Nelson Gonçalves, o
último dos cantores românticos
O músico, que morreu no
sábado, tinha planos para gravar o seu último disco na virada do século
Norma Couri, especial
para o Estado
O último disco estava
planejado para o ano 2000. Não deu. Nelson Gonçalves morreu de parada cardíaca
ás 20h45 de sábado, a três meses dos 79 anos, a menos de dois anos do fim do
século que seria selado com o último disco de sua carreira. Há muitos anos o
último cantor romântico se acostumou a gravar uma faixa de quebra para cada
disco. As extras vinham sendo arquivadas e o disco tinha até título: Nelson Ano 2000. Ia sair pela BMC
Ariola, antiga RCA Victor na qual ele foi rei.
Sobrevivente da última
geração de cantores românticos, membro da turma de ouro do Brasil formada por
Vicente Celestino, Francisco Alves, Sílvio Caldas e Orlando Silva, Nelson Gonçalves
não apaga só a voz grave e elegante. Apaga um estilo, uma época.
Anterior ao play-back,
nunca repetiu uma gravação. Seus maiores sucessos se chamavam Normalista ou um emocionado Ela me Beijou e hoje ninguém mais sabe o
que é isso. Caetano Veloso era criança quando ouviu Nelson Gonçalves cantar Maria Betânia, de Capiba, e assim
decidiu o nome da irmãzinha. Era o kitsch cafona mais autêntico do Brasil, com
bigodinho bem cuidado e brilhantina no cabelo.
Conheceu o inferno e o
céu, os farrapos e a riqueza, a loucura e a fama. Ficou na miséria antes de
acumular 19 apartamentos, uma casa em Itaipu, duas fazendas em Caxambu, mais
quatro imóveis. Emplacou na subida quando Orlando Silva entrava em decadência,
entrou na moda e saiu dela. O vozeirão foi destronado pelo cool da Bossa Nova.
Nos anos 90 voltou a ser referência de roqueiro e músico pop, virou livro, foi
tema de peça. Planejava virar filme e escrever a autobiografia Esta É a Minha Vida.
Nelson Gonçalves ainda
era Antônio quando cantava na rua, em cima de caixote de sabão, com o pai que
se fazia de ceguinho para recolher dinheiro para o menino. Virou cantor há 60
anos. Antes foi engraxate, barbeiro, mecânico, sapateiro, jornaleiro, peso
meio-médio de boxe, garçom na esquina da Avenida São João com a Alameda
Nothmann, gigolô na Lapa carioca.
Rei do rádio, em 1966 foi
apanhado com 200 gramas de cocaína e preso. Viciado, ficou trancado por seis
meses em casa pela mulher, tinha alucinações com ratos e dragões e batia nela.
Um dia abriu a janela e espantou-se com o leiteiro, o jornaleiro, a vida
cotidiana da cidade. Era 1968, estava com 53 quilos e curado. “Homem não é quem
fica viciado, homem é quem larga o vício”, dizia. Virou uma espécie de porto
seguro para os viciados do meio artístico brasileiro.
Último
machão – O último cantor romântico era também o último
machão. Achava óculos escuros coisa de homossexual, brinquinho nem se fala. Com
uma prótese peniana, aos 75 anos dizia ter o mesmo vigor sexual dos 25, Casado
três vezes – com Elvira Molla, Lourdinha Bittencourt, Maria Luiza Gonçalves -,
tinha sete filhos, cinco adotivos e morava com uma das filhas, Margareth,
também empresária do pai.
Nunca quis aposentar-se.
Tentou ser deputado federal e vereador, não conseguiu ser eleito. Orgulhava-se
de ter visto índio nu com seu disco debaixo do braço na Ilha do Bananal,
profissionais da zona do meretrício com coleções de seus sucessos. E também por
ter sido elogiado por Sinatra em pessoa quando cantou nos Estados Unidos.
Orgulhava-se ainda da boemia, de ter nocauteado o imbatível Miguelzinho num bar
da Lapa, de nunca ter chutado homem deitado e de seus melodramas de folhetim.
Orgulhava-se da voz que, aos 78 anos, não havia baixado nenhum tom.
Gago, dizia: “Penso mais
rápido do que consigo falar”. Por isso mesmo foi apelidado de Metralha. Mas
tinha a voz mais cristalina quando cantava. Corrigia os cantores: João
Gilberto, Lulu Santos, Lobão, Renato Russo. Entre os homens só refrescava
Sinatra, Tony Bennett, Stevie Wonder, das mulheres gostava de Gal, Ângela Maria,
Fafá de Belém.
Recuperado de um enfarte,
enfrentava a vida lembrando o passado de valentia e uma penca de Corações de
Jesus, medalhinha de Nossa Senhora das Graças, crucifixo, escapulário, tudo com
três guias de Ogum, Xangô, Oxalá. Valeu: só Elvis Presley recebeu o Prêmio
Nipper na gravadora BMG, na qual há décadas é campeão de vendas. Deixa bolachas
de 78 rotações, LPs, compactos simples e duplos, caixinhas de CD – uns 2 mil
sucessos pelos quais recebeu 15 discos de platina e 41 de ouro por quase 80 milhões
de cópias vendidas. Fez história na música popular brasileira.
Nelson Gonçalves é de um
tempo em que cantor sabia cantar, compositor sabia escrever e se dizia coisa
com coisa. O lugar do besteirol, da pornografia, dos decibéis excessivos e da
grosseria era na lata do lixo. Mas esse tempo foi há muito tempo e ninguém se
lembra mais. O primeiro sucesso foi há 57 anos – Sinto-me Bem, de Ataulfo Alves. Seu festival de hits fala de coisas
que ninguém mais sabe o que é.
Por exemplo, na música Meu Triste Long Play: “Ligue a sua
eletrola/ Vista o seu negligê/, Deite-se, acabe o cigarro/, Que eu no cinzeiro
deixei/, Quero sentir que você /, Na maciez do seu ninho/ Dormiu ouvindo bem
baixinho/ O meu triste long-play”. E alguém ainda está conectado com camisola
do dia?
Mas no que Nelson deve
parecer mais surpreendente para essa meninada é nos sentimentos. Ele cantava
frases desse impacto: “Eu quero esse corpo/ Que a plebe deseja/ Embora ele
seja/ Prenúncio do mal”. E, naturalmente, Meu
Desejo: “Tenho desejos de ver em prantos/ Magoá-la tanto com a minha ira”.
Ou Meu Vício É Você: “Boneca de
trapo/ Pedaço de vida/ Que vive perdida no mundo a rolar/ Farrapo de gente/ Que
inconsciente/ Peca só por prazer”. Onde ele machucava a dor-de-cotovelo alheia
era em Nossa História: “Se você sair/
Fecha a porta por favor/ Se a nossa história está morta/ Tudo acabou/ Não é a
primeira vez/ Que sofro por teu amor/ Estou ficando freguês dessa dor”. Ele
desbancava: “Maria Pureza/ Só tinha pureza no seu sobrenome”.
Nelson tinha estatura de
Elvis ou Sinatra para os brasileiros, cantando no ouvido dos feridos do amor,
dos abandonados, dos atraiçoados pela mulher amada e mexendo fundo com a
vaidade do macho latino. A Volta do
Boêmio, Deusa do Asfalto, Louquinha para Casar, Êxtase, Os Anjos, Calafrio, Hoje Quem Paga Sou Eu, Ela me Beijou.
Fez uma famosa parceria
com Adelino Moreira, cantou Benedito Lacerda e David Nasser (Normalista), Ari Barroso, Herivelto
Martins, Wilson Batista. Irritava-se quando diziam que ele imitava Orlando Silva.
Muitos cantores tentaram imitá-lo. Na década de 90, foi reverenciado por Nelson
Motta e Marisa Monte, cantado por Lobão que compôs A Deusa do Amor para ele. Virou aquela coisa que os brasileiros só
costumam aplicar aos estrangeiros cult. Nelson viu essa volta sem espantou. Ele
sabia. Dizia: “Sou o último a cantar assim”.
Cadilac
98
– Ficou para sempre a vontade de pedir que ele repetisse a proeza de cantar em
frente de uma vela que não tremulava com seu bafo, de falar sobre a amizade com
dom Paulo Evaristo Arns, de ver o “treoitão” que ele dizia tirar da cintura.
Também de ver uma parte da autobiografia que estava escrevendo auxiliado por
Lena, as faixas do disco que planejava para o ano 2000, o Cadilac 98 com
traseira de turbina de avião com que ele sonhava desfilar nas ruas, e de ouvir,
pela última vez, o rei da voz.
Publicado originalmente
no O Estado de São Paulo em 20 de
abril de 1998
Um comentário:
Excelente matéria.Obrigado por postar.
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