecimento, cultura. Tudo isso aliado a
sorte”.
Violão, Sardinha e Pão- Como se iniciou a parceria
do senhor com o José Mojica Marins?
Rubens
Francisco Lucchetti- Eu conheci o Mojica por um amigo meu que trabalhava como
secretário da Cinemateca Brasileira, o Sergio Lima. Ele tinha me falado sobre o
Mojica e acabou nos apresentando em São Paulo. Isso acabou iniciando a nossa
parceria. Ele me pediu um roteiro pra um filme do Zé do Caixão.
VSP- Ele escrevia um argumento pro senhor?
RFL-
Não. Ele dava uma ideia do que queria e eu desenvolvia o roteiro. Nossa
parceria durou cinco, seis anos numa boa. Nos relacionamos muito bem. Essa foi
uma época muito difícil pro Mojica...entre 1966 até 72 mais ou menos. Foi um
período muito difícil porque ele trabalhava com poucos recursos e muitas
dificuldades. Ele mal conseguia me pagar. Quem me pagava mais era a televisão.
Por isso, eu sempre tive um emprego paralelo. Nunca me dediquei somente a ele.
Eu escrevia roteiro de história em quadrinho, dirigia a revista Projeção dirigido aos exibidores. Também
fazia freelances, escrevia contos,
novelas.
VSP-
Dos roteiros escritos pelo senhor, existe algum preferido?
RFL-
Do Mojica eu gosto do Estranho Mundo do
Zé do Caixão e Ritual dos Sádicos.
Do Ivan (Cardoso) gosto bastante dos três primeiros. Ele seguiu mais
friamente o meu pensamento. O Mojica teve muitos problemas né? Os roteiros não
se completavam e tinha que reescrever. Muitas vezes o resultado ficava
diferente do roteiro. Isso acabava acontecendo porque ele não tinha recursos
disponíveis para completar o roteiro. Os filmes acabavam ficando
incompreensíveis...muitas cenas acabavam não sendo filmadas. Outras eram feitas
de maneira diferente. Isso prejudicava o resultado final.
VSP- Nos anos 1970, a Boca do Lixo era o centro da
produção cinematográfica paulista. O senhor freqüentou muito esse ambiente?
RFL- Não. O Mojica não frequentava. Ele ia mais
porque o produtor dele (Augusto de Cervantes) tinha um escritório ali num
prédio na esquina na Boca do Lixo. os estúdios dele ficavam no Brás. Eu acabava indo na Boca mais por
força dele ir. Mas eu não frequentava. Em compensação, eu tive um grande amigo
que trabalhei junto que era dali, o Jean Garrett. Esse era dali mesmo.
VSP- O senhor fez uns dois roteiros pro Nelson
Teixeira Mendes?
RFL-
Ah fiz, fiz. Um pra um filme do Tonico e Tinoco chamado A Marca da Ferradura e também outro chamado A Herdeira Rebelde. Foi algo muito mal feito, depois ele nem me
pagou. O Nelson era um cara cheio de problemas. Nisso, ele encomendou outros
dois roteiros que eu acabei nem fazendo. Ele sempre tinha uma desculpa pra não me
pagar. Ser roteirista é uma coisa muito ruim. Muito ruim. Os dois filmes
ficaram com um resultado abaixo da crítica. O Nelson podia ser até produtor,
mas não diretor. Os dois filmes ficaram péssimos. Abaixo da crítica, sabe?
VSP- Entendo. O senhor trabalhou diversas vezes com
o cineasta Ivan Cardoso. Trabalhar com ele é muito diferente do Mojica?
