Por Tony de Sousa
Começou então a minha
peleja com o velho Ozu para conseguir material para montar os roteiros. Ele ia
me trazendo aos poucos umas anotações que havia feito nos mais variados tipos
de papel. Pedaços de jornal, saquinhos de padaria, papel almaço, bilhete de
loteria, papel rascunho...
Eu precisava montar
dois roteiros. Um para um filme chamado
As rosas do caminho e outro para o filme O Jagunço.
As anotações dele eram
do tipo: “Fulano encontra sicrano na estrada”. “Jagunço atrás de um toco espera
a hora de apertar o gatilho”. “O cara que o Jagunço vai matar entra em quadro”.
“Borracheiro está trabalhando e chega Rosa. Fala com ele”.
Em nenhuma das
anotações que me passava havia diálogo.
“Escuta, desse jeito tá
difícil montar os roteiros”.
“É assim que eu faço
minhas fitas. Não escrevo roteiro”.
“Pois é, mas a
Embrafilme exige que tenha um roteiro prévio. Não só isso. Que seja feita uma
análise técnica do mesmo. Relação de personagens e tudo mais”.
“Eu sabia que ia ser
foda isso aí. Vou ter que inventar. Depois mudo tudo!”.
Eu aproveitava essa
demora do velho em que me entregar as coisas para dar uma embromada, sem que
Davero percebesse. Fingia que tava datilografando o roteiro e escrevia uns
troços qualquer lá. Uma ideia para um curta-metragem. Um jovem cineasta
tentando fazer seu primeiro filme. Até chegar a hora do almoço e ir comer o
comercial delicioso do Serafim.
(...)
O prazo de duas semanas
para datilografar os projetos do velho Ozu passou rapidinho. Cheguei a
produtora de Davero com dois calhamaços. Ele e Ozu deram uma olhada nos
orçamentos e ficaram impressionados com os valores. Os orçamentos de filme de
longa-metragem na Boca, em média, giravam em torno dos 100 mil dólares. Havia
produções mais elaboradas, mas mesmo essas produções chegavam no máximo a 300
mil dólares. Na maioria dos casos o cara recebia parte dessa grana como um
adiantamento de um exibidor que virava sócio do filme. Eu havia chegado a um
orçamento de 300 mil dólares apenas para a finalização do filme As rosas do caminho. Já O Jagunço ficou em um milhão de dólares.
O velho Ozu me
perguntou incrédulo:
“Você acha que eles vão
aprovar isso aí? Não é melhor diminuir um pouco”
“Eles vão aprovar, sim.
Eu não inventei nada. Tirei tudo das tabelas de preços”.
“Eu duvido! Mas se
vocês quiserem mandar assim...eu acho que isso aí não vai dar em nada”.
Fui até a Embrafilme
com toda papelada e protocolei os dois projetos. Aí ficamos em compasso de
espera. O velho Ozu sempre cético quanto à possibilidade de sair dinheiro da
estatal para os seus filmes, mas muito simpático comigo. Só que, para mim,
dinheiro não pintava. E eu continuava com aquela pendência com Eligê. Cheguei
pro Davero e falei:
“Você não tem nada aí
que me renda uma grana? Preciso arranjar um dinheiro meio urgente”.
Ele me levou até uma
área, uma espécie de guarda-tudo, e retirou de uma prateleira onde havia várias
latas de filmes meio enferrujadas, umas caixas com fitas de gravação magnética
e me mostrou:
“Sabe o que é isso?”
Estava escrito nas
caixas: “Magnético 17,5”.
“Esse é o tal magnético
17,5?”
“Isso mesmo! Só que
esse magnético já foi usado. Tem gente que compra magnético recuperado. Se você
quiser, eu te ensino a fazer a recuperação. Depois você vende, dá uma parte da
grana pra mim e fica com o resto”.
Eu não tinha muita
alternativa no momento. Aceitei a tarefa. Ele montou uma traquitana sobre uma
mesa, pegou umas luvas e começou a me mostrar como fazia a coisa.
“É bom trabalhar sempre
com luva. Tem gente que nem usa luva, mas é errado. Ah, já conhece a
coladeira?”
E me mostrou um negócio
com uns pininhos para encaixar as perfurações do magnético e uma lâmina bem no
meio para cortar o magnético ou filme, e em uma das extremidades um rolo de
fita adesiva transparente.
“É assim que se faz: os
trechos muito curtos você descola com cuidado e joga fora. Deixa só os pedaços
mais longos. Vai emendando um no outro assim”.
E me mostrou como usava
a coladeira. Como se cortava e emendava um pedaço de magnético no outro
pregando com fita adesiva.
“Esses trechos escuros
que você tá vendo é silêncio. Tem que tirar tudo fora”.
Dei uma olhada e
percebi que os trechos que ele chamava silêncio, eram na verdade, copiões de
filme 35 mm cortado ao meio.
“Isso aqui é uma
invenção de brasileiro. Lá fora, nos Estados Unidos, eles têm material
apropriado para fazer silêncio. Você sabe por que se chama silêncio, não é?”
“Eu tenho as minhas
suposições. Não sei se é o que estou imaginando”.
“É o seguinte: quando o
montador tá fazendo as pistas de som para mixar o filme, tem trechos de
diálogos, trechos de música, trechos de ruídos e trechos que é só silêncio. Não
tem som nenhum. Nesse trecho se coloca uma ponta de filme que a gente chama de
silêncio. Depois, na mixagem, mesmo esses trechos acabam passando por um
processo de colocação de som ambiente. Ás vezes usamos também isso que chamamos
de silêncio para um trecho de filme que ainda não temos o som definido”.
E assim fiquei alguns
dias nessa tarefa de recuperar magnético. Quando terminei, Davero examinou se
as emendas estavam bem feitas e elogiou o meu trabalho.
“Se você quiser, eu te
pago tanto (falou uma quantia ridícula que não lembro quanto era, mas pelos
meus cálculos dava no máximo para pagar uns três almoços no Serafim). Ou você
sai por aí, oferecendo aos montadores. Pode ser que consiga bem mais. Aí me dá
uma parte do valor que você conseguir vender”.
Para não esticar muito
a história, peguei o valor que ele estava me oferecendo, e fiquei torcendo para
que a Embrafilme não demorasse muito a responder a proposta que havíamos feito
para os filmes do velho Ozu.
Retirado de A Boca do Cinema de Tony de Sousa,
publicado pela LCTE Editora em 2012.
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