terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Entrevista com Walter Hugo Khouri publicada em 2002

Walter Hugo Khouri

(São Paulo, SP, 21/10/1929- 17/06/2003, São Paulo, SP)



Paixão perdida, 1998

Por Almir Rosa

Sempre pensei em fazer uma carreira ligada a cinema, com 12 aos eu já pensava em cinema. Gosto de escrever, sempre li muito. Houve um momento em que eu só pensava em estudar Filosofia. Mas via muito filme. Quando criança, eu e meu avô materno íamos quase todos os dias ao cinema, e eu via muita coisa – claro que não com os olhos que tenho hoje.

Entrei para a Faculdade de Filosofia, mas fiz só o primeiro ano. Eu lia muito, até hoje sou um grande leitor, tenho uns mil livros aqui em casa. Em cinema, nunca me interessei apenas pela técnica, sempre tive vontade de dizer alguma coisa, não importante se interessava a todo mundo ou apenas a mim. Eu sempre me considerei um escritor/diretor.

Espinosa era meu filósofo favorito, todo filme meu tem uma citação dele. Essa linha mais literária, de criatividade, a parte escrita, sempre foi o principal, nunca fui fazer um filme sem que tivesse um arcabouço literário, filosófico.

Na verdade, os meus filmes ou são baseados em mim mesmo, ou com em uma visão do mundo. Se eu tivesse nascido na Bahia, por exemplo, meus filmes não seriam como são, porque teriam uma coisa local. Aqui é um pouco essa coisa estrangeira de São Paulo. São Paulo aparece muito nos meus filmes, porque nasci aqui, sou paulistano.

Minha mãe era brasileira, seus pais, italianos, eu cresci com meu avô italiano. Meu pai era greco-libanês, veio muito cedo para o Brasil.

Os libaneses são muito europeus, não têm nada de oriental. Graças ao meu avô italiano, falo italiano, sei tudo sobre a Itália, mais que muito italiano e tive muita influência da maneira de ser italiana. Sou um cara de São Paulo com características italianas.

O árabe eu falo e escrevo um pouquinho, mas foi o italiano que me marcou. Meu pai morreu muito cedo, convivi pouco com ele. Certa vez fui a Paris, um desses festivais de cinema, dei um pulinho até Beirute para conhecer minha família. O libanês já é um europeu, não é oriental.

A CARREIRA

Fiz meu primeiro filme muito cedo. Sou o famoso cara-de-pau que diz que sabe fazer, mesmo quando não sabe. Eu tinha vinte e poucos anos, foi em 1951, 1952, e se chamou O gigante de pedra. A história se passa numa pedreira, ainda tenho umas fotos, mas não sei o que acontecia, faz mais de 40 anos. O filme não é lá essas coisas. Eu estava na Faculdade de Filosofia, havia um grupo de São Bernardo que queria fazer um filme. Havia um italiano no meio que queria fazer um filme também, queria dirigir, mas tinha medo de já dirigir logo no primeiro filme. Chamava-se Lívio Rangan. E era a história de uma amiga do Lívio. Mas, nos dois primeiros anos, eu aprendi a coisa. Foi o início de minha carreira.

Eu não tinha passado por nenhuma escola de cinema, nem teórica, nem prática, nem tinha feito curta, aliás, nunca fiz curtas-metragens. Aprendi na prática a lidar com a objetiva, a sensibilidade do filme, a posição da câmera, tudo.

Meu segundo filme foi Estranho encontro. Foi o primeiro filme que fiz inteiro. Foi filmado em 1956 e lançado em 1958, pela Vera Cruz. Mas aí eu já sabia tudo e ficou bem feitinho, um filme para valer. Fronteiras do inferno (1958), lançado em 1959, foi o terceiro filme. Os produtores eram dois russos. Trouxeram filmes virgens dos Estados Unidos e depois levaram o filme pronto para uma versão em inglês. Deve haver cópias em algum lugar dos Estados Unidos, mas não imagino onde. Estranho encontro e Na garganta sofreram muita influência do produtor. Estranho encontro ganhou um prêmio em Curitiba na gestão do governador Ney Braga. E Na garganta do diabo valeu um prêmio em Mar del Plata.

A seguir, fiz A ilha (1962), um filme frustrado, porque era muito ambicioso, queria revelar a mesquinharia humana. Era a história de sete grã-finos que ficavam perdidos, o barco arrebentava e começava a acontecer algo entre eles. Era superinteressante, mas não era o que eu acho que seja bom. Logo em seguida veio Noite vazia (1964), é quando começa haver um estilo. Eu já tinha um domínio, sabia o que estava fazendo.