RFL-
Não. O Ivan é o seguinte: ele é mais exigente no que ele quer. Com o Mojica não
tinha muito problema, o que eu fazia estava feito. Com o Ivan muitas vezes eu
tinha que fazer duas, três versões num mesmo roteiro. Mas isso é natural, ele
queria produzir o filme bem ao estilo que ele estava sentindo. Não ficando do
gosto dele, ele preferia corrigir. Foi muito bom ter trabalhado com o Ivan. Ele
não tinha condições de produzir sem a Embrafilme. Mas nossos filmes sempre se
pagaram. Depois, o Collor acabou com tudo. Ele era um inimigo ferrenho da
cultura brasileira e acabou com tudo. A nossa cultura foi pro brejo, pro
vinagre. Não sei como foram eleger uma pessoa como esse homem. No Brasil só
sobrevivem os ruins, os bons naufragam.
VSP- O senhor diz isso na política ou na cultura?
RFL-
Nos dois. Não vejo distinção nisso.
VSP-
Quais escritores estrangeiros mais influenciaram seu estilo?
RFL- Conan Doyle, Edgar Allan Poe e Robert Louis
Stevenson. Esses três foram os principais.
Tem outros...mesmo o Bram Stoker que foi o criador do
Drácula me influenciou. Muita coisa desses autores eu comprei nos sebos e pela
leitura acabei me influenciando por eles.
VSP- São 53 contos e cinco romances do personagem
Sherlock Holmes escritas pelo escritor escocês Conan Doyle. Qual história é a
preferida do senhor?
RFL-
Faixa Molhada. Nessa história, o
Conan Doyle mescla mistério e terror. É uma das melhores. Essa é a
preferida...mas eu gosto de várias.
VSP- Seus roteiros são nos gêneros de aventura,
fantasia, terror. O senhor não acredita que esses gêneros são pouco explorados
pelo cinema brasileiro?
RFL-
São gêneros praticamente inexplorados. Embora o Mojica, Ivan Cardoso e
esporadicamente outros façam algumas coisas. Nessa temática do extraordinário,
eu só conheço o Mojica e o Ivan. E veja que o nosso país é rico em
superstições, lendas. Mas aqui esse gênero não sobrevive. Mesmo os quadrinhos
dessa temática são sempre baseados em temas do Exterior. É complicado porque
essas coisas podem ser consideradas um subgênero, mas não existe subgênero.
Existe filme ruim e filme bom. A literatura não pode ter fronteiras. Como a música.
Pode ter música boa que seja italiana, alemã. A literatura não pode ter
fronteiras. É praticamente tudo uma coisa só. Existe livro bem escrito e livro
mal escrito. Prestigiar somente o que é brasileiro e desprezar tudo que é
estrangeiro é uma grande besteira. Respeito as outras opiniões, mas essa é a
minha visão. Mas eu não faço média. Dou uma banana pros outros e fico com as
minhas ideias.
VSP- Como é essa profissão de roteirista cinematográfico
no Brasil?
RFL-
É uma profissão ingrata. Ninguém consegue viver somente dela. Eu pelo menos não
conheço ninguém que tenha sobrevivido exclusivamente dela. Escrevi o roteiro de
25 longas-metragens que foram realizados e nunca consegui sobreviver disso.
Sempre tive atividades paralelas, escritório, tudo que você possa imaginar.
Ganhei prêmio em festivais como Gramado, em Portugal e mesmo assim raramente
sou procurado. Isso porque eu fiquei meio afastado no interior. Fiquei
prejudicado porque culturalmente o Brasil só existe no Rio, São Paulo. Está
tudo por ali. Existem outras experiências esporádicas de produzir cultura fora
dessas duas cidades. Cinema é indústria. No Brasil, o cinema é visto como
aventura. Os próprios cineastas muitas vezes ficam nas mãos de vigaristas e
isso prejudicou. Existe preconceito, porque o cara faz cinema muitos vão ter
ele como vigarista, vagabundo, que não quer trabalhar. A maior indústria dos
Estados Unidos é o cinema. Depois vem o automóvel. Cinema acaba ajudando a empurrar a venda de
tudo: geladeira, sapato, tudo que você quiser. Lá eles entendem cinema como
indústria econômica. Infelizmente, isso não se desenvolveu em outros países.
