O franzino e magricelo Hiroito Joanides
(1936-1992) foi um dos homens mais temidos da criminalidade paulista no início
de 1960. Preso na Casa de Detenção de São Paulo (Carandiru), Joanides escreveu
e publicou sua biografia (Boca do Lixo,
em 1977). A obra literária é um retrato fiel ao submundo do lenocínio e das
drogas na capital paulista do final dos anos 1950 e início dos 60. Personagens da
marginalidade como o delegado Minervino, os malandros Quinzinho e Nelson da 45 (O
Judeu) são descritos sem romantismo. O livro fez bastante sucesso. Tanto que
Hiroito chegou a dar palestras em inúmeras universidades. Em 1978, a editora
Edições Populares publicou o livro Chame
o Ladrão com contos policiais inéditos de diversos escritores paulistas (Ignácio
de Loyola Brandão, Flávio Moreira da Costa, Sílvio Fiorani, Fuido Fidélis,
Marcos Rey, Álvaro Alves de Faria, Paulo Rangel, Ewelson Soares Pinto, Humberto
Mariotti, Wander Pirolli, Socorro Trindad, Edla van Steen, Mafra Carbonieri e
Hiroito de Morais Joanides). Nas linhas abaixo está na íntegra o conto
publicado por Hiroito no livro: Um Caso
de Honra, baseado em fatos reais. O antigo rei da Boca chegou a dizer em
entrevistas que publicaria outros livros sobre seus anos na marginalidade. Isso
não chegou a acontecer. Após ser solto, Hiroito chegou a estudar história na
USP (Universidade de São Paulo), mas acabou retornando ao submundo. Foi preso
diversas vezes. Bastante intelectual, Joanides era admirador de diversos
autores estrangeiros como Albert Camus. O nome de Hiroito ainda é lembrado em
certos locais de São Paulo. Em lugares com muito passado e nenhum futuro.
Um caso de honra
Por Hiroito Joanides
O primeiro golpe veio
por trás, à traição. “Na escama”, como se diz na gíria. A faca, simples barra
de ferro arrancada do vitrô da cela e pacienciosamente afiada no chão de pedra,
porém eficiente, penetrou fundo, do lado esquerdo, em busca do coração. Ademirzão
voltou-se rápido, ação instintiva, agarrando o pescoço do atacante “escamoso”.
Foi quando a segunda faca adentrou-lhe o vazio da barriga.
No sombrio corredor do
Pavilhão Oito da Casa de Detenção, por sobre o tropel dos que fogem à cena
explode no ar ruído metálico de uma porta batendo: a saída do pavimento fora
fechada, ligeiro, pelo guarda experiente, postado de fora. Medidas de rotina. Em
nome da segurança cortava-se a única via possível de fuga a quem quer que fosse
atacado.
Mas para Adermizão não
havia uma chance de fuga, estava cercado. O seu braço direito, que agarrara o
primeiro atacante, rasgava-se agora sob o fio do punhal que empunhava um
terceiro. Na roda de morte, enquanto a arma de quarto agressor se metia em seu
peito outro mais lhe furava, rasgando, o pescoço. Perdida em sangue a força da
vida, apenas os golpes que se sucediam em seu corpo taurino mantinham-no em pé.
Por fim, descamba por terra, um metro e noventa ferido de morte.
No comprido corredor,
em “U”, do terceiro pavimento, o vozerio de ainda há pouco, de centenas de
sentenciados que ali transitavam, se fizera silêncio, silêncio de espanto.
Postados de longe, detrás a mesmice das pesadas portas de aço, em fileira e
então abertas, olhos habituados ao sangue se assombravam com a violência da
cena, a eles próprios inaudita.
Em torno àquele corpo
negro, caído, já sem vida, onze homens, braços armados, disputavam, embolados,
aos empurrões, o privilégio de esfaqueá-lo outra vez mais ainda, por vezes se
ferindo na ância assassina. Nos rostos jovens das onze bestas-feras, produtos
do sistema penitenciário, rostos de homens sofridos, sós, esquecidos, números
apenas, a mesma expressão de ódio incontido, curtido de há muito. Curtido desde
o tempo do Juizado de Menores.
Ademir de Souza, noventa quilos de músculos, fereza e depravação, nascido numa favela qualquer, era
filho do Estado. De pais desconhecidos, fora criado, desde os doze anos, pelo
Juizado de Menores. De onde sempre fugia, para retornar logo após alguns furtos
e assaltos. Do porte avantajado e força desmedida, lhe sobrara o cognome Ademirzão,
e , dos anos que passara no Instituto de Reeducação de Mogi Mirim, lhe ficaram
o título de “estuprador-oficial do Juizado de Menores”. Título pelo qual os
mais chegados, nas rodas carcerárias, costumavam chama-lo, por gozação, claro,
mas muito merecidamente. Desse merecimento, mais de uma centena de sentenciados
da Casa de Detenção, que haviam passado por Mogi Mirim quando menores, traziam
na lembrança, e no corpo, o atestado comprobatório.
Nos tempos de Mogi
Mirim, Ademirzão sempre fora o mais forte, feroz e obsessivamente devasso. Do
que sempre se valiam alguns carcereiros para a conservação do bom andamento da
disciplina interna. Ademirzão era usado como instrumento de cura na revolta
deste ou daquele garoto mais bagunceiro e indisciplinado. “Quebra-moral”, como
diziam os carcereiros, ou, “vergonhoterapia”, como por perto os psicólogos
haveriam de nomear o método.
Quando um qualquer moleque
que por lá aportasse visse a se mostrar desordeiro e valente – vazão natural de
uma infância em abandono – perturbando com isso o ambiente e a doce paz de
carcereiro em serviço, bastava numa noite qualquer transferi-lo para ao xadrez
do Ademirzão. Ao amanhecer, o moleque valente e xucro estaria já “ domado”, montado que fora. No pescoço, a dor do
aperto do braço rijo e forte, que traz à vista a névoa que o desmaio apaga. No
mais, a dor da carne que fora violada. E, na sede volitiva, mais forte que o
ódio, a vergonha que inibe as revoltas antigas.
Agora, no silente
corredor do Presídio, o ápice do horror. Sem prévia combinação, sem palavras,
num tácito e insano entendimento alguns daqueles homens em fúria, cinco, se
puseram ao trabalho de esquartejo do corpo. Os seis outros, cabisbaixos e
arfantes, sujos, banhados de sangue, satisfeitos talvez, se afastavam sem
pressa, nos braços pendidos o aço sem brilho da faca em vermelho.
Em posições esquisitas,
agachados em torno ao cadáver, dois deles com as facas tentavam arrancar-lhe o
braço na altura do ombro. As armas rangiam no osso. Dos três outros, enquanto
um segurava, puxando, a cabeça do morto, os demais trabalhavam com as facas no
grosso pescoço, buscando arrancá-la. Intento perdido, a rijeza do osso impedia
o trabalho. Desistem. Cansados, e em silêncio, caminham em rumo suas celas.
Final de vingança. No chão de azulejo, o “estuprador-oficial do Juizado de Mogi
Mirim”, com o braço retorcido por sobre a cabeça, parecia saudar, o Inferno
talvez.
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