Fiz muitos filmes, e para mim sempre foi fácil porque eu nunca tinha de pensar “vou fazer um filme sobre a independência brasileira, sobre a guerra de Canudos”, eu sempre fazia um filme sobre as coisas que me interessavam e que eu podia trabalhar em cima delas. Tenho a impressão que fui fazendo o mesmo filme, que adquiriu as características de seu tempo.

Preste atenção no que vou dizer agora, porque pode ser mal interpretado: ter nascido num país como o Brasil em que é difícil fazer qualquer coisa, é difícil tudo, acho que foi uma vantagem. Se eu tivesse nascido na França, ou na própria Itália, ia ter de estar dentro dos padrões daqueles países, quisesse ou não, porque são sociedades tão fortes, tão marcadas, que você pode sair um pouquinho para cá, um pouquinho para lá, mas não pode ter isso que eu tive aqui. Eu fiz o que eu queria, sem que houvesse uma pressão sobre mim, dizendo o que deveria ser feito.

Construí uma obra de unidade, centrada em si mesma. O cinema tem essa coisa interessante: quando se fala de um livro, a gente pega e lê três, sete livros de um autor para ver o que é. Já com cinema é difícil, ver todos os filmes de um cineasta e lembrar de todos. Eu fiz sempre o mesmo filme, nunca mudei muito (não sei se estou exagerando, mas acho que nunca mudei muito), os personagens podem ser diferentes, mas as preocupações são as mesmas, as finalidades são as mesmas, os problemas são os mesmos, essa vontade de superação é a mesma. E não me lembro de jamais ter dito “agora vou fazer um filme sobre a fome”, por exemplo, que é um tema válido e importante.

Apesar de tudo, acho que eu sou o único cineasta no Brasil que tentou, bem ou mal, dar uma unidade a seus filmes; unidade de personagem, de tema, de lugar. Choca um pouco, porque isso é contra toda a coisa do Brasil. Isto é, o cara do Nordeste não quer saber se o Marcelo está com problemas existenciais, ele quer falar da miséria (eu posso colocar a miséria, mas, de repente, será uma miséria que vai ter uma reflexão sobre ela própria, o próprio personagem). Nunca quis fazer uma comédia. O Bergman, por exemplo, tem uma unidade de obra incrível, e fazia comédia. Eu já não saberia fazer. Ele é de um país em que as coordenadas são aquelas, e ele conseguiu. Eu até pensei em fazer uma comédia, depois vi que no Brasil seria mais difícil fazer uma comédia com os meus personagens. Quem são meus personagens? Sou eu mesmo e mais duas, três pessoas que me cercam.

INFLUÊNCIAS

Sofri alguma influência do Antonioni, de sua postura espiritual, essencial no fazer cinema. Mas isso, com o tempo, fica cada vez mais distante. Já de Bergman acho que tenho menos. Quando Bergman surgiu, eu fiquei entusiasmado, mas não há uma influência direta. Se há influência de Bergman, acho que não é proposital, é algo que paira no ar; e, como vi muito, admirei muito, acho que ficou alguma coisa. Mas é engraçado que, quando olho meus filmes, não consigo localizar a influência.

De cinema brasileiro, via de tudo. Da Vera Cruz eu não gostava de quase nada. Roberto Santos era meu contemporâneo, cheguei até a produzir um filme dele: Um Anjo Mau (1971). Fui assistente de Lima Barreto, mas não havia nada nele que pudesse ter me influenciado. Dos mais antigos, como Humberto Mauro, só acho curioso, e não vi tudo. Não me liguei a nenhuma tendência do cinema brasileiro, mas não foi de propósito, simplesmente fiz do jeito que me vinha na cabeça.

PAIXÃO PERDIDA

Essa coisa de fazer sempre o mesmo filme me leva a falar do personagem Marcelo. Ele vai aparecer aos poucos, porque no começo eu não tinha domínio do expressão para conformar o personagem como queria. Marcelo é o homem diante do mundo, com os problemas do mundo. É quase como um personagem de literatura. Eu pus Marcelo nos filmes porque vi que podia dar uma unidade aos meus problemas. Não é um personagem autobiográfico. É parte dos meus pensamentos e reflexões. Eu sou e não sou Marcelo. Sempre procurei fazer filmes intimistas que explicassem, de uma forma ou de outra, os problemas das mulheres e dos homens. Marcelo é o mesmo personagem em situações diferentes. Há momentos em que ele é jovem, em outros é mais velho e casado, mas é sempre o mesmo personagem.

