Carlos Reichenbach
Corrida
em Busca do Amor, 1971
I- O
que você fazia antes de Corrida em Busca
do Amor?
Eu vinha de duas
experiências com filmes de episódio logo após abandonar a Escola Superior de
Cinema São Luiz e abrir a Xanadú Produções, com João Callegaro (também egresso
da São Luiz) e o crítico mineiro Antonio Lima. Ainda em 1969 iniciei as
filmagens daquele que deveria ter sido meu primeiro longa: um delírio
anarco-niilista e experimental chamado Guatemala, Ano Zero. Parei quando meus sócios
descobriram o teor subversivo da trama imaginada em cima do jargão da época: “Quem
sair por último, apaga a luz do aeroporto”. O que eu queria mostrar no filme
acabou acontecendo e vários amigos meus, por razões obviamente políticas, se
mandaram do país em 1969/70.
Descobri que eu mesmo
estava fichado no Dops como “cineasta esquerdista” e já estava pensando em me
mandar rapidinho pra Índia atrás de uma hippie deliciosa quando recebi um
convite esdrúxulo do produtor e amigo Renato Grecchi.
Grecchi tinha se
tornando produtor com dois filmes de muito sucesso: as estreias de Dedé Santana
e Renato Aragão no cinema. Entusiasmado com os filmes de Roberto Carlos e
sabendo que Roberto Farias iria filmar o “rei” numa aventura com carros de
corrida (A 300 Km por Hora), Grecchi
imaginou um argumento envolvendo escuderias, um rali, um troféu e uma garota
bonita como prêmios.
II- Como
era sua relação com o cinema da boca do lixo?
Eu, o Callegaro e
alguns outros jovens e neófitos frequentadores da região tínhamos na
boca-do-lixo a fama de “meninos da faculdade”, intelectuais metidos,
bicho-grilos, maconheiros e cabeludos esquisitos querendo se enturmar com a “galera
do cinema”. Era isso que me intrigava: afinal, por que Grecchi resolveu me “dar
uma chance”?
Entendi depois. No
final de 69, o maior concorrente artístico de Roberto Carlos era “o príncipe da
Jovem Guarda”, Ronnie Von. O príncipe nunca tinha feito um filme, logo o tal
projeto caía como uma luva para seduzi-lo ao cinema. Acontece que ele tinha
fama de intelectual sofisticadíssimo, logo era preciso convocar um diretor à
altura. Como o orçamento era exíguo, a saída foi chamar um estreante; mas um
estreante de formação acadêmica, lógico.
Isso descobri quando Grecchi
me levou à mansão do príncipe. Chegando lá, Grecchi me piscou o olho: “O
roteiro já está na mão dele!”. Grecchi e Ronnie Von começaram a jogar bilhar
enquanto eu me entediava. Passaram-se horas até o príncipe interromper o bilhar
e bradar: “Não vou fazer este filme; o roteiro é uma merda!”. Aí meus brios
falaram mais alto. Berrei: “Sei lá que roteiro te deram para ler, mas não fui
eu que escrevi!”. Passei então a ele um “vomitório” pessoal publicado num jornal
japonês que falava de cinema, artes plásticas, literatura, Hyeronimus Bosch,
William Blake e Gérard de Nerval.
O príncipe leu o texto
com a máxima atenção e deu um tapa na mesa de bilhar com a mão espalmada: “Vou
fazer o filme, mas esse cara tem que reescrever tudo...Eu adoro Blake, eu amo
Bosch...Carta-branca para ele...Carta-branca!”. Grecchi me ligou dois dias
depois dizendo que o príncipe quase teve uma síncope quando soube do salário
previsto para ele. Saía o ídolo, mas permanecia “o jovem diretor que amava
Nerval”, desde que abdicasse da porra-louquice e fizesse um filme acessível.
Com a saída do príncipe
tentaram-se alguns outros “condes” e “viscondes”, e o filme acabou mesmo com um
grupo de jovens cantores conhecidos como “os ídolos do Sílvio Santos”: Vic
Barone, Dick Danello, Toni Ricardo e Luis Carlos Clay.
III- Qual
importância de Corrida na sua formação?
Corrida
em Busca do Amor foi, na verdade, a minha melhor
faculdade de cinema. Fiz um filme de corrida de automóvel em que quase nunca
havia carros de corrida para filmar e onde os galãs muito raramente estavam
disponíveis para filmar em grupo. O dinheiro da produção acabou no meio das
filmagens e a saída foi levar à prática os ensinamentos de Roberto Santos na
São Luiz: “É preciso transformar a falta de condições em elemento de criação”.
Todas as noites, eu e os dois assistentes nos reuníamos no quarto de hotel com
uma planilha e uma máquina de escrever. De acordo com os atores e carros disponíveis
para o dia seguinte, datilografávamos as sequencias a serem filmadas.
A grande saída autoral
de Corrida foi homenagear ostensivamente o cinema de Roger Corman, de quem eu
era admirador absoluto, e reciclar, em tom de glosa, clichês do cinema
comercial; em especial os filmes para jovens. Poucos perceberam, durante a
filmagem, que o que eu pretendia era fazer uma desenfreada celebração da
algazarra e da desobediência civil.
IV- Como
você vê o filme hoje?
Tenho certeza de que
seu estilo anárquico e fragmentado antecipa todas as características intransferíveis
de meus 13 filmes seguintes: mistura de gêneros, subversão constante da sintaxe
cinematográfica, a música como personagem fundamental da narrativa, nenhum
preconceito contra o repertório popular (muito ao contrário) e a fé na utopia
como obsessão temática.
Publicado originalmente
na Folha de São Paulo em 3 de agosto de 2003
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