Aqui na América Latina não existe. Em
outros países como Itália, França e Espanha até eles conseguem desenvolver uma
pequena indústria, tem uma produção constante. Raramente um filme brasileiro
consegue ficar muito tempo em cartaz. Mesmo que ele tenha dado bilheteria. As
salas estão na mão dos estrangeiros. Agora essa coisa do DVD e da Internet,
acaba ajudando no acesso. São outros espaços de exibição que as salas de cinema
acabam não sendo.
VSP- Recentemente, o Mojica realizou o filme Encarnação do Demônio. O senhor
acompanhou isso?
RFL-
O Mojica sempre me ligava falando da possibilidade da gente fazer junto. Ele
acenava com essa possibilidade, sem ele saber que eu desenvolvi o meu roteiro.
Depois do Esta Noite Encarnarei no Teu
Cadáver eu fiz a minha versão do Encarnação
do Demônio. Numa entrevista, ele mostrou um roteiro encardenado pra esse
filme. Nisso, eu percebi que eu tinha perdido meu tempo e aquilo não ia
resultar em nada. Acabei jogando fora o roteiro que eu tinha feito. Eu não
considero esse Encarnação do Demônio o
final da trilogia. Não tem nada a ver com o cinema do Mojica. É cheio de
efeitos especiais, o cinema do Mojica é primitivo, aquela coisa primitiva. Foi
fazer algo ambicioso e deu no que deu: uma coisa grosseira, sem qualidade
nenhuma. Quando ele esteve em Ribeirão Preto cheguei a falar que não considero
aquela fita o encerramento da trilogia dele.
VSP- O senhor ficou magoado de não ter trabalhado
nesse projeto?
RFL-
Não, não. Ele que sabe. Eu não tenho problema nenhum com o Mojica. Só não
concordo quando ele fala alguma besteira em uma entrevista, em algum lugar. Não
sei se ele não quis eu ou se foi a pessoa que conseguiu o financiamento. Eles
quiseram imitar uma cena do Orson Welles em A
Dama de Xangai e isso pegou mal. Você pode fazer uma homenagem quando fica
algo bem feito. Mas ficou um negócio feio, várias coisas que tem no roteiro não
existem. Achei de um mal gosto tremendo várias coisas. Ficou uma coisa nojenta.
Esse final de carreira dele que era pra ser um canto de cisne, acabou ficando
um canto de pato porque ele colocou tudo a perder. Não tem nada dele nesse
filme, ele esta irreconhecível. Depois essa fórmula dele usar o Zé Caixão
acabou transformando o personagem num palhaço. Ele jogou a sorte dele no lixo.
Toda a sorte, a projeção do personagem aqui no Brasil e mesmo no Exterior. O
Mojica acabou se desvalorizando, entende? Lidou com pessoas...ele sempre viveu
numa curriola de pessoas sem condição nenhuma, sem cultura nenhuma. Não quero
me desfazer dessas pessoas, mas muitos não deviam estar nesse meio. Ele se
desvalorizou freqüentando quermesse. Infelizmente, não tem como reverter mais.
É algo melancólico.
VSP- Eu também achei que o filme não tinha haver com
ele. Ficou muito estranho...
RFL-
Ficou, ficou. As coisas que ele faz em televisão eu não sei porque não pega
essa canal na minha residência. Estão explorando ele e parece que ele não
percebe. Antes, ele tinha feito filme pornográfico. Fica difícil você analisar
o Mojica. Eu não sei o que está na cabeça dele, fazer terror não é algo inato.
Aconteceu, ele fez aqueles filmes e meia dúzia de cineastas endeusaram ele. Na
realidade, aqueles dois primeiros filmes eram paupérrimos em termos econômicos.
A qualidade se deve em grande parte ao fotógrafo (Giorgio Attili). Deve-se ao
Attili, aquelas imagens criadas na tela não foram do Mojica e sim do fotógrafo.
Lógico que o Mojica tem o mérito dele, não estou tirando o peso da contribuição
dele. Mas houve uma grande contribuição ao fotógrafo. O roteiro desses filmes
eram cheio de incoerências. Sempre procuro entender um longa-metragem pelo
enredo e os dois tinham várias incoerências. Tudo bem...o mérito dele foi ter
feito algo diferente no nosso cinema. Vendo o primeiro filme dele eu senti algo
de impacto. Ele tem toda aquela enlouquecia. Depois, ele vai afundando cada vez
mais e deixando seus filmes parecidos com circo de arrabalde. Uma pena.
VSP- O senhor acredita que os roteiristas são muito
pouco lembrados dentro do cinema brasileiro?
RFL-
Isso não se restringe ao Brasil. Acontece em todo cinema mundial. O grande
público corre pro cinema quando tem um ator como o Tom Cruise em determinado
filme ou quando tem a Sharon Stone. Todos correm para vê-los. Os roteiristas
são sempre esquecidos. Quem sabe quem são os roteiristas? Meia dúzia, somente
as pessoas ligadas a arte do cinema, o grande público não sabe nada. Nem sabe
quem são os diretores.
VSP- Qual conselho o senhor daria para algum jovem
que queira seguir carreira como roteirista?
RFL-
É muito difícil. Cada caso é um caso. Mas eu vou ser sincero: eu tive tudo,
tudo veio ao meu encontro. Eu nunca corri atrás. Aquilo que eu corri atrás não
deu certo. Veio tudo na minha mão, entende? Nunca corri atrás. Agora, cada um é
cada um...pra outro dar certo tem que ser de outra forma. Na realidade, depende
da sua própria sorte. Você precisa ter aquela predisposição pra correr atrás,
ter conhecimento, cultura. Tudo isso aliado a sorte. Eu nunca estudei cinema,
nunca li livro técnico. É preciso muita leitura, observação, ver muitos filmes.
Eu vi muita fita...filme bom, filme ruim. Tudo. Só não vi filme de guerra, gangster que esses nunca me
interessaram. Agora, drama, suspense, policial, noir, esses são gêneros que eu gosto bastante. Eu procurava ver e
analisar a minha maneira. Eu nunca pegava livro. Somente lia crítica de jornal,
revista pra acompanhar. Mas eu não me guiava nisso. Podiam falar que
determinado filme era ruim, era bom. Eu mantinha a minha concepção.
6 comentários:
É uma pena que o Luccheti esteja afastado do cinema! Seus comentários são muito pertinentes! Parabéns mais uma vez Matheus, pela sua dedicação em salvaguardar a história do nosso cinema! Não desista desse seu trabalho, pois temos poucos jovens como você que se interessam em estudá-lo. Grande abraço, Dalete Cunha
Muito boa a entrevista, Matheus!
Maravilhosa entrevista!
De fato, há um viés conservador no enredo de ENCARNAÇÃO DO DEMÔNIO que destoa da concepção original do personagem Zé do Caixão...
teu 'blog' é primoroso, parabéns!
WPC>
Dalete: obrigado pelo seu comentário. É uma honra ter uma pessoa como você como leitora.
Ailton: valeu cara
Gomorra: obrigado. Concordo com você que destoa do restante da obra dele. Apareça mais por aqui. Abraço
Clap, clap, clap, clap, clap...
Adorei a entrevista. Infelizmente, o público brasileiro pouco ou nada conhece de cinema. A maioria assiste apenas as super produções de Hollywood, nada contra, claro, mas o roteirista tem um papel importante, pois é ele quem cria a história,as falas, e vem um diretor, que muitas vezes não sabe nada desta arte, e mexe no texto, e quando o filme fracassa, a culpa recai no roteirista. Parabéns pelo blog.
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