Em Paixão perdida, a história é que Marcelo não pode parar, ele não para nem diante do filho. Não percebe que vai provocar um cataclisma na cabeça da criança. Marcelo não hesita em fazer o que para ele é impossível deixar de fazer, mesmo que o filho sofra daquele jeito. É um filme cruel, é um filme difícil. Houve um dia em eu que pensei: “Agora Marcelo precisa entender, ele já está meio velho e precisa renunciar” – mas ele não renuncia, vai esmigalhar o filho, mas faz o que acha que deve fazer.

A RETOMADA DO CINEMA BRASILEIRO

Quanto à Lei do Audiovisual, acho que é aquele famosa coisa bem-intencionada, que deveria funcionar como a gente quer. Mas se não funcionar não tem importância, pois de alguma forma a gente vai achar. O único problema é quando se tem de pedir dinheiro aos políticos. Mas acho que se não der certo, eles têm de corrigir.

Para mim, o que acontece com o cinema brasileiro hoje não é retomada. Se há dois ou três filmes, cada um fazendo uma coisa, não é exatamente uma retomada. Quando comecei, havia o primeiro cinema brasileiro, que era aquela confusão. Aí veio a Vera Cruz e a coisa italiana de “nós vamos fazer cinema”. Eu venho logo depois. Era um sofrimento, não tinha uma tradição, nos filmes paulistas anteriores à Vera Cruz não se encontra nada que seja bom. Aliás, ainda hoje é assim, isso porque o cinema brasileiro ainda não está sistematizado, não tem estrutura, é uma diversidade completa e cada cineasta é único. Não há uma escola, não há cineasta paulista, o cineasta carioca, o cineasta do interior. Tentou-se isso com a Vera Cruz, que construiu um cinema de estúdio, mas faltava estrutura. No Rio havia a chanchada e algumas outras coisas mais de acordo com a cidade. E até hoje o cinema brasileiro continua meio assim.

E vai continuar assim. Na época atual, o que há em termos de cinema? Você consegue dizer em que direção os cineastas estão indo? Cada um faz um filme e é muito difícil para todo mundo, e acho que vai ser assim ainda por muito tempo. Falta unidade. Eu estava pensando nisso outro dia: na Suécia, na França, há um denominador comum, uma unidade que mais ou menos agrupa, mesmo quando há diversidade. Tanto que não sabemos se é melhor é sermos primitivos, índios, civilizados, selvagens, ou outra coisa. Eu também não sei.

FILMES DIRIGIDOS POR WALTER HUGO KHOURI

1952- O gigante de pedra, 35 mm, longa-metragem.
1958- Estranho encontro, 35 mm, longa-metragem.
1959- Fronteiras do inferno, 35 mm, longa-metragem.
1960- Na garganta do diabo, 35 mm, longa-metragem.
1962- A ilha, 35 mm, longa-metragem.
1964- Noite vazia, 35 mm, longa-metragem.
1966- Corpo ardente, 35 mm, longa-metragem.
1967- As cariocas (2º episódio), 35 mm, longa-metragem.
1967- As amorosas, 35 mm, longa-metragem.
1970- O palácio dos anjos, 35 mm, longa-metragem.
1972- As deusas, 35 mm, longa-metragem.
1974- O anjo da noite, 35 mm, longa-metragem.
1975- O desejo, 35 mm, longa-metragem.
1977- Paixão e sombras, 35 mm, longa-metragem.
1978- As filhas do fogo, 35 mm, longa-metragem.
1979- O prisioneiro, 35 mm, longa-metragem.
1980- O convite ao prazer, 35 mm, longa-metragem.
1981- Eros, o deus do amor, 35 mm, longa-metragem.
1982- Amor, estranho amor, 35 mm, longa-metragem.
1984- Amor voraz, 35 mm, longa-metragem.
1987- Eu, 35 mm, longa-metragem.
1991- Forever, 35 mm, longa-metragem.
1998- Paixão perdida, 35 mm, longa-metragem.
1994/2000- As feras, 35 mm, longa-metragem.


Publicado originalmente em NAGIB, Lúcia. O cinema da retomada: depoimentos de 90 cineastas dos anos 90. Lúcia Nagib; prefácio de Ismail Xavier- São Paulo: editora 34, 2002.

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