Mil
canções
Por
Tárik de Souza
Ele
não costuma errar. Nem mesmo quando grava em estúdio, com uma infinidade de
recursos técnicos à disposição. Mas, ao cantar o samba “Nossa História” na
gravação do programa “Clube dos Artistas”, levado ao ar na última sexta-feira
pela Rede Tupi de Televisão, o cantor Nelson Gonçalves entrou fora do tom. Teve
que parar e depois recomeçar – de forma impecável. Mais tarde, enquanto
corrigia o vídeo-tape, suprimindo a entrada acidentada, o produtor do programa,
José Messias, dava a explicação para o surpreendente tropeço do grande ídolo
nacional: “Foi emoção. Afinal, é a milésima...”.
De
fato, Nelson estava emocionado. Era a primeira vez que cantava em público o
samba escolhido para marcar seu recorde indiscutível: 1.000 canções diferentes
gravadas em 35 anos de carreira. “Nossa História” foi selecionada pelo próprio
Nelson entre quatro músicas tiradas de um total de 517, vindas de todo o Brasil
para o concurso “A Milésima Canção Para Nelson Gonçalves”, promovido pelo
“Clube dos Artistas”. E além de render o prêmio de 20.000 cruzeiros a seus
autores, Jorge Costa e Paulo Machado, abre o lado B do próximo LP do cantor,
nas lojas dia 2 de junho: “Nelson Até 2001”. No disco, junto aos infalíveis
sambas-canção de Adelino Moreira, incluíram-se preciosidades como “Vida
Noturna”, de João Bosco e Aldir Blanc; “Fim de Caso” de Dolores Duran; “Castigo”,
de Lupicínio Rodrigues e “Eu e a Brisa”, de Johnny Alf.
Meio gago- Com 23 LPs no catálogo permanente na RCA (ele gravou
78), Nelson representa um dos maiores e mais estáveis faturamentos da
gravadora. Sua primeira gravação, o 78 rotações “Sinto-me Bem”, música de
Ataulfo Alves, lançada em agosto de 1941, vendeu 18.000 cópias numa época em
que a marca de 2.000 discos vendidos significava absoluto sucesso nacional.
Canções como “A Volta do Boêmio”, “Caminhemos” e “Segredo”, entre outras, na
voz poderosa de Nelson Gonçalves, já ultrapassaram, em diversas gravações, a
casa dos 2 milhões de cópias vendidas.
Agora,
ás vésperas de completas 57 anos, Nelson Gonçalves ainda se mantém como um
fenômeno de sucesso e popularidade. Na RCA, divide os maiores faturamentos com
Martinho da Vila. Sua agenda de shows (35.000 cruzeiros por apresentação) em
clubes e auditórios de todo o país está sem datas vagas até janeiro de 1977. E
ele precisou cancelar os compromissos marcados de outubro deste ano a janeiro
do próximo para poder realizar um projeto totalmente novo em sua carreira: um
show de teatro, “Nelson Gonçalves Canta e Conta Sua Vida”, espécie de revisão
crítica de seu trabalho artístico, dirigido pela atriz e professora de teatro
Miriam Muniz, que encenou “Falso Brilhante”, de Elis Regina. “E aí sim”, diz
Nelson com seu jeito atropelado e meio gago de falar, “talvez utilize em
recurso que nunca precisei para me promover: a máquina de divulgação”.
Machão – Na verdade, o sucesso de Nelson Gonçalves deve-se
fundamentalmente às suas virtudes de cantor. A voz potente, excepcionalmente
afinada, mostra-se capaz até hoje, de recursos quase ilimitados. E a
interpretação dramática confirma plenamente aquela postura machista que tanto o
aproxima de seu público. Adelino Moreira, autor dos seus principais sucessos,
diz que “as pessoas se identificam muito com as minhas letras. Ás vezes chegam
para mim e dizem: “Parece que você se inspirou na minha vida”. No entanto,
Adelino confessou a VEJA que muitas vezes se inspira na vida do próprio Nelson
para compor. E conta que uma vez, numa festa, o cantor interessou-se por uma
moça e escreveu um bilhete para ela, num guardanapo. “Como bom machão, em vez
de passar o recado com discrição que o assunto merece, Nelson fez uma bolinha de
papel e a atirou sobre o busto da jovem”.
Gaúcho
de Santana de Livramento, criado no Brás, em São Paulo, pai de dez filhos (oito
adotivos), cheio de anéis nos dedos e o nome gravado na pulseira do relógio,
Nelson confirma sua aversão a certas “modernidades”. Canta sempre de terno
escuro ou smoking, não admite calças justas e já devolveu um terno sem bolsos
ao alfaiate: “Onde é que eu ia botar o cigarro e o isqueiro?”. Nunca se deixou
maquilar, nem mesmo em programas de televisão, onde o pancake é praticamente
indispensável. E anda assustado com o comportamento de alguns fãs, como
desabafou a Valdir Zwetsch, da VEJA: “Tem uns caras, homens mesmo, que chegam
depois de um show, chorando de emoção, e querendo me beijar na boca! Dizem:
‘Deixa eu beijar a boca de onde sai essa voz maravilhosa’. Onde já seu viu?”.
Extravagância- Enquanto a maioria dos artistas brasileiros lança um
LP por ano, Nelson Gonçalves lança anualmente três. “Posso fazer isso porque
meu público é fiel e está habituado. O cara chega na loja, pede meu último
disco, manda embrulhar e só vai ouvir em casa. Nem ouve antes, pois já sabe que
vai gostar”. E mais: Nelson se diz “surpreso e grato” por estar atingindo outro
tipo de público. “Talvez por causa da onda de nostalgia, a verdade é que os jovens
estão fazendo uma revisão da música brasileira e infalivelmente acabam me
encontrando. Vou a clubes onde só tem garotada, cantando junto comigo meus
maiores sucessos”.
Além
da necessidade de alimentar esse público, fiel e crescente, com novas gravações,
ele conta com outro trunfo que permite a extravagância de três discos novos por
ano: reúne qualidades de um verdadeiro mestre da arte de gravar. Habituado aos
esquemas primitivos de gravação em um canal só e matriz de cera, que não
admitiam erros, Nelson acostumou-se a nunca repetir uma sessão de estúdio.
Trabalhar com ele, dizem os técnicos, é uma tranquilidade: basta trocar a base
em playback que Nelson abre a garganta e solta a voz, no tom e inflexão exatos.
Ás vezes, terminada a canção, passa imediatamente para a seguinte, sem nem
ouvir o que registrou antes, tão seguro está do resultado. Em um só dia grava
um LP inteiro.
Alfredo
Corleto, gerente de divulgação e promoção da RCA, testemunhou uma dessas
sessões, em 1970, durante a regravação do LP “Nelson Interpreta Noel”. “Ele
entrou no estúdio ás 14h15 e, entre papos e cafezinhos, saiu ás 18h30. O disco
estava prontinho, voz de Nelson e base de Caçulinha. Só faltava enxertar alguns
arranjos de orquestra”.
Parar de cantar- No ano passado, Nelson vendeu perto de 800.000
discos e renovou seu contrato com a gravadora por mais cinco anos. E começou a
colocar em prática sua ideia de um arquivo musical, capaz de garantir novos
lançamentos seus até o fim do século. Sua intenção é parar de cantar daqui no máximo
cinco anos. Mas até lá, gravando duas ou três músicas por mês, terá vinte LPs
inéditos prontos, permitindo à RCA lançar um ano por ano, de 1981 a 2001. Nessa
linha de trabalho, já tem dezessete canções gravadas, voz e base, faltando só a
orquestração, “que será sempre feita na época do lançamento, de acordo com as
tendências musicais em voga”.
Um
verdadeiro golpe de mestre, explicando lucidamente pelo próprio Nelson: “Eu
penso viver até os 80 anos, e quero que o público que sempre me acompanhou
tenha o que ouvir enquanto eu estiver vivo. E, além de não privar meus fãs de
coisas novas, poderei me aposentar com uns cinquenta ou sessenta salários
mínimos mensais só pelos direitos de execução e vendagem dos discos. Mais os
vinte salários mínimos do INPS, acho que dá para garantir meu dia de amanhã. E
há ainda o risco de uma dessas músicas estourar...Então, eu ganharia uma fábula
– sem estar cantando. No máximo, fazendo umas dublagens por aí...”
Mas,
por que parar de cantar daqui a cinco anos se sua voz se mantém firme e
vigorosa há mais de três décadas? “Eu quero descansar. Este mês só passei dois
dias na minha casa em Niterói. Inaugurei a piscina em janeiro e até agora só
consegui tomar dois banhos. Então, vou parar para curtir minha família, viajar,
ir para a Europa, aproveitar um pouco”.
Se
quisesse, ele diz, “podia até parar agora que não ia passar necessidade”. Sua
renda mensal está em torno de 100.000 cruzeiros. Mas ocorre que o cantor que
comove multidões ainda gosta muito de subir num palco e cantar dramaticamente
para os fiéis e apaixonados fãs. “É isso que me fascina. No ano passado, eu
fiquei em primeiro lugar nas paradas de sucesso da Bélgica com Naquela Mesa e
isso não me disse nada. Bélgica, Alemanha, Estados Unidos, nada disso me
interessa. O que eu quero é ser o primeiro lugar no Brás, segundo na Mooca,
primeiro no Meier, terceiro em Cascadura, segundo em Ribeirão Preto...Eu cantei
na ilha do Bananal e vi índio nu com disco meu embaixo do braço. Isso é que
vale.”
Publicado
originalmente na revista Veja em 26
de maio de 1